O que fazer apesar do medo? um relato sobre fobia e autocuidado

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Desde que me entendo por gente, experiencio um pânico e medo enormes relacionados a qualquer tipo de situação que contenha procedimentos invasivos, tanto (e principalmente) em mim, quanto em outras pessoas. Nunca consegui ver nenhum familiar ou amigo passando por cenários desse tipo, nem que fosse para assistir meu avô aplicando a insulina para o diabetes. Em situações que envolvem terceiros, sempre me retiro do recinto ou ao menos olho para o outro lado, sentindo uma onda de calor gelada que percorre todo o meu corpo e contraindo minhas mãos e pés. 

Quando as situações envolvem procedimentos que precisam ser realizados em mim, no entanto, a situação fica um pouco mais traumática e diferente. Se fosse para rotular, talvez fosse uma fobia específica do tipo sangue-injeção-ferimentos, daquelas em que o medo ou ansiedade são desproporcionais em relação ao perigo real imposto pelo objeto ou situação específica. Enfim, rótulo ou não rótulo, fato é que passei muitos momentos da minha vida até então ouvindo que precisava superar isso, “me controlar” (como se eu não tentasse a todo custo) ou “parar de frescura”. 

Este último ficou especialmente mais frequente depois que eu fiz as tatuagens que hoje fazem parte de mim. Quando isso acontece, sempre explico que o “problema” é tudo que sai, entra e é caracterizado como invasivo no meu corpo. Ainda que eu saiba que a agulha, ao fazer a tatuagem, de fato perfura microscopicamente a pele, não é algo visto ou sentido de forma aversiva como uma injeção, por exemplo. Também já ouvi muito que trata-se de uma fobia seletiva, pois, frente aos “meus interesses pessoais”, ela não é manifestada. Daí, lembro sobre a minha vontade de ter piercings, principalmente nas orelhas, infelizmente impedida pelo contexto fóbico, pois, aqui, de fato algo perfura e atravessa. 

O argumento da tatuagem sempre é usado, às vezes de forma descontraída, às vezes com o objetivo de constranger, por profissionais da saúde, surpreendentementemente despreparados para lidar com esse tipo de situação. Fato é que, para além da impossibilidade de ter os piercings, acabo tendo minha saúde negligenciada em decorrência desse cenário, pois minha estratégia de esquiva é evitar tudo o que não é caso de vida ou morte (ou que não esteja me causando uma dor pior do que a imaginada pelo procedimento).  

Por muito tempo, sofri de forma intensa imaginando como poderia simplesmente tirar essa parte de mim para fora da equação da minha vida, imaginando como poderia “superar” esse problema e seguir em frente, como todo mundo dizia. Me relacionava comigo mesma de forma muito dura, cobrando de mim uma postura que eu não conseguia performar. Ainda que eu tenha sido uma criança que passou por muitos procedimentos que incluíam agulhas, pois tive condições relacionadas ao crescimento esperado e precisei fazer o uso da medicação, que era injetável, por 2 anos, isso não diminuiu e nem me ajudou a lidar com esse medo desproporcional (talvez tenha o intensificado em alguns sentidos). 

Dentro dessa trajetória, me lembro da primeira vez em que eu não tive uma experiência tão catastrófica com a fobia, pois estava passando por um problema de saúde em que eu sentia tanta dor que, quando cheguei ao centro cirúrgico para que fosse feita a sedação venosa, eu simplesmente não reagi. Infelizmente, descobri da pior forma que, ao contrário de um simples exame de sangue, em que reconheço que não há contexto de dor aguda, mas sim de um leve incômodo, ser perfurada na veia que fica localizada na mão é bem chato, o que reforçou o contexto fóbico e me fez sentir muito mais despreparada para os procedimentos posteriores. 

Assim, me mantive afastando, esquivando e negligenciando minha saúde, até que, no início de 2025, meus dentes do siso começaram um processo inflamatório e eu fui informada de que teria que passar pela retirada dos quatro. Essa situação, então, se enquadrava na minha exceção de “uma dor maior do que a potencial provocada pelo procedimento”. E a verdade é que o problema nunca foi sobre a potencial dor dos procedimentos, ou sobre a dor que viria depois, porque, contanto que eu não tenha um corpo estranho no meu corpo me provocando sensações, está tudo certo (quando todos estavam preocupados sobre os efeitos colaterais da vacina do COVID-19, eu estava preocupada com o momento de receber o medicamento em si). 

O problema real é imaginar o procedimento, independente da dor que ele pode causar. Na cirurgia do siso em específico, o que mais assustava era a ideia da tração feita para a retirada do dente, a sensação do dente se descolando e os pontos (sim, os pontos) que seriam deixados ali depois. E aí, muito se fala sobre como a terapia é importante, e pouco se fala sobre como, em um processo psicoterapêutico em que você é o profissional psicólogo, você também se beneficia com o potencial terapêutico daquela troca, daquela intersubjetividade construída. 

