“A Bela e a Fera” tem sua origem em um romance escrito no século II d. C., “ The Golden Ass” (O Asno de Ouro), do erudito romano Lucius Apuleio. Mais especificamente, a história é baseada em um dos capítulos do livro intitulado “Eros e Psique”. De uma forma bem sucinta, [1] esse capítulo conta a história de uma jovem de bela aparência que foi vítima do ciúme e da fúria de Afrodite (a deusa do amor e da beleza). Tudo isso ocorreu porque Afrodite ficou indignada pelo fato de alguns homens (tão humanos) se deixarem embriagar pelas qualidades da moça e, pasmem, terem cortejado uma simples mortal como se esta fosse uma deusa. Assim, Afrodite enviou seu filho Eros (o deus do Amor) para atingir a pobre Psique com uma de suas flechas fazendo-a se apaixonar pela criatura mais monstruosa existente. Mas, claro, as coisas não ocorreram bem da forma que Afrodite desejou.
Há, ainda, uma versão européia mais moderna da história de Eros e Psique [2], escrita por Madame Gabrielle de Villeneuve, na França, em 1740. Esse conto de teor adulto “La Belle et La Bete” foi adaptado para o universo infantil alguns anos mais tarde pela, também francesa, Madame Le Prince de Beaumont. Villeneuve e Beaumont, através de sua Belle, mostraram que mais do que beleza física ou da necessidade de buscar a felicidade nos braços de um príncipe altivo, a maior qualidade da sua personagem estava na capacidade de tomar suas próprias decisões baseada na bondade de sua alma. E, então, retornamos ao mito da Psique, que segundo a mitologia grega é a personificação da alma. Esses contos do século XVIII assemelham-se mais, no que tange à essência da Bela, com a história que vimos no filme da Disney em 1991, que usarei como base para essa análise.
Um dos grandes diferenciais da Bela em relação às outras princesas da Disney apresentadas antes (Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida e Pequena Sereia), era que seu pai, longe de ser um rico ilustre ou um grande rei, era “apenas” um pobre inventor criativo. Para o povo da vila, ele não passava de um velho excêntrico que fazia coisas bizarras e que não dava limites para uma filha independente demais e com ideias estranhas demais para uma mulher.
Uma das características mais significativas da Bela é seu amor pela leitura. A possibilidade de ter alguém por perto que refletisse sobre o mundo e desafiasse o outro através do discurso, como Bela fazia com o Gaston (o homem perfeito e desejado pelas mulheres da vila), provocava constantemente algum tipo de desconforto. “Não é certo uma mulher ler. Logo ela começa a ter ideias … a pensar”, dizia Gaston.
E Bela fazia justamente aquilo que ele temia, ela pensava e, mais do que isso, ela imaginava um mundo diferente, pois ela sabia que tinha capacidade para sair dos padrões pré-estabelecidos e moldar uma nova realidade. Porém, o que mais irritava Gaston era entender (ainda que inconscientemente, pois processar pensamentos profundos não era bem seu forte) que, mesmo com sua aparente beleza e destacável força, aos olhos dela, ele era apenas um grande perdedor.
Ainda hoje, as meninas que passam muito tempo com seus livros e estudos são associadas, em vários filmes e programas de TV, a determinados estereótipos, como aqueles que vêm em forma de uma mulher estranha que usa grandes óculos, tem gestos estabanados e, principalmente, um comportamento antissocial. E, muitas vezes, são apresentadas em análises psicológicas superficiais como portadoras do Transtorno de Personalidade Esquizoide. Esse transtorno, segundo [3], “é definido como um transtorno de personalidade primariamente caracterizado por falta de interesse em relações sociais, tendência ao isolamento e à introspecção e frieza emocional e, simultaneamente, por uma rica e elaborada atividade imaginária interior”.
A Bela, em alguns sites, é apontada como portadora desse transtorno, pois era tida como antissocial pelas pessoas da sua cidade, já que não queria se relacionar com o homem mais desejado pelas mulheres da vila e criava um mundo que só existia em sua mente. Ao contrário disso, acredito que a apresentação de uma heroína da Disney criativa e independente como a Bela pode suscitar discussões sobre determinados pré-conceitos relacionados à mulher inteligente e a necessidade de seguir padrões de comportamento tido como “normais”.
Marissa Mayer – CEO da Yahoo!
Uma mulher ter o status de “geek” ou “nerd” no século XXI já não é mais sinônimo de viver em isolamento social, muito menos de ter fracasso profissional ou pessoal. Um exemplo disso é a Marissa Mayer, CEO e Presidente da Yahoo!, graduada e mestre em Ciência da Computação pela universidade de Stanford. Antes de ir para a Yahoo, ela trabalhou na Google e algumas patentes registradas pela empresa na área de Inteligência Artificial advêm de suas pesquisas.
É claro que o rosto bonito como o de uma princesa da Disney chama a atenção, mas o seu sucesso está vinculado especialmente à sua inteligência, sua competência profissional e a capacidade de liderança. Desde sua contratação pela Yahoo, em 2012, foi responsável por um aumento de 100% nas ações da empresa [4]. E, assim, a “bela” tem se destacado no mundo dos negócios voltados para a tecnologia, um mundo muitas vezes associado ao universo masculino, talvez pela exígua quantidade de mulheres em cursos superiores dessa área.
