Tudo o que nos acontece, corretamente compreendido,
leva-nos de volta a nós mesmos;
é como se houvesse um guia inconsciente
cujo propósito é livrar-nos de tudo isto,
fazendo-nos depender de nós mesmos.
(JUNG, C. G.1973, p. 78)
Sair da posição de conforto e se aproximar dos conteúdos mais íntimos do outro. Colocar-se a disposição do outro, compreendendo toda a carga afetiva de sua dor. Permitir-se tocar pela dor do outro, sem imprimir nele seus próprios conceitos ou visão de mundo. Deixar-se guiar pelo sofrimento alheio, mas sem perder-se no caminho. Congruência. Empatia. Aceitação.
A primeira vista um emaranhando de palavras e frases desconexas, mas que carregam, em suma, grande parte da complexidade de exercer a psicologia atualmente. Afinal, que outra área do conhecimento ocupa-se tão avidamente do sofrimento subjetivo, propondo, por meio da escuta, uma cura/reabilitação?
Desafios que carregamos conosco ao propor uma intervenção urbana com o foco de mudar a visão de periculosidade que tem-se do sofrimento psíquico, em especial, transtornos de ordem psicótica.
O grupo escolheu realizar uma intervenção onde um sujeito/ator/aluno, vivenciaria uma crise fictícia de ordem psicótica. Imaginamos como cenário um espaço urbano de grande circulação de nossa cidade, que tem um grande fluxo pessoas, dos mais diferentes níveis sociais e graus de instrução. O grupo partiu da hipótese de que, ao se inserir em um ambiente com um leque tão variado de subjetividades, conseguiria um gama de respostas distintas à essa Crise.
A simulação pautava-se num sujeito avulso ao contexto, que estaria inquieto, incomodado com invasores no seu espaço. Por espaço ele se referia à um território imaginário, delimitado por um quadrado, que ficava no centro da rota das pessoas que transitavam pelo espaço urbano.
Minha função no grupo foi a de vivenciar a Crise. O que não foi nada fácil. Em primeiro lugar porque é muito cômodo apontar e criticar um sujeito que atravessa uma situação de crise, até mesmo tecer teorias sobre sua crise. Contudo, vivenciar isso na pele, se sujeitar a abrir mão de sua singularidade e se permitir imergir em um mundo totalmente alheio ao seu é, sem sombra de dúvidas, um desafio.
Ao longo da vivencia, emoções e pensamentos como medo e vergonha do que os outros pensariam a meu respeito se intensificaram. Pensei várias vezes em desistir. Uma precaução tomada pelo grupo, que me foi de grande apoio enquanto eu vivenciava o personagem, foi de alertar os vendedores ambulantes que trabalham no local sobre a simulação.
Outra dificuldade, e essa só apareceu após iniciamos a intervenção, foi a do momento de rompimento – a crise em si – foi a de fazê-lo em um ambiente onde não se pode medir a reação das pessoas. O grupo não previu que no horário escolhido (18h) haveria uma presença maciça de homens que voltam de seus trabalhos e utilização da estação para pegar ônibus para casa.
Sabe-se que homens tendem a ter uma reação mais agressiva do que mulheres. E meu medo, o tempo todo, era o de sofrer agressão física. Por se tratar de uma encenação onde o personagem se colocava na frente das pessoas que passavam pelo local, impedindo sua passagem por dentro daquele quadrado imaginário, havia o risco de uma reação violenta. Desse modo eu demorei um pouco mais a representar o momento de clímax da crise, o rompimento, permanecendo com um comportamento estranho e tentando interagir preferencialmente com as mulheres, que por sinal, sempre me evitavam.
Pela minha permanecia no local, percebia que as pessoas começaram a ficar assustadas, algumas paravam para me observar, outras iam e voltavam por curiosidade, mas permaneciam de longe. Em nenhum momento ninguém tentou conversar comigo. Mas era possível perceber a tensão no ambiente e o medo com o qual as pessoas me encaravam.
Com o passar do tempo, comecei a interagir ainda mais com as pessoas, cheguei até mesmo a impedir abruptamente a passagem de alguns, sempre me referindo a meu lugar de referência: o quadrado imaginário.
Obtendo como resposta das pessoas, medo e esquiva. Até esse momento, eu ainda não havia me sentido seguro para chegar ao ápice da crise, até que, num determinado momento, um dos colegas de curso que estava observando a intervenção resolveu tentar atravessar o quadrado, nesse momento houve o estopim da Crise, e eu gritei com ele a palavra “Saaaaaaaaaaaaaaaaaaaai do meu QUADRADO” em alto e bom som. Foi um grito alto, todos no meu campo de visão pararam para observar, e, em todos os rostos, pude perceber um semblante de medo. A partir daí passei a gritar e impedir que qualquer um atravessasse o quadrado imaginário, até o determinado momento em que um rapaz ameaçou me agredir, então eu optei por parar a intervenção.
Quando todos na estação perceberam que se tratava de uma encenação, pôde-se ouvir os murmúrios de alívio e, até mesmo, alguns risos. Acabou a tensão no ambiente. Então, os demais integrantes do grupo foram conversar com as pessoas que estava observando a crise, e lhes explicaram que se tratava de uma intervenção do curso de Psicologia.
Não posso negar também meu alívio em terminar a encenação, e de voltar à minha realidade. O medo de ser visto como estranho e perigoso me deixou apreensivo. Assustado. A sensação foi de completo desamparo. Foi uma experiência única, o que me permitiu sair da posição de conforto, para ver a Crise com outros olhos, não mais como um perito, mas como alguém que – agora – consegue entender como é não ter seu sofrimento ouvido por ninguém.
Nota:
Essa intervenção partiu da disciplina de Intervenção em Situações de Crise (2014/1) do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, com o intuito de perceber, em Palmas/TO, como a sociedade percebe e lida com a Crise.