Diário de campo de uma psicóloga dos seus tempos capsianos

Por nove meses gestei,
criei, aprendi,
mas na hora do parto,
parti.

Essa foi a estrofe que me saiu quando saí do CAPS no qual trabalhava.

Há 5 meses saí de lá. Trabalhei lá por 9 meses e estagiei por 1 ano. A partir da minha experiência nesse CAPS enveredei, talvez definitivamente, para o campo da Saúde Mental.

O estágio (e interesse pela SM) me direcionou a confeccionar uma monografia no tema, a participar de um projeto extensionista (que era o EnCena, do qual hoje sou colaboradora) e a participar de um projeto de pesquisa que analisava os processos de cuidado subjacentes à articulação da Saúde Mental e Atenção Básica. O ano de estágio foi um ano de muitas descobertas e quando me surgiu a oportunidade de trabalhar nesse CAPS onde havia estagiado, pensei no quão afortunada eu era por aquilo. Fiquei feliz também por constar que a proposta foi sustentada por minha postura enquanto estagiária. Assim, quando comecei a trabalhar, senti-me extremamente confortável e alegre em poder manter vínculos os quais eu realmente não queria desfazer, mas que com o correr das águas talvez não fosse possível manter. Com isso, abandonei minha ideia de mudar de estado e comecei a ser funcionária do referido CAPS.

E esse foi o primeiro impacto: a transição de estagiária para funcionária. Nunca tive uma maneira muito impetuosa de agir ou me impor e é claro que não seria dessa forma que eu faria com que as pessoas (colegas, usuários, estagiários) me vissem em minha nova função. Por vezes foi difícil contornar situações e relações, inclusive em meio a uma equipe que já estava – há um certo tempo – inflamada e cansada.

Minha postura (relativamente alheia) de estagiária, a qual me permitia tecer críticas fundamentadas (ou pelo menos pensar que tais críticas eram dessa forma constituídas) a respeito de um serviço que eu visitava duas vezes por semana, já não me deixava com o mesmo conforto de outrora. Vi-me várias vezes cedendo à comodidade da institucionalização enquanto ouvia vozes longínquas, que julgava ser de Costa-Rosa, dizendo-me para não ceder à tal comodidade ou comodismo e continuar criticando, ou melhor, argumentando sobre tudo o que fugia do paradigma que eu tinha estudado de maneira tão afinca.

E dessa forma fui trabalhando dia após dia, como uma formiga solitária que não queria virar uma eu-quipe, mas que também não abaixava a cabeça frente a ritos e regras já tão ferrenhamente cristalizados. Na maioria das vezes eu tecia comentários em reuniões técnico-administrativas que eram rebatados por outros comentários do tipo: “você não sabe de nada, está aqui há muito pouco tempo”. É claro que isso me desanimava um bocado e talvez é o peso causado pelo acúmulo de desânimo que nos adoece. Mas para o cansaço, há o descanso e para desânimo, há a luta. Eis, para mim, a noção de guerrilha e militância. E fiquei contente por sacar que enquanto eu estivesse promovendo incômodos, indagações e ou polêmicas, estaria sendo útil à proposta para a qual quis contribuir: a de tentar promover essa atenção de que tanto se fala.

Fiz contornos suaves. Meu jeito de agir era (e ainda deve ser) fluido e lento. Nunca afrontei posturas e propósitos, mas sempre devolvia perguntas frente à tantas certezas que me aparecia não sei de onde. Não acho que fui mal acolhida naquele serviço. Aliás, não acredito que o serviço no qual trabalhei não soubesse acolher. De certo que há formas e formas de acolhimento e algumas delas beiram o assistencialismo pai da dependência, mas disso tudo conta-se também a tolerância, o respeito e a paciência que alicerçavam os processos de trabalho e as relações ali estabelecidas. Eu olhava para os meus colegas, em sua maioria comprometidos, engajados e responsáveis, e via que enquanto as forças pareciam cessar e os métodos caducos e arcaicos já não faziam sentido, existia um doloroso embate em querer ser útil e não saber como sê-lo. Havia uma séria dificuldade em fazer o chi da criatividade rondar por aqueles ares.

Eu também fui muitas vezes arrebatada por esse embate. As questões referentes à dependência química e internações estavam em voga e o peso dessa demanda impedia-nos de olhar mais à frente e pensar de forma articulada, em rede. Aquele era um CAPS que queria dar conta de tudo sem saber que a melhor forma de fazer isso seria partilhando as demandas que chegavam torrencialmente.

A meu ver, minhas ações ocorriam micropoliticamente. Havia em mim uma sede muito grande, uma cabeça fervilhando ideias e uma necessidade de fazer com que tais ideias fizessem sentido para mais pessoas. Meu maior dispositivo não era a fala ou a persuasão. Pelo contrário, o que eu mais fazia era ouvir. Isso era o que eu oferecia porque era quase tudo o que eu tinha para oferecer.

Interessei-me também pelo estudo e pela escrita (além do artesanato pelo qual sou até hoje apaixonada. – As pessoas brincavam que eu era mais artesã do que psicóloga. Não sei até que ponto isso era um elogio ou uma depreciação -), e assim promovia grupos de estudos com funcionários e usuários. A partir disso conseguimos montar a biblioteca do CAPS e angariar incentivo a partir de um projeto de cultura e renda. Conseguimos também, no decorrer de um ano, muitas outras coisas que poderiam ser destacadas n’outro texto, mas nesse eu quis contar um pouco sobre a forma como me infiltrei no serviço – pois, como já disse, enxergava minha postura como fluida e suave. Nunca a enxerguei como superficial, pelo contrário, acredito que há como agirmos ‘rizomaticamente’ sem arrebatarmos, assim como podemos nos desnudar sem conseguir as repercussões esperadas. Eu adorava trabalhar naquele serviço. Havia um equilíbrio substancial entre: desafios a serem enfrentados e a singeleza dos vínculos. Sentia-me realmente rica, embora, vez ou outra, abatida. E esse equilíbrio era, para mim, a saúde que ondulava e se movimentava num espaço tão cheio de vida… de vida que ansiava a criatividade. Posso dizer, veementemente, que tive naquele CAPS uma gestação memorável, embora ao invés de ter dado a luz, tenha tido um aborto forçado.