O Nascimento da Clínica em Foucault: um poder-saber sobre a vida

No final do século XIX, Nietzsche, sob efeito de uma imensa sobriedade, atestou uma desconfortável realidade, moderna, que ainda nos percorre. A sentença profética de que “Deus está morto[1]”, realizada pelo filósofo alemão, configurou um verdadeiro diagnóstico de nossa época: não é mais Deus ou à Religião que reverenciamos, e sim a Ciência. O significado simbólico a que esta sentença denota é muito mais profundo que uma crítica cética dos dogmatismos religiosos. É o reconhecimento e a legitimação da Ciência como principal instituição produtora de verdades da nossa era. Atualmente, basta-nos um carimbo de “isso foi cientificamente comprovado” para que uma determinada constatação nos seja tomada como inerentemente verdadeira. Quando assim dogmatizamos a Ciência, negligenciamos o fato de que a produção de qualquer conhecimento é histórica e culturalmente localizada. O à priori de qualquer conhecimento ou moral estabelece-se em meio à relações de poder. De modo simplista, cabe-nos reconhecer que há um Poder que rege a produção de todo e qualquer Saber (ALBUQUERQUE, 1995).

No Collège de France, em sua cátedra referente à História dos Sistemas de Pensamento, Foucault desenvolveu, através de seus métodos arqueológicos e genealógicos, reflexões críticas de como se entrecruzam, historicamente, as relações entre o Saber e o Poder. O filósofo francês se ateve, historicamente, sobretudo, na transição da época clássica à modernidade. A ênfase neste período se deu, pois a passagem do Iluminismo para o século XIX representou o período de ascensão da Ciência que, sob os pressupostos metodológicos positivistas e empiristas, impôs-se institucionalmente, como produtora de verdades.  O saber agora deve ser provável, no sentido de ser provado, e, para assim ser reconhecido, deve possuir um objeto passível de observação, experimentação e análise (FOUCAULT, 1986). Na obra aqui analisada – O Nascimento da Clínica, Foucault busca compreender a racionalidade anátomo-clínica que permeou a consolidação do saber médico na modernidade, donde o principal objeto investigativo se configura na doença ou no corpo do ser que adoece (FOUCAULT, 1977).

Hoje em dia, sob os efeitos de um desconforto físico ou emocional qualquer, é mais lógico imaginar que uma pessoa recorra a um médico ou um psicólogo, até mesmo à farmácia, para (re)conhecer e tratar sua condição desagradável. Vivemos em um período histórico em que recorremos, primordialmente, à Ciência para a resolução de nossos problemas (ALBUQUERQUE, 1995). É pertinente presumir esta conduta, pois, tanto na clínica médica quanto na psicológica, projetamos um lugar de saber e poder acerca da constituição e funcionamento de nossos corpos. A Clínica domina um saber – legitimado pelo poder científico – de nossa natureza humana, que nos impõem um estado ideal e saudável – normal – de como deveríamos ser e estar no mundo[2]. Se, porventura, desviamos do presumido idealizado estado “natural” do qual deveríamos nos apresentar, logo nos assujeitamos ao olhar clínico da medicalização, único capaz de nos (re)conduzir ao imperativo maior de normalização(FOUCAULT, 2001).

Em Vigiar e Punir[3], na História da Loucura[4] e em seu curso dos Anormais[5], o filósofo compreende a instância da normalização se consolidar através das Tecnologias Positivas de Poder, que fundam as Sociedades Disciplinares. Não é difícil entender como estas sociedades funcionam, pois essas expressam exatamente o meio em que vivemos. Nascemos e morremos dentro de Instituições Disciplinares. Nascemos dentro de um hospital, somos educados nas creches, escolas e universidades, passamos pelo exército, pela igreja, crescemos profissionalmente no espaço de empresas ou fábricas, se desviamos somos conduzidos a manicômios ou prisões e, por fim, morremos em um hospital. Todas estas instituições, que atravessam a nossa vida, têm por objetivo nos tornar indivíduos dóceis, úteis e saudáveis, enfim, disciplinados. Conforme Foucault (1986), as Instituições Disciplinares, em suma, visam nossa normalização, pois, deste modo, somos capazes de nos inserir no mercado de trabalho, produzindo e consumindo. Por meio da normalização, tornamo-nos seres economicamente produtivos, o que nos encaixa perfeitamente à lógica do Sistema Capitalista. Foucault reconhece, portanto, o discurso médico como uma expressão da microfísica – equação – entre saber e poder (Albuquerque, 1995).

