Ela foi a primeira mulher preta a ser jornalista em uma TV nacional, deixando um legado que jamais poderá ser apagado.
Glória Maria Matta da Silva foi uma das maiores protagonistas do jornalismo brasileiro. Nascida no dia 15 de Agosto de 1949, Rio de Janeiro, Glória foi a primeira jornalista a apresentar uma matéria ao vivo e a cores na Televisão do Brasil em 1977, época em que o jornalismo era majoritariamente dominado por homens. Segundo Ribeiro (1998), existia uma época em que as empresas jornalísticas pareciam ser feitas para serem ocupadas apenas por homens. Não havia banheiro feminino, as mulheres trabalhavam para servir os homens que ocupavam aquele espaço, sendo faxineira, atendendo telefone ou para fazer café.
Glória começou sua carreira na faculdade Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), sendo graduanda de jornalismo e em conjunto com os estudos, trabalhava como telefonista na Embratel. Na década de 60 foi princesa do bloco carnavalesco Cacique de Ramos e na década de 70 entrou na Rede Globo como estagiária de jornalismo.
A apresentadora estudou em colégios públicos, onde era destaque, pois vencia os concursos de redação da escola. Também estudou inglês, francês e latim. Em 1971, quando cobriu o desabamento do Elevador Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, o seu trabalho de telefonista a ajudou no apuramento da veracidade da notícia e foi neste contexto que ganhou uma posição de destaque. Ela foi a primeira mulher, e não apenas mulher, uma mulher preta a conseguir um papel importante na sociedade, e em uma época em que a mulher e mulher negra era (e não deixam de ser nos tempos de hoje) um sujeito descartável.
No Brasil, as mulheres negras estão dentro de duas vulnerabilidades sistemáticas: gênero feminino e raça. Podemos verificar essa vulnerabilidade no mercado de trabalho, por exemplo, contexto em que ocupações consideradas subalternas são socialmente associadas com mulheres negras. Ao longo dos anos 1970 e 1980, o trabalho doméstico feito por donas de casa não era caracterizado como atividade econômica (BRUSHCHINI, 2007). E na vivência das mulheres negras, a aniquilação de sua identidade profissional, de sujeito e indivíduo ainda é presente, por razões de estruturas hierárquicas de classe que ainda lhes são incumbido espaços e papéis quais são advindos da escravidão (NASCIMENTO, 2019).
O feminismo enquanto um movimento político e social traz reflexões sobre essas categorias, mas apresenta algumas lacunas importantes a serem abordadas. Segundo Carneiro (2013) o feminismo brasileiro vem de um viés eurocêntrico, podendo apagar o caráter central da raça, as hierarquias de gênero e a universalização vindo de uma cultura particular (a ocidental, branca e europeia) para o grupo de mulheres. Assim, é passível a invisibilização da realidade da mulher negra e o apagamento do seu protagonismo na construção sócio-histórica do Brasil, que é carregada de lutas. O feminismo negro é contribuinte para essas mulheres que são enxergadas como objeto dentro de uma sociedade comandada por homens brancos.
A sociedade estabeleceu a ideia de que mulheres negras existem apenas para servir aos outros, em decorrência da escravidão e exploração sexual que sofriam na “época” da escravidão (SILVA, 2014). As mulheres negras também sofrem invisibilidade em seus trabalhos, uma vez que não são vistas como referências nos trabalhos que ocupam (HOOKS, 1995). Na construção de um ideal, a branquitude, o corpo branco é idealizado, aquele que pode ser pertencente, atribuído a aristocracia, ao elitismo, o ser letrado e bem sucedido, o branco é o modelo que merece e deve ser contemplado. Diferente dos corpos negros, que são inapropriados, que não são pertencentes a algo ou lugar, existem para não pertencer, são corpos descartáveis (MARTINS, 2021).
Sendo pivô do seu protagonismo no jornalismo, em 1977 fez sua primeira, de muitas viagens internacionais para trabalho. Ela quem cobriu a posse do presidente estadunidense Jimmy Carter. Também foi repórter política em Brasília, cobriu a posse do último presidente da Ditadura Militar, em um período onde o jornalismo sofreu censura e as minorias eram atacadas, Glória Maria conseguiu levar essa cobertura para a íntegra. Visitou mais de 120 países e mais de 70 milhões de lares de todo Brasil. Entrevistou grandes celebridades como, Madonna, Freddie Mercury, Mick Jagger, Michael Jackson com direito a beijo e entre outras muitas. Glória trouxe autenticidade para a televisão brasileira.
É notório que a presença de profissionais negros e negras na televisão é pouco existente. O indivíduo de pele escura, quando são empregados na televisão, mesmo que com sua competência, são colocados para ocupar funções de bastidores longe da visibilidade pública (SODRÉ, 2014). Em uma entrevista, para a também jornalista Marília Gabriela, em 2002, Glória Maria declara que “(…) dizem que na televisão não há lugar para preto. Não existe mesmo. É real”. Glória Maria ocupa um lugar de representatividade, até de forma inconsciente, pois pouco se era falado sobre representatividade e lugar de fala quando a mesma começou a trabalhar. Ela se ambientou em um “lugar para homens” e de pessoas brancas, foi e é um exemplo visível para todos que chegar onde ela chegou não é crédito apenas do seu inegável talento, mas também de uma luta constante para ocupar o aquilo que diziam nãos ser para ela, e essa, infelizmente, ainda é uma luta muito atual.
Em 02 de fevereiro de 2023, o Brasil foi abruptamente tomado pela notícia do falecimento de Glória Maria, vítima de um câncer metastático, deixando o jornalismo e a TV brasileira órfãos, pois ela foi a mãe desses veículos. Sendo mãe solo, de duas adolescentes, as mesmas também se despediram de sua mãe, possivelmente com a certeza de que tiveram/tem uma mãe que abriu caminhos e portas para muitas mulheres e mulