“As coisas não têm significação: têm existência.”
Fernando Pessoa
A data? Agosto de 2010, O local? Ala geriátrica do Hospital Regional de Porto Nacional – TO. Nunca me esqueço daquela manhã…
Eu acabara de concluir a primeira fase do curso técnico em enfermagem, um total de 14 meses de estudo entre sala de aula – parte teórica – e um estágio em uma Unidade de Saúde da Família (USF). E agora, nosso grupo havia sido encaminhado para a próxima etapa da parte prática de nossa formação, o estágio no hospital geral de minha cidade, nessa primeira etapa, a ala geriátrica.
A ansiedade dominava a cena, todos estavam lá, nervosos, instantes antes da chegada da nova professora designada para orientar o estágio. A tensão não era por conta da parte teórica, quanto a isso todos estavam seguros, a apreensão era porque, pela primeira vez, iriamos aplicar todo aquele conhecimento aprendido, e não havia garantia nenhuma de sucesso. Todos esperavam por aquele momento, mas ninguém tinha percebido, até então, a responsabilidade por trás dessa opção. Eu, sempre muito seguro, confesso que nesta ocasião era um dos menos nervosos.
Foi quando chegou à professora. Ela se apresentou, disse algumas palavras, mais regras para decorar… Protocolo por trás de protocolo, isso era moleza, pelo menos para mim que sempre tive boa memória. Então, munidos de nossos equipamentos e jalecos, entramos no hospital. No peito um crachá com a descrição: estagiário. Eu estava cheio de mim, até começarmos entrar nos e conhecer os pacientes. Eu pude ver em cada olhar, toda a admiração de quem, em meio ao sofrimento, esperava em nós, auxílio para um alívio em seu sofrimento.
Confesso que até então eu não havia percebido o real significado por trás daquela roupa branca. Até aquele momento eu não havia percebido o poder do qual é investido um profissional do campo da saúde. A coisa toda tomou um novo significado, e sob uma nova ótica comecei a entender o cenário. Fiquei maravilhado com cada detalhe. À medida que a professora nos apresentava o hospital (campo de estágio) e a funcionamento do local, eu ficava cada vez mais fascinado com a organização e a rotina de trabalho.
Era uma verdadeira sinfonia a forma como cada área se complementava; fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicólogos, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, técnicos de enfermagem, dentistas, auxiliares de serviços gerais, nutricionistas e assistentes sociais, todos juntos, dentro da sua ciência, em prol do mesmo objetivo: proporcionar certo alívio ao sofrimento daqueles pacientes. Era assim a ala geriátrica.
Fomos de quarto em quarto da ala geriátrica, conhecendo cada paciente, em cada leito. A maior parte daqueles idosos havia sido abandonada por suas respectivas famílias outros, já em fase terminal, recebiam o cuidado e assistência multiprofissional enquanto esperavam chegar sua hora, e em meio a estes estava seu Francisco1. Sua saúde debilitada chamou a atenção de todos, e de tanto nos interessarmos pelo caso, e nos foi delegado o seu cuidado.
Era um desafio, sua saúde exigia cuidado intenso e atenção dobrada. Logo nos inteiramos mais de sua situação, e descobrimos que ele era paciente de um asilo de idosos e que estava ali, em fase terminal, recebendo cuidados enquanto esperava sua morte, o prognóstico não era dos melhores.
Tínhamos outros clientes para também prestar cuidado, mas seu Francisco tinha cativado a todos nós, a empatia fora instantânea para com todos do grupo, e nos empenhamos ao máximo, dando a ele tudo o que podíamos: nossa técnica, atenção, carinho. Logo as outras turmas de estagiários também abraçaram a causa, e todos nos empenhamos em dar a seu Francisco muito mais que cuidado ou sua dieta – que era por meio de uma sonda – demos a ele amor. Genuíno, puro e fraternal.
Nosso trabalho naquele setor durou duas semanas. Na semana seguinte, ao sermos relocados para o estágio no centro cirúrgico perdemos contato com Seu Francisco, mas tínhamos deixado à orientação para que a equipe seguinte seguisse com o mesmo cuidado. Eles haviam aceitado de bom grado a proposta, e se comprometido, afinal, o carisma daquele senhor cativava a todos, instantaneamente.
Outra semana se passara, e quando voltamos para visitar Seu Francisco, a surpresa, o paciente que era terminal, havia recebido alta, devido ao rápido avanço e sua melhora. A alegria era visível nos olhos de todos, e em mim, a satisfação da sensação de dever cumprido. Fiquei alegre, não simplesmente pela eficácia de nosso trabalho, ou por sua melhora, mas por ter ajudado uma vida.
Algum tempo depois descobri que Seu Francisco faleceu 3 meses após esse acontecido. A notícia não foi recebida com pesar nem com tristeza, mas com a certeza, de que ele tinha vivido uma vida plena e de que, certamente, tinha recebido com bom grado seu momento.
Aquele primeiro caso mudou minha vida, e meu modo de ver muitas coisas. Seu Francisco nem sabe, mas pude aprender mais com ele do que com a maioria dos livros com os quais passei horas agarrado lendo e tentado entender sobre como curar pessoas. Ele me fez perceber que maior e mais poderosa que qualquer palavra, é um ato de amor.
Nota:
1 Nome fictício, utilizado para preservar a identidade do paciente.