Levanto sempre muitas reflexões com meus pacientes sobre as coisas que eles fazem apesar do medo, porque, talvez, ele também fará parte da caminhada e seja mais uma questão de descobrir como esse processo pode ser mais leve. Carl Rogers também disse sobre como é curioso o paradoxo de que, quando aceitamos determinados estados, então podemos começar a mudá-los. Percebi que estou (porque isso pode vir a ser diferente) fóbica pela maior parte da minha vida e que, mais do que concentrar meus esforços em tentar excluir esse estado, talvez eu tivesse que encontrar formas de integrá-lo. Era um “o que fazer APESAR dessa fobia?” e não um “como eu posso fazer essa fobia desaparecer?”. 

Refletir sobre isso me possibilitou ter algumas ações intencionais que me ajudassem a lidar com o cenário. Dentre elas, recrutei rede de apoio, resolvi tomar um calmante e “conversei” muito com o chat GPT, de modo que tirei todas as minhas dúvidas e esclareci todos os cenários hipotéticos catastróficos que se passavam pela minha cabeça (essa é uma das formas de se utilizar a inteligência artificial como uma grande aliada). Além disso, se eu acredito que a realidade não existe por si só e que não nos relacionamos com ela objetivamente, não se tratando de um espelho que reflete as experiências, mas sim do modo que falamos sobre ela que cria os mais diversos cenários, comecei a usar isso ao meu favor e a falar – ainda que internamente – sobre a experiência de uma forma diferente e mais otimista. 

Acho que é por isso que dizem que pessoas pessimistas costumam ser infelizes e sofrer de mais cenários negativos, porque é através de palavras pesadas que elas descrevem as experiências que vivem. Enfim, apesar da fobia, passei pela experiência de forma muito tranquila em relação ao que eu estava esperando (ainda que tenha tremido na cadeira do início ao fim) e, agora, tenho uma experiência próxima de “neutra” para embasar novas narrativas. É difícil lidar com processos fóbicos justamente porque a tendência é que o indivíduo reaja com evitação e, assim, à nível de experiência, ele não tem artifícios para conseguir conversar com essa fobia. 

Por outro lado, tem um fenômeno que é curioso nisso tudo, que é o de que algumas pessoas lidam com essas estratégias de suavização como se fossem significado de covardia ou de que a pessoa continua com “frescura”, sem querer encarar o problema de frente. Por muito tempo, isso também foi uma questão que empacou meu processo, pois eu acreditava que tinha que encarar e pronto, oito ou oitenta. Às vezes, ainda que existam caminhos mais fáceis, as pessoas acreditam que só há valor naquele que gera mais sofrimento (e isso é uma questão geracional gigantesca que aparece muito no contexto clínico!). 

Hoje, penso que quero buscar todos os artifícios, ainda que eles sejam vistos como exagero ou frescura, para que eu consiga cuidar da minha saúde apesar da minha fobia. Que, quando houver a possibilidade de seguir caminhos mais fáceis, que me façam sentir mais confortáveis, eu possa escolhê-los e que tenham pessoas ao meu lado que construam realidades comigo de que isso é muito aceitável e recomendável. 

Não posso dizer que me encontro totalmente destemida em relação a enfrentar todos os meus processos apesar de estar num contexto fóbico, mas definitivamente eu estou mais perto do que estava antes. Definitivamente eu caminhei passos importantes que antes eu não havia trilhado. Definitivamente essa pode ser a oportunidade de, um dia, eu não estar mais tão fóbica como hoje esse contexto faz parte da minha vida. 

Se eu tivesse ouvido algo parecido antes, talvez tivesse me implicado nesses processos mais cedo. Talvez tivesse entendido que não era falta de coragem, mas justamente coragem em reinventar formas de lidar com o medo. Talvez tivesse sofrido menos por acreditar que só valia o caminho mais doloroso. Se alguém, em algum momento, tivesse me dito que buscar alternativas mais leves também é uma forma legítima de enfrentamento, eu teria dado alguns passos antes. Então, que este relato possa servir para lembrar a quem lê que nem sempre é sobre eliminar o medo, mas sobre escolher se mover mesmo com ele, e que isso, em si, já é profundamente transformador.

Mais do que ser sobre fobias, que tenhamos paciência com nossos processos e possamos nos ver em uma posição de fazer algo apesar da existência deles, nos reinventando para que buscar alternativas mais confortáveis não seja sinal de fraqueza, mas de (muita) coragem. 

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Graduanda em Psicologia do 10º período (bacharelado e licenciatura) pela ULBRA Palmas. Estagiária em Psicoterapia Clínica sob a ótica da Abordagem Sistêmica e no portal (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento, atuando na produção de textos e integrando a equipe editorial. Possui certificação Nível I em Terapia Focada nas Emoções. Atualmente exerce atividades de monitoria na disciplina de Psicologia Sistêmica e realiza estágio de licenciatura na disciplina de Psicologia da Sexualidade. Seus temas de interesse em pesquisa abrangem gênero, sexualidade, saúde mental, relacionamentos interpessoais e pensamento sistêmico novo-paradigmático

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