Para matar sua fome eu não tenho

Eles bateram em minha porta quando eu menos esperava. No caminho entre o assento e a porta, indaguei-me sobre quem poderia ser a essa hora; nunca se sabe o que pode acontecer quando alguém bate em sua porta às 03h00min da manhã. Não o convidei para entrar; nenhum lúcido convida um estranho para entrar em sua casa há essa hora. O olhar do visitante transmitia desespero e confusão em si mesmo, e apenas pediu dinheiro. De imediato, sem esperar ele terminar a oração, perguntei o que ia comprar com a quantia – mesmo já sabendo o que ia responder o andante. Antes; abri um pouco mais a porta – já que, por segurança, conversava apenas por uma fresta – para verificar a calmaria da noite e percebi que não estava sozinho o transeunte.

Esperavam, na margem da rua, seus praças, aguardando impacientemente o escolhido da vez. Pensava em muita coisa ao mesmo tempo. Temi que houvesse um estopim de ação que quebrasse o silêncio. Ou faria de tudo para contornar em um diálogo para evitar qualquer coação. Distanciei-me um pouco de mim, mas não fui longe, a ocasião não favorecia divagações. É característico de alguns, pensarem demais.

A voz do presente era falsamente mansa e dizia que o que queria de fato era apenas dinheiro para comer e pagar a passagem de volta pra casa – dele e dos que o esperavam. Olhei para baixo, de lado e disse: para comida e para passagem eu não tenho. Só tenho para você comprar uma pedra ou um “dólar”. Sua expressão foi da água ao vinho assim que terminei a proposta. Era uma mistura de surpresa e incredulidade. Um sorriso envergonhado e sujo tomou sua face envelhecida. – Então eu quero, respondeu de imediato. O convidei a nos distanciar-mos da porta. Ele formou a guarda como se esperasse um cruzado de direita. Um alívio me sobreveio, pois, agora sim, sabia não se tratar de ladrões, e sim de doentes, cujos químicos, personificados aqui como vilões, os usam assim como o vento usa as folhas perdidas pelos ramos.

A conversa, agora com a participação dos outros, rendeu o começo do dia. Permeava a naturalidade e confissões. Quando os utensílios acabaram, roubos aos pais e familiares se tornaram frequentes, e mil e uma aventuras para satisfazer a loucura do corpo por queimar a “cal”. Uma necessidade maior que a fome, que controla perversamente o pensar de vós outros.

Longe do conforto e dos pares, desesperados por embalagens que aliviem suas dores, concomitantemente, por socorro de uma sociedade cega que acompanha de longe (ou de muito perto) sem ação, o definhamento.

Ninguém quer saber o gosto do sangue, mas o vermelho ainda é a cor que incita a fome. Não é havaiana, mas todo mundo usa. Todos têm suas porções de soma diárias: apenas mudam-se os frascos, as embalagens, os malotes, as cartelas, as carteiras, as garrafas, as cápsulas, todas; direta e indiretamente compõem a força que mantêm um poder.