A mulher que olhou o mundo com os olhos de criança

Júlia Albuquerque Araújo, (conhecida como Juh), acadêmica na área de serviço social, é uma jovem nascida em 6 de maio de 2000 na região de Ceilândia (DF). Sendo a terceira filha de seu pai, e a segunda de sua mãe. Até seus quatro anos de idade relata ter tido uma infância comum, com uma família tradicional, seus pais e irmãos. “Preta de quebrada” é como gosta de ser referida, já que durante sua vida sempre morou em periferias.

Por meio da realidade em que ela foi inserida, absorveu os problemas que a rodeava de forma árdua, por meio da vivência. Sendo preta, favelada e mulher, sua vida não se diferiu de tantas outras, que foram jogadas a mercê da sociedade a partir dos poucos privilegiados. Mas por amor, sua vida baseia-se em uma narrativa cheia de superação, pesares e força para construir um mundo com uma realidade diferente. Ela é o exemplo das minorias que conseguiram seguir um destino diferente do predisposto a partir do que é oferecido socialmente, em um contexto de desamparo em diversos âmbitos.

Júlia não se contentou em apenas sonhar alto. Dentro de si, sabia que outras crianças e famílias precisavam de ajuda, amparo, e o básico para viver com dignidade. Iniciou então um projeto chamado, Unidos Por um Mundo Melhor (U.P.M.M). Inicializado em sua terra natal quando tinha apenas doze anos. Arrecadava doações, como, roupa, comida, além de levar momentos de divertimento e lazer para as crianças periféricas. Tudo isso possível pelas pessoas que se voluntariavam pela causa, e as empresas que comovidas pelo seu gesto a patrocinava. Júlia explica:

 

Se hoje existe a U.P.M.M é porque um dia eu não tive nada do que ela oferece. Ofereço a oportunidade de terem um dia de lazer, brincadeiras(…) ter um dia diferente, e acreditar em algo diferente. Tento fazer com que as pessoas se sintam importantes, que é o que cabe a cada um de nós fazermos. Tornando-se e tornando-as pessoas melhores.

 

Fonte: Arquivo pessoal

 

Para que ela chegasse a ter essa visão ampliada de seu próprio sofrimento, Júlia teve de passar por uma série de momentos dolorosos e extremamente difíceis. Sendo eles a separação de seus pais durante a infância, aos quatro anos. O pai enriqueceu e cuidou de sua outra família. Sua mãe, com quem ela morava, tornou-se usuária de cocaína. Em meio ao desinteresse e descaso dos pais, ela e seus irmãos foram abandonados, e acabaram ficando com a avó e tia. Ela relata: “algo que eu jamais ofereceria a alguém é a questão do abandono”.

As condições em que ela se deparou com seus novos responsáveis, foi também uma de suas problemáticas. A precariedade existia, mas de alguma forma, foi preenchida emocionalmente, a partir da fé, seus credos, e o zelo recebido da avó. Ela descreve um momento feliz de sua trajetória:

 

Se eu puder falar ‘pra’ ti qual foi o melhor momento da minha vida, foi quando eu morava com minha avó e não tinha nada, porque o nada que eu tinha era tudo, ‘tá ligado?’ E se era tudo o que eu tinha, então eu deveria dar todo o valor do mundo. Até hoje eu tenho um vestido verde com umas manchas roxas que ela fazia a mão, porque nós não tínhamos condição de comprar roupa. Naquele tempo eu odiava aquele vestido, achava muito cafona. Mas hoje, é a lembrança mais linda que eu tenho (…) O pouco que eu tive foi muito, e o necessário, para que eu aprendesse a dar valor aos mínimos detalhes.

Após alguns anos, sua mãe voltou grávida para busca-la, entretanto, ela nunca foi bem recebida, por ser a única filha negra. Sofreu agressões físicas e verbais por diversas vezes. Apesar de tudo, o hospital em que sua mãe trabalhava bancava uma escola de alto padrão pra Júlia, porém, a desigualdade social, e a inadequação a esse ambiente, esteve presente durante todo o tempo.

