O “Circuito” fora da instituição total

Fazer de experiências profissionais um roteiro é tarefa difícil. Difícil, pois a prática profissional do psicólogo se dá em momentos nos quais tendemos a limitar o espontâneo das relações humanas, pois comedidos, devidamente, pelos conceitos e técnicas de nossa formação. A exposição é maior ainda quando resolvemos falar de experiências infelizes, ditas erradas, por se empregar uma técnica de forma falha ou até mesmo de agir de forma antiética, não abominável, mas tendo em vista a contradição que pode haver entre a ética da técnica e a ética pessoal (importante ressaltar que, na determinação antiética, aqui não se está julgando intencionalidades). Poderíamos perguntar: por que falar de experiências ruins, desastrosas ou simplesmente não exitosas? Afinal, de dramas já bastam os diversos cotidianos que encontramos como profissionais e em nossas vidas pessoais. Mas poderíamos perguntar também: e por que não falar? Afinal, problematizarmos nossas experiências enriquece práticas e conceitos. Todavia, pretendo aqui, antes de contar o causo, defender que, falar ou não de tais experiências, não se trata de uma questão de escolha, mas, antes, de necessidade.

Refiro-me aqui a experiências que ocorrem, em especial, em serviços de saúde e de saúde mental. A característica inusitada dos dias, do cotidiano de um serviço de saúde e de um serviço de saúde mental nos chama, constantemente, a reinvenções de nossas práticas e de nossos conceitos; a característica interdisciplinar desses espaços nos demanda um movimento constante de assimilação e de acomodação; aliás, estas características não se resumem aos serviços de saúde, mas seguem em nosso cotidiano de vida. Nesse tipo de prática profissional as possibilidades de relacionamento no ato de cuidado são tão amplas, em número e formas, e também imateriais, pois não palpáveis, não consumidas como a um sapato qualquer, que fica difícil falarmos das experiências por meio da categoria “erro”. Mas logicamente que, em nosso calvário reflexivo, encaixamos diversas ações na categoria das “erradas”.

Alguns se culpam e outros não, o que me leva ao principal fator que justifica a necessidade de falarmos de nossas experiências não exitosas, que é: nos culpamos, pois não temos espaços em que falamos e que não somos julgados pela virtualidade chamada “intenção”, seja por nós, seja por outros, com a conseqüência lógica deste julgamento, a reprovação. Volto, portanto, à minha tese da necessidade, completando-a devidamente: necessitamos falar de nossas práticas desastrosas, pois nos enriquecemos, desde que seja num espaço sem o crivo do julgamento das intenções escondidas, remota e profundamente, em nosso ser id-ota. Que o julgamento reflita sobre conseqüências de ações tendo como norte orientador o tipo de sociedade que queremos estimular, que se dá exatamente pelas conseqüências presentes no nosso dia a dia. Agora sim, vamos ao caso.

Em resumo:O CONTEXTO: o cara, cujo braço dava duas das minhas coxas, estava, no linguajar psiquicológico, entrando em crise maníaca do Transtorno Afetivo Bipolar, sem medicação; a mãe do cara extremamente amedrontada pelo que já viveu em outros tempos estava pedindo socorro, diariamente, ao CAPS; o cara começou a ter um quadro de narcolepsia (dormia de repente; muitas vezes em sua cama, com o cigarro na boca; além de um problema clínico importante, havia um risco de se queimar e de queimar seu quarto) e não aceitava qualquer abordagem clínica.ATO 1: um monte de profissionais sem saber o que fazer e com uma batata quente na mão: a guia de internação assinada pela médica do serviço (que no momento não se encontrava) pressionando de um lado (impressionante como somos estranhos; uma folha assinada nos faz repensar toda a necessidade de vida de um sujeito) e com a mãe do cara pressionando do outro lado (ou do mesmo, não sei); mas tinha também uma preocupação geral com isso da crise estourar (o histórico de crises do cara era de violência), da saúde dele piorar e de ele se colocar fogo; ele negava, com frases de sentidos inquestionáveis (como, não quero saber de médico e nem de psicólogo) qualquer abordagem clínica. Conclusão da equipe: convencer o cara de se internar.O ATO 2: O convencimento se deu na base da troca, sugerida pela mãe: ela o convencia a se medicar em troca de um sapato. Assim se fez e ele dormiu. Três horas depois a ambulância chegou; o cara meio tonto percebeu a cena toda, mesmo medicado-dopado percebeu que iria ser internado, sem seu consentimento, aliás, sem saber do fato e agrediu um profissional o que justificou a necessidade da internação, na lógica mais clássica de uma instituição total, processo definido por Goffman de “circuito”.

Na verdade, esta história, este fato é muito mais rico em detalhes, inclusive de tentativas e tentativas, anteriores a estas, de se fazer vínculo com o intuito do cuidado clínico do rapaz. De fato, é mesmo difícil de expormos e discutirmos ações desde o começo mal preparadas, equivocadas até, e não se ver, desde o mesmo começo, que a coisa estava é armada pra dar “errado” mesmo. Mas, como me diz um amigo, é muito fácil falarmos de futebol na segunda-feira. Enfim, o relato poderia se estender em mais atos narrados, mas tal detalhamento não serve para o objetivo dessa reflexão, que é deixar o seguinte questionamento: que mecanismos operam em serviços de saúde mental que, mesmo com pessoas preocupadas e empenhadas num trabalho orientado pela Atenção Psicossocial (essa é uma avaliação pessoal de alguém que confiava em colegas de trabalho), relações como essas do circuito e outras que podemos chamar de totais (com as características das relações construídas em instituições totais, em especial nos hospitais psiquiátricos) são reproduzidas, mesmo que não sejam a regra, mas são reproduzidas?

E não me venham com respostas que já tenho como, por exemplo, as mudanças culturais, técnicas e conceituais são sempre processuais e daí por diante. Sei que são. Concordo. Mas é que essa problemática que deixei pode ser feita de outra maneira, menos trabalhada conceitualmente, não menos importante e inquietante por isso (talvez por isso mais inquietante, pois direta, sem mediações conceituais). Assim se pode refazer a questão: por que definimos, às pessoas, “cuidados” que elas não querem, como uma internação involuntária? Ainda muito conceitual, tentarei de novo: por que continuamos achando que podemos definir e controlar a vida, em suas mais diversas formas de expressão?

É possível que, deparando-me, mais uma vez com a mesma situação que relatei, faria, hoje, o mesmo. É difícil filosofar na linha de frente, quando lidamos com a vida das pessoas; há urgências mentais e afetivas. A partir da contradição entre a reflexão do parágrafo acima e esta, deste, encerro com uma questão: na saúde, há as ocasiões das urgências e emergências, por exemplo: o corte profundo deve ser rapidamente saturado para que a pessoa não morra por perder muito sangue; hemorragias internas devem ser prontamente tratadas, se não a pessoa corre risco de morte e assim por diante; e a pergunta que encerra é: que tempo é esse em que vivemos que se criam as emergências mentais e afetivas, tanto pra quem sofre (a pessoa em crise) quanto pra quem o atende?