Foucault concebe o nascimento da Clínica no findar do século XVIII, quando a medicina moderna passa por uma transformação fundamental da organização de seu conhecimento e sua prática, apresentados agora sob um presumido empirismo que a coloca no glorioso lugar de Ciência. Para o filósofo, essa mudança estrutural não se deu em função de um refinamento conceitual ou da utilização de meios técnicos mais avançados, mas sim, da alteração de uma determinada configuração linguística que compõe o discurso médico. Houve uma mudança no nível dos objetos, conceitos e métodos que, sob uma variação semântica e sintática, pressupunham uma discursividade racional conveniente e pertinente ao modelo científico (FOUCAULT, 1977).

Conforme Foucault, a doença e o corpo doente não foram conjurados em beneficio de um conhecimento neutralizado, mas sim fundados para um olhar positivo. No espaço da Clínica, onde se entrecruzam corpos e olhares, o saber do sofrimento – alocado na subjetividade dos sintomas – é inserido num discurso redutor e objetivante. Sob o poder soberano do olhar empírico da ciência médica, tem-se o espaço da experiência aberto, tão somente, à evidência dos conteúdos visíveis. O que cria a possibilidade de uma experiência clínica é justamente a aplicação de um olhar sobre a doença que lhe confere objetividade. Há sempre no corpo doente um à priori concreto possível de ser desvelado, nas palavras de Foucault:

“A experiência clinica – do individuo concreto à linguagem da racionalidade – foi tomada como um confronto simples, sem conceito, de um olhar sob o corpo.” (FOUCAULT, 1977, p.XIII)

O problema de a medicina moderna se apoiar na racionalidade anátomo-clínica se dá pelo fato de que, para conhecer uma determinada verdade sobre um fato patológico, o clínico deve abstrair a pessoa doente, pois seu foco é a doença. Como a principal perturbação é trazida com e pelo próprio doente, Foucault aponta que a prática clínica vai muito além das evidências anatômicas e fisiopatológicas. A soberania do olhar médico é avaliada com estranheza por Foucault, afinal este:

“(…) dirige-se ao que há de visível na doença, mas a partir do doente, que oculta este visível, mostrando-o; consequentemente, para conhecer, ele deve reconhecer.” (FOUCAULT, 1977, p.8)

Neste modelo, não é o patológico que funciona em relação à vida, mas um doente que funciona em relação à própria doença, pois muito aquém do empreendimento de restaurar a vida, reconhece-se que é fundamentalmente porque morremos que adoecemos. Anteriormente, a morte era como uma contranatureza, misteriosa e comprometedora da vida, apresentada sob o fundo negro da doença. Na medicina das relações patológicas, a espacialização das doenças se dá no próprio corpo do indivíduo, deste modo, perceber o mórbido é mais uma maneira de perceber o corpo, pois a doença é apenas uma forma patológica de vida. A morte adquiriu características específicas, e um valor fundamental, a partir da experiência, do olhar da anatomia patológica. Na nova organização do olhar médico, o princípio da visibilidade torna-se regra absoluta, capaz de desvelar o órgão sofredor, explicando a origem de sua mazela, e indicando-lhe uma terapêutica adequada para cessá-lo da dor. O mal, a morte, a doença, tudo o que era fundamentalmente invisível e misterioso, subitamente se oferecem à claridade do olhar clínico (Souza, 1998).

Da Antiguidade ao Renascimento, o poder sobre a vida era confinado aos sacerdotes religiosos que, sob o domínio das verdades instituídas pela Igreja, através do ritual do confessionário, detinham as chaves do céu, da vida eterna. Nesse sentido, na época clássica, os médicos se comunicavam com a morte, ainda permeados por certo mito de imortalidade. A partir do momento em que o discurso científico se torna hegemônico, é nas mãos dos médicos que a vida deverá ser confiada. A medicina parece livrar-se do medo da morte, integrando-a a um conjunto técnico conceitual da qual ela é o núcleo do homem, o destino certeiro e inevitável, assim, a morte é a doença tornada possível na vida. A medicina moderna oferece-nos a face obstinada e tranquilizante de nossa finitude. Simbolicamente, aponta Foucault, a incessante busca por redenção espiritual foi sendo substituída, paulatinamente, pela qualidade de vida enquadrada nos padrões da normalização, pela busca por saúde. Para o filósofo, é quando a saúde invade o espaço outrora ocupado pela salvação da alma que o discurso médico e seu poder ascendem à máxima de nossa era.