Voltando à nossa Bela…
Quando seu pai foi capturado pela Fera, ela assumiu o seu lugar no castelo, mesmo impactada com a aparência da criatura. Fez isso por ser extremamente protetora com aqueles que ama. Na verdade, sua curiosidade em relação à Fera e aos estranhos objetos falantes do castelo era maior do que seu medo. E essa é uma mudança marcante nos filmes de princesa da Disney, pois mesmo que a Bela esteja sendo mantida em um cárcere, ela tem o controle do seu destino e, principalmente, do destino da Fera. Como destacam Henke e Umble [5], ela é a primeira heroína da Disney que não se apaixona por alguém à primeira vista.
Mas, segundo [6], apesar dos homens já não terem o poder total sobre as mulheres e a relação entre eles ter se tornada mútua e dinâmica, a Bela e a Fera ainda “se centra na busca de uma mulher pela liberdade, que, paradoxalmente, só é encontrada quando ela descobre o sucesso no amor”. Particularmente, essa é uma afirmação que considero questionável, justamente porque a liberdade de pensamento é apresentada como característica da Bela desde o início de sua história, inclusive ela é capaz de enxergar a beleza da Fera porque consegue ir além dos padrões estipulados pelo contexto em que estava inserida.
Mas, não são apenas análises amenas que compõe o universo de “A Bela e a Fera”, na net existem várias discussões sombrias sobre a personalidade da Bela. A principal delas tem relação com o fato da Bela ter sido acometida pela Síndrome de Estocolmo. Segundo [7], “a Síndrome de Estocolmo é um estado psicológico particular desenvolvido por algumas pessoas que são vítimas de sequestro. A síndrome se desenvolve a partir de tentativas da vítima de se identificar com seu raptor ou de conquistar a simpatia do sequestrador”.
A associação apresentada em diversos sites pode ser assim resumida: a Bela é capturada pela Fera e, em seguida, inicia um envolvimento emocional com o seu algoz, vivendo uma espécie de relacionamento abusivo, que é vendido no filme da Disney como um tipo de romance ideal.
Mas, quando se faz uma análise dessa natureza não se pode esquecer o contexto sobre o qual a história foi construída. De acordo com o que é apresentado no filme da Disney, a Bela, em momento algum, busca a simpatia da fera, nem ele tem o tipo de personalidade que se deixaria levar pela sua beleza ou pelo simples desejo de deixar de ser fera. Isso é nítido quando é mostrada a cena da fuga da Bela do Castelo. A Fera vai atrás dela e salva-a dos lobos, mas não exige seu retorno, inclusive, algum tempo depois, exprime verbalmente que ela está livre para voltar à sua aldeia. Ele faz isso porque é incapaz de aprisioná-la, não apenas porque ele a conheceu melhor, mas porque se conheceu melhor.
A Bela sempre interage com a Fera de igual para igual, nunca como uma prisioneira. Ele, por sua vez, vai se transformando (ou trazendo à tona algo que já fazia parte dele) quando está em sua companhia, torna-se mais suave, sai do seu próprio mundo e tenta conhecer o mundo dela. Há entre eles uma semelhança que surge justamente pelo fato de serem encarados como diferentes pela maioria. E, ao contrário do Gaston, que só via a si mesmo quando olhava para a Bela, a Fera viu nela algo diferente, que o fez entender, inclusive, que presente poderia lhe tocar o coração. Assim, ao invés de lhe presentear com chocolates, flores ou promessas (como tinha sugerido o Relógio), coloca a sua disposição uma biblioteca.
“A Bela e a Fera” é uma história de amor, logo mesmo que muitos achem que a personalidade singular da Bela foi reduzida a mais um estereótipo “Disney” quando, ao final, ela se casa com o príncipe, ainda podemos acreditar que seu espírito livre e sua busca pelo conhecimento continuam presentes. Não temos uma sequência do “viveram felizes para sempre”, assim não saberemos se ela construiu várias bibliotecas pelo país, se foi responsável por desenvolver uma inovação tecnológica de impacto mundial ou se criou simplesmente uma dúzia de filhos, frutos do amor com o fera-transformado-em-príncipe-gato. Mas, talvez, ela tenha feito as três coisas (e muito bem), já que seguir um caminho não impede necessariamente a possibilidade de percorrer o outro.
Referências:
Filme – Ficha Técnica:
Título: A Bela e a Fera / Beauty and the Beast (Original)
Direção: Gary Trousdale, Kirk Wise
Elenco: Paige O’Hara, Robby Benson, Richard White
Roteiro: Linda Woolverton
Gênero: Animação
Ano: 1991
Artigos e Sites:
[1] http://www.pitt.edu/~dash/cupid.html
[2] http://www.humanities360.com/index.php/fairy-tale-analysis-beauty-and-the-beast-2-6032/
[3] http://pt.wikipedia.org/wiki/Transtorno_de_personalidade_esquizoide
[5] MATYAS, Vanessa. TALE AS OLD AS TIME: A Textual Analysis of Race and Gender in Disney Princess Films. Disponível em: http://digitalcommons.mcmaster.ca/cgi/viewcontent.cgi?article=1005&context=cmst_grad_research
[6] HENKE, Jill Birnie; UMBLE, Diane Zimmerman Umble. And She Lived Happily Ever After…The Disney Myth in the Video Age?. Mediated Women: Representations in Popular Culture. Ed. Marian Meyers. Cresskill, New Jersey: Hampton, c1999.