É um equívoco tratar o que é pessoal como régua de medir o mundo, mas, numa perspectiva pessoal, falar sobre o Serviço Único de Saúde (SUS) é falar sobre o período em que estive na barriga da minha mãe, é falar sobre meu nascimento há quase vinte e sete anos, sobre injeções e vacinas e tudo que esteja relacionado ao âmbito da prevenção e promoção de saúde e, sobretudo, à saúde propriamente dita, a qual envolve todo um contexto biopsicossocial – acrescento ainda o aspecto espiritual.
Acontece que me vejo numa posição empobrecida visto que guardo poucas memórias de experiências pessoais que tive com este sistema, das quais a maioria ocorreu durante minha infância. Noutras palavras, ultimamente tenho tido pouca necessidade de frequentar o hospital. Porém, uma reflexão acerca do meu presente estado já permite-me deduzir a importância que tal sistema teve para meu desenvolvimento, ou, caso contrário, eu não estaria aqui com disposição para escrever este texto.
Não quero dizer que uma boa saúde é exclusivamente decorrente do fato de se frequentar serviços de saúde excelentes, trata-se de uma falácia reducionista. Digo que frequentar um sistema de saúde e acatar as prescrições de seus agentes – como médicos, enfermeiros… – é parte de um sólido fundamento da saúde. Contudo, quando falamos de um sistema público falamos muito do aspecto de todo um país no quesito saúde.
Assim, entra a perspectiva social, quando falar do SUS é falar de um sistema sucateado, lentíssimo e revoltante. A mídia denuncia hospitais com pacientes deitados no chão de corredores, ratos perambulando perto de doentes, profissionais com comportamentos antiéticos etc etc. A pandemia de COVID-19 propiciou momentos de extremo drama, aos olhos da grande mídia e população, no que tange ao SUS. Bem, quando se vê de longe parece haver uma maior percepção de um caos institucional e ético. Se pessoalmente me parece que o serviço público de saúde é adequado, quando ponho as lentes de outras percepções vejo o oposto. Como entender isso?
De modo geral, falar do SUS inevitavelmente envolve impressões nutridas por sensações de polos distintos, a grosso modo, de satisfação ou desaprovação, e não raro o debate alcança o patamar das ideologias políticas. Além disso, trata-se de um sistema que tem sido parte de toda a vida de milhões e milhões de brasileiros, seria impossível não haver uma carga emocional intensa. – Tudo o que muito importa ao homem lhe é tão forte como tudo o que o aborrece. – Certamente o adoecimento torna o indivíduo mui sensível à forma como é tratado por quem está ao redor, de modo que suas percepções tendem a ser ou muito negativas ou muito positivas.
Difícil saber até que ponto essas sensações são fidedignas à realidade do sistema e seus serviços. Mas, talvez essa seja forma de deslegitimar o sentimento do sujeito como usuário do sistema, em prol de se alcançar uma suposta objetividade, o que nos leva inevitavelmente a considerar o ponto de vista de quem recorre ao serviço. Então, convém revelar alguns dados estatísticos. Recente pesquisa Datafolha, ano 2018, encomendada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) revela que 77% dos brasileiros consideram o atendimento no SUS bom, ótimo ou regular. Sob minha ótica e experiências pessoais, me vejo nesse grupo.
97% já procuraram a rede pública nos últimos dois anos, sobretudo as Unidades Básicas de Saúde (UBS) onde são oferecidas vacinas e consultas médicas. Apenas 22% desaprovaram o sistema prestado, o qualificando como ruim ou péssimo. Contudo, dados demonstram que, muitas vezes, o SUS é pior avaliado por quem menos usa o sistema, logo, tendo maior desconhecimento do funcionamento deste (BRUNET, 2018).
Retomando o tópico no qual citei minha posição limitada por causa de poucas lembranças de experiências pessoais com o SUS, ressalto que, se grande parte da nossa infância já não está em nossa memória, não há fonte melhor a recorrer do que nossos cuidadores e pessoas mais velhas que presenciaram nossos anos iniciais. Assim sendo, busquei informações.
Minha mãe, que me conhece desde que eu mal existia, óbvio, disse-me não se recordar direito de fatos de vinte e seis anos atrás, quando estava grávida de mim – e quando o SUS tinha apenas seis anos desde sua fundação – Ela revelou, entretanto, que “o negócio foi mal feito, que o primeiro exame ultrassom ocorreu já muito perto do meu nascimento – e por iniciativa dos meus pais, não do médico”. Não me recordo desses fatos, mas sou levado a pensar que muita coisa melhorou de lá pra cá.
Lembro-me que, por volta dos, meus dez anos de idade passei por uma cirurgia na qual foi removida uma verruga de minha sobrancelha. Há alguns anos atrás também passei por processo semelhante. Ambos foram rápidos e não apresentaram complicações. Durante este último processo recordo-me de ter tido a impressão de que as pequenas cirurgias dos outros pacientes se davam de modo eficiente. Apesar disso, já presenciei longas filas e queixas de usuário do sistema.
Um exemplo frequente dos serviços prestados pelo SUS à minha família é a agente comunitária de saúde que frequentemente nos visita com sua pasta de papéis e seu chapéu,
atualizando a ficha de visita colada na porta de nossa cozinha. A agente de saúde comumente está percorrendo o distrito de Taquaruçu de bicicleta fazendo seu trabalho. Ela mostra que não apenas recorremos ao sistema como também o sistema vem até nós.
O trocadilho no título do presente texto me veio há muito tempo, por acaso. Mas, se de fato vejo o SUS sob suspeita? Penso ser uma questão muito limitada que não merece a resposta que requer. Creio que dizer que o sistema não funciona é ilógico, caricatural, e, se representasse a realidade, implicaria um caos social absoluto. Nosso sistema público de saúde funciona muito bem em alguns aspectos e algumas localidades, mas, tem sérias deficiências noutros âmbitos e centros urbanos.
Dois pontos cruciais, o processo de aperfeiçoamento da gestão dos serviços de saúde e da aplicação de recursos financeiros é laborioso e demanda muito tempo. A conscientização da população quanto à abrangência e níveis do sistema também é essencial para que todos recorram ao sistema adequadamente. Em uma última instância, isso depende muito de uma ética e compromisso enraizados na população, dois aspectos que se constroem com o tempo ao longo de gerações.
Referências:
BRUNET, Daniel. 77% dos brasileiros aprovam o atendimento do SUS. Disponível em: <https://www.conass.org.br/77-dos-brasileiros-aprovam-o-atendimento-do-sus/>. Acesso em 14 de novembro de 2019.