Ademais, na investigação Foucaultiana, a mutação ocorrida no saber médico não se desarticulou das práticas sociais, pelo contrário, demandou toda uma reorganização do ensino e da prática hospitalar. Até o século XVII, o hospital, enquanto um espaço político e administrativo, era apenas o depositário da miséria e da morte próxima. No final do século XVIII, aos poucos, o hospital se articulou para se transformar em um espaço terapêutico, passando a formar médicos e produzir conhecimento. Na produção deste saber, a pureza da evidencia clínica, atrelada ao simples exame de um indivíduo, oculta e dissimula uma complexidade histórica da consolidação das experiências e métodos clínicos emanados na medicina moderna (SOUZA, 1998).

Ao estabelecer o limiar entre um acontecimento e o que ele prognostica, as doenças, por si próprias, enunciam suas verdades essenciais e ideais, os sintomas significam uma doença que é significada, pois estas nunca se dão, na experiência, sem alteração ou distúrbio. Quando a racionalidade anátomo-clínica organiza diferenças de casos individuais em constructos descritivos e explicativos de uma determinada doença, num sistema classificatório de diagnósticos, a intervenção médica é regida por uma norma. A tarefa clínica não se resume mais na simples busca da cura. Sob o registro de dados e sistemas estatísticos, a medicalização tem por base padrões, numericamente expressos, de uma normalidade idealizada.

O olhar empirista do médico, contudo, estará sempre atrelado a uma linguagem, intrinsecamente ligada às interpretações dos sintomas e sua transformação ou não em signos de doença, conforme demanda o raciocínio diagnóstico clínico. Neste sentido, há um manual que distribui as doenças em classes e espécies que é anterior à percepção e ao olhar, o que invariavelmente interfere no modo como o fenômeno patológico é visto (SOUZA, 1998). Ao transformar o sintoma num signo, a verdade essencial de uma doença, a singularidade se perde com a padronização, pois o saber científico se pretende totalizante. A institucionalização do saber sobre o corpo somada a metodologia científica dá ao saber médico um determinado status que engloba a saúde num padrão universal.

Ao se concentrar na identificação de seu objeto investigativo – doença, a clínica preocupou-se primeiramente em impor-se enquanto ciência, num paralelismo estabelecido para conformar-se aos paradigmas vigentes das ciências exatas. Se a normalidade per se não existe enquanto algo concreto, mas apenas num modelo teórico estatístico, deve-se então delinear os limites em torno deste conceito – que é também a presunção de limites. Ter na raiz de nossa categoria estruturante, a clínica, um conceito – da curva normal – que nasce da ciência estatística, um termo que emerge em meio aos imperativos empírico-positivistas de tudo mensurar, prever e controlar, é conjecturar também a neurose de se fazer esse tipo de ciência, que pressupõe um natural à priori de um ser que se constitui sócio, histórico e culturalmente.

Quando o olhar clínico pressupõe uma natureza humana concebida dentro de um padrão universal de saúde, ele deixa de se ater à complexidade multifatorial e intersubjetiva da qual somos constituídos. O ser humano é atravessado pela cultura, e mesmo que seu corpo expresse a demanda de questões vitais ou instintuais, estas já não se dão em um estado de pureza (MOLON, 2011). Tomemos como exemplo de análise a fundamental atividade humana da alimentação, crucial para garantia de nossa sobrevivência. Se, por um lado, alimentamos-nos em nome do imperativo da sobrevivência, nossos hábitos alimentícios não seguem a ordem de nossas necessidades fisiológicas, estes se dão, sobretudo, na dimensão do simbólico. Alimentamos-nos, não necessariamente, porque estamos com fome, mas porque, por exemplo, nos vemos diante da hora do almoço e assim nos compreendemos num determinado ritual de horários. Não sentimos, fundamentalmente, fome dos nutrientes que precisam ser repostos, podemos muito bem sentir fome de doce em um estado ansioso.

Animais selvagens não apresentam transtornos alimentares. O ser humano é atravessado por uma complexidade da qual a presunção fechada de uma natureza corpórea seria incapaz de explicar uma bulimia ou anorexia, por exemplo.

