Sonhando Acordado

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
Jamais desista de ser feliz, pois a vida é um obstáculo imperdível, ainda que se apresentem dezenas de fatores a demonstrarem o contrário.
Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo.

Palcos da vida – Fernando Pessoa

É com esses fragmentos do poema Palco da Vida, do escritor Fernando Pessoa, que começamos a contar um pouco da nossa experiência.

Em primeiro lugar não pensem que essa é uma poesia escolhida aleatoriamente só pela beleza que ela representa, sua escolha vem de algo mais profundo, tem a ver com a história de vida de quem a fez e sua analogia com uma criança que tivemos o prazer ou, sei lá, o dissabor de atendermos.

O autor, Pessoa, teve sua infância e adolescência marcadas por fatos que o influenciaram posteriormente. Seu pai morreu aos 43 anos, vítima de tuberculose, quando Pessoa tinha apenas cinco anos de idade. O poeta perdeu seu irmão poucos meses depois e, pra piorar a situação, sua mãe entra em profunda crise financeira. Sua mãe casa-se pela segunda vez e Pessoa tem que dividir a atenção da mãe com os filhos do novo casamento e com o padrasto.

Pessoa, a partir de então, começa a “outrar-se”, escrever “outros eus” com biografias próprias, mas que representam intimamente os desejos do autor que os produziu. Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos traduzem de forma simples os amores, desejos e vontades de Pessoa.

A criança sobre a qual falaremos será chamada de Fernando (nome fictício, escolhido por analogia ao autor citado acima).

Fernando, ao dar entrada no serviço de Psiquiatria da Faculdade ITPAC Porto Nacional, foi atendido, individualmente, por nós, acadêmicos. Na entrevista, ao ser perguntado sobre sua família, o mesmo a descreveu como uma família feliz. Seu pai todos os dias o levava e o pegava-o na escola, brincava com ele durante o caminho, contava piadas e sua mãe muito atenciosa sempre estava em casa, a esperá-lo com uma comida prontinha. Aos finais de semana, jogava bola com o pai e com os irmãos e, muitas vezes, o pai o punha para dormir, lendo livros de histórias infantis.

Mas como nem tudo o que parece é, entra pela porta a supervisora da instituição em que a criança era interna e logo vemos o semblante do menino mudar e, junto com ele, a sua história. Para nossa surpresa, conta a supervisora que aquela criança que apresentava um bom quadro clínico mental, estava figurando todo tempo a sua história. Fernando tem cerca de nove anos de idade e vive em um abrigo de menores, foi levado até lá há cerca de um ano, depois de ter sido retirado da guarda de seus pais pelo Conselho Tutelar, pois, Fernando, era vítima de agressões físicas constantes e maus-tratos, principalmente de seu pai. O garoto já apresentava sequelas provindas dos abusos físicos que sofria e nada que havia nos contado, principalmente em relação a seu pai, era verdade.

Atualmente ele vive cercado de crianças que têm histórias de vidas tristes como a sua e uma coisa em comum – embora sejam bem tratados por boa parte das pessoas da instituição, não têm convívio familiar.

Ao ver que estava em meio a pessoas desconhecidas e em um lugar totalmente novo, Fernando, desvinculado com o meio em que vivia, percebeu que havia a chance de refazer, recontar a sua história de vida. Embora a criança vivesse uma vida desgraçada, ela agora tinha chance de reconstruir sua história, mas dessa vez seria como Fernando realmente queria que fosse sua realidade, ou seja, com pais maravilhosos.

Vocês devem estar se perguntando: “o que Fernando Pessoa tem a ver com o Fernando por nós atendido?”.

Pessoa utiliza-se dos heterônimos e Fernando, a criança, utiliza-se de um processo chamado desterritorialização, para que possa sair do lugar onde não quer estar, e criar esse outro mundo. Contudo, ambos procuram a mesma coisa: expressar seus desejos mais íntimos, isto é, seus sonhos, até antes inatingíveis, agora ganham vida e se concretizam mesmo que no território da imaginação onde a verdade pode ser disfarçada ou a mentira não tem necessidade de ser verdade.


Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.