“Eu convivia com pessoas que tinham tudo, e eu não tinha nada. Para uma criança conseguir diferenciar essa situação, foi muito complicado” ela relata. A falta da presença contínua de um andaime, fez com que ela amadurecesse antes do tempo, e assumisse responsabilidades pesadas e precoces. Júlia foi uma criança com a infância negligenciada. Ela relata detalhadamente sobre:

 

Minha mãe nunca ficava em casa, então a partir dos cinco meses do meu irmão, quem foi mãe, fui eu. De ensinar a falar, a andar(…) hoje meu ‘pivetinho’ é lindo, moleque maravilhoso. Fui mãe aos doze anos de idade. Eu aprendi o que era amor com meu irmão. Era muita responsabilidade, eu era a mulher da casa. Eu com doze, minha irmã com treze, mas eu que comandava tudo. Ela tinha cabeça de treze, mas eu tinha cabeça de quinze. Minha mãe voltava aos domingos, e ela não gostava de me ver mandando em tudo, isso a deixava com mais raiva.

Foi a partir de suas vivências, que sua vontade de mudança foi fomentada. Suas observações para as disparidades sociais ficavam a cada dia mais visíveis. Ela relata como analisou seu contexto:

 

Eu estudava em escola particular no centro da cidade. Eu comecei a ter um contato com a sociedade de uma forma totalmente diferente. Convivi com os moradores de rua; conversei com eles, e entendi que tudo aquilo estava errado. Mesmo não entendo o motivo, eu precisava fazer alguma coisa. Foi quando me veio a ideia de fazer a U.P.M.M. Não sei como, nem para que, mas foi o que me salvou. Vi que tinha pessoas piores que minha situação, e pude ajudar mesmo que eu estivesse na pior também. Comecei a ‘trampar’ com moradores de rua, conhecer suas histórias, e ver que cada um é um mundo diferente. A gente pode fazer pessoas rasas verem sua profundidade. Não através de roupa e comida, mesmo que isso fosse ofertando, mas sim, fazendo com que se sintam importantes, vistas e sentidas.

Um de seus primeiros projetos aconteceu no hospital de base, em sua região, no dia das crianças. Onde tentou levar alegria aos corpos adoecidos daqueles que ali estavam. Sua experiência mais marcante foi com uma das crianças que estava em estado crítico do câncer. “Através do sorriso dele, pude perceber: o material não é nada”, ela conta. Foi ali que sua história de luta pela alegria daqueles em sofrimento iniciou; e continua até hoje.

 

Fonte: Arquivo pessoal

 

Antes de Júlia vir para a cidade onde mora atualmente, Palmas- (TO), ela abasteceu toda a comunidade de onde morava. Acabou por ser expulsa de casa pela sua mãe, e foi morar com o pai, que havia falido. Dessa forma vieram para a cidade mais nova do Brasil, em busca de melhorias de vida. Brevemente ela diz como se sentiu diante dessa mudança: “Aqui foi a nova oportunidade da tia Juh ser tudo o que ela queria ser (…) Hoje a Juh, é o sonho de uma menina de doze anos, que nunca achou que seria o que ela é hoje”.

 

Fonte: Arquivo pessoal

 

Seu psíquico foi fortemente conturbado durante toda sua vida. Teve de lidar com abandono, falta de suporte emocional e psicológico. Além das condições precárias e inadequadas. Viveu em lugares de pobreza e extremo risco, lidou com o racismo dentro de seu próprio lar, mas resistiu. Não teve tempo de ser criança, mas sonhou alto e além de sua realidade, assim como uma.

O desfecho de seu curso, foi controverso a todo seu estado de vulnerabilidade social e econômico. Talvez tenha vivido um fim diferenciado para sonhar um mundo melhor, e dessa forma, tornar as fantasias das crianças carentes uma realidade mais afável diante de tantas mazelas. Com suas atitudes de amor que vão muito além do imaginário infantil, ela transforma vidas com suas próprias mãos. Põe em rostos sofridos, um sorriso de gratidão. Júlia, é uma grande mulher. Júlia, é uma mulher negra brasileira, é um exemplo de ser humano. Seus olhos transbordam esperança, assim como o das crianças que tiveram a sorte de encontrá-la em seu caminho.

 

Fonte: Arquivo pessoal
Acadêmica de Psicologia no Centro Universitário Luterano de Palmas CEULP/ULBRA. Voluntária no Portal (En)Cena - A Saúde Mental em Movimento.