Diante de tais fenômenos, indaga-se, como pode um corpo doente, também constituído simbolicamente, expressar unicamente a verdade de uma natureza patológica? Há uma inegável singularidade da expressão das doenças por um corpo biológico, pois o dono deste corpo adoecido também se expressa – não somente por seus sintomas – e assim, transforma-se em um corpo simbólico que demanda do médico uma observação, decodificação e interpretação.

Conforme Luz (1988), o modelo científico moderno, mecanicista e organicista, demanda o surgimento de uma racionalidade anátomo-clínica que desloca epistemologicamente a medicina de sua tradicional “arte de curar” para se transformar, progressivamente, em uma disciplina das doenças. Sob o primário paradigma indiciário da arte de curar, tem-se a exigência interpretativa dos dados e a relevância dos fatos singulares que fazem referência a um conhecimento construído de maneira cumulativa. Quando a medicina se torna uma disciplina das doenças, tem-se um paradigma analítico que busca o universal, objetivando a doença, onde a possibilidade de variação está sempre integrada à estrutura da própria doença.

Com o nascimento da Clínica, o ensino e assistência se invocam de maneira unitária, de modo que os fatos patológicos, enquanto entidades observáveis, são apresentados dentro de estruturas de pares antinômicos, onde a clínica tenciona uma dialética. O olhar anátomo-clínico exige que um acontecimento, que é singular e subjetivo, seja encaixado, simultaneamente, em um modelo objetivado e universal (SOUZA, 1998). A dimensão destas constatações legitima a possibilidade de problematizarmos a clínica em seu lugar de campo intersubjetivo, onde a subjetividade é operada em uma qualidade hermenêutica, interpretativa, que, da primeira à última instância, operam em torno do sofrimento humano.

A fragmentação do saber em subáreas, sob o olhar positivista e naturalizante do corpo, conjurados para o conhecimento médico e não para a subjetividade do próprio doente, na pretensão de construir um discurso científico, transformam o hospital, prioritariamente, num lugar do saber. A medicina deixa o hospital, enquanto clínica, para ser mais uma escola, e a posição de cuidado do outro é postergada aos enfermeiros. Na posição de doutores de um saber, sobre um outro que é objeto, médicos destronam a posição terapêutica para ocupar um lugar que nos ensina como devemos viver.  Aqui, constata-se de maneira inteligível, o quanto o saber médico se articula ao poder disciplinar e normalizador. A ordem médica, assim compreendida articulada à microfísica do saber e poder, com seu olhar focado na doença e não na pessoa do doente, implica uma recusa e desqualificação da subjetividade e singularidade de cada fato clínico. Com um narcisismo científico que evoca o saber totalizante, único, certeiro e onipotente, tem-se a morte do olhar humanitário, individual. O olhar desta ordem clínica nos conduz a consolidação de um projeto lírico e idealizado, que vê na função médica, tão somente, um papel normalizador.

Não evoco com esta reflexão o fim da Clínica e nem tampouco de seu saber já constituído, mas demando e nos sensibilizo no sentido de buscarmos um olhar outro, não apenas voltado às evidências anátomo-clínicas, um olhar genuíno e humanizado que compreende empaticamente o sofrimento humano como algo que nos constrange e nos pertence a todos, enfim nos igualando em nossas condições existenciais.

 “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana.” Carl G. Jung

 

 

 


[1] Nietzsche, F. W. (2012). A gaia ciência.  São Paulo: Companhia das Letras.

[2]“A medicina não deve mais ser apenas o corpus de técnica da cura e do saber que elas requerem; envolverá, também, um conhecimento do homem saudável, isto é, ao mesmo tempo uma experiência do homem não doente e uma definição do homem modelo. (…) éimportante determinar como e de que maneira as diversas formas do saber médico se referem às noções positivas de saúde e de normalidade. (…) A medicina do século XIX regula-se mais, em compensação, pela normalidade do que pela saúde;” (FOUCAULT, 1977, p. 39)

[3]FOUCAULT, M. (2007). Vigiar e punir: Nascimento da Prisão. Rio de Janeiro: Petrópolis.

[4]FOUCAULT, M. (1997). A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva.

[5]FOUCAULT, M. (2001). Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes.

Psicóloga formada pela Universidade de Brasília (UnB), Acupunturista do Instituto Néctar de Terapias Chinesas (INTC) e mestranda em Psicologia Clínica e Cultura, na área de Intervenção em Crises, pelo PsiCC/UnB. Contato: larissatavira@gmail.com