A Bruxa Morgana e o matriarcado pagão

Morgaine Le Fay ou Morgana Le Fay, ou simplesmente Morgana das Fadas, é um dos personagens mais intrigantes da antiga lenda do Rei Arthur, sendo apresentada como sua irmã, por parte de mãe.Seu nome Morgaine tem origem celta e quer dizer mulher que veio do mar.

A lenda conta que Morgana era filha de Igraine e Gorlois, Duque da Cornualha. Era uma sacerdotisa da Ilha de Avalon, sendo treinada por sua tia Viviane para se tornar a Senhora do Lago ou Senhora de Avalon.

Morgana teve um filho com seu irmão Arthur depois de um ritual sagrado. Essa criança se chamava Gwydion, tornou-se adulto e foi para a corte de Arthur, passando a se chamar Mordred. Mais tarde pai e filho se enfrentam como inimigos e se matam um ao outro em um duelo pela disputa do Reino. Morgana leva Arthur para Avalon, porém, ele morre ao avistar as praias da ilha sagrada. A lendária espada Excalibur é jogada no lago. A Ilha de Avalon se desliga quase por completo do mundo e a Bretanha cai numa era negra dominada pelos Saxões.

Uma das obras mais expressivas onde Morgana é apresentada é a colação de quatro volumes As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley. Morgana é retratada pela autora como uma sacerdotisa da Grande Mãe em uma cultura matriarcal e pagã. A obra coloca Morgana em uma posição de poder e conhecimento e relata a importante passagem do matriarcado pagão para o patriarcado cristão.

Mas o que é mais relevante é que em todos os relatos sobre a lenda Arthuriana, Morgana é um dos personagens mais expressivos e fortes. Como sua inimiga ou amiga, sua amante ou irmã, Morgana encanta, fascina, aterroriza e engrandece essa antiga lenda que povoa nossa cultura há séculos.

Como junguianos podemos cair na tentação de classificar Morgana como a anima de Arthur. E ela até pode ser assim descrita, mas sua análise ficaria limitada, pois Arthur é um Rei, um Herói.

Como rei ele pode ser considerado um símbolo do Self manifesto na consciência coletiva (Von Franz, 2005). Como Herói representa um arquétipo, mais especificamente um ego arquetípico. Ou seja, ele representa uma disposição arquetípica comum a todos, semelhante, que se manifesta de uma maneira ou de outra em cada ser humano e que é edificado pelo Self. Esse ego representados pelos Heróis, é um ego ideal, que permanece em harmonia com as exigências do inconsciente (VON FRANZ, 2010).
O Herói é aquele que vem restabelecer o equilíbrio psíquico, vem trazer vida a uma situação morta. Nas lendas, contos e mitos, ele traz renovação a Consciência Coletiva.

Arthur vivia em uma época pagã, onde imperava o Matriarcado e o culto a Grande Mãe Terra. Mas, não obstante Arthur é considerado a porta de entrada do cristianismo juntamente com o Patriarcado, onde predomina o arquétipo do pai.

Ao ser consagrado rei da Grã-Bretanha, Arthur, ao retirar a Excalibur, conhecida como “a espada do poder”, de uma sólida rocha, jurou fidelidade à bandeira pagã de Pendragon, seu pai. Mas ele a trai em favor da bandeira cristã, empurrado pela esposa Guinevere que possui formação cristã.

Morgana, então, se empenha em destruir o reino do irmão, pois juntamente com Merlin, ela simboliza o mundo pagão e o embate entre paganismo x cristianismo.

Arthur foi o representante da mudança na Consciência Coletiva, da Grã – Bretanha. Uma passagem essencial da era Matriarcal para a Patriarcal. Nessa época o modelo Matriarcal já não atendia mais as necessidades da consciência coletiva. A chegada do Patriarcado era indispensável para o desenvolvimento da consciência, que trouxe com ela a lei, a ordem e a tutela de um único Deus.

Vemos essa passagem em várias mitologias, como na babilônica com a morte de Tiamat pelo deus Marduk, que divide seu corpo em dois. A mitologia grega também apresenta Apolo matando Píton, e dividindo seu corpo em dois, como uma ação necessária para se tornar dono do oráculo de Delfos.

Arthur, assim como Apolo é representado como um símbolo solar, devido a sua ligação com a Excalibur, um símbolo da luz, consciência, e discriminação lógica.

A visão patriarcal instaurou na humanidade a ordem, o limite, as regras, a racionalidade e principalmente a objetividade, trazendo inúmeras melhorias e desenvolvimento em termos culturais, tecnológicos e sociais. Mas essa passagem e separação do período Matriarcal, mesmo sendo necessária para o desenvolvimento psicológico coletivo, ocorreu à custa da desvalorização do feminino que foi sacrificado e reprimido no mundo inconsciente.

E dessa forma, tudo o que está ligado ao Matriarcado como o paganismo, a magia, a sensualidade, os instintos e a valorização do corpo são considerados pecado, e Morgana, então, se converte em uma bruxa que conspira contra Artur. Basta lembra que as mulheres nessa época, como é relatado na história, passaram a ser consideradas bruxas e símbolos do pecado. Varias morreram queimadas devido a essa mudança.

Mas Morgana não é somente uma bruxa ou feiticeira, ela simboliza a dor do feminino desprezado. É tocante na obra As Brumas de Avalon, quando Morgana descobre que o culto a Grande Mãe não morreu, mas está apenas disfarçado e dormente, enquanto ela observa um grupo de freiras em adoração a Maria.

O que Morgana clama é novamente o reconhecimento das forças do feminino. Arthur como Herói tentou unir as duas forças, mas sucumbiu, uma vez que a humanidade não estava pronta para esse aspecto de Alteridade, onde masculino e feminino convivem em harmonia e respeito. Era necessário passar pelo pólo oposto.

E esse é hoje nosso maior desafio, resgatar essa sabedoria instintiva, do corpo, da terra e deixá-lo em consonância com o masculino, pois um depende do outro.

É importante lembrar que quando está para morrer Arthur é levado por Morgana para Avalon e morre em seus braços. E é assim com todos nós, no final seremos novamente recebidos pelos braços da Grande Mãe e retornaremos para seu ventre.

Referências:

NEUWMAN, E. A Criança. Cultrix. São Paulo: 1995.

NEUWMAN, E. A Grande Mãe. Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

Psicanalista Clínica com pós-graduação em Psicologia Analítica pela FACIS-RIBEHE, São Paulo. Especialista em Mitologia e Contos de Fada. Colaboradora do (En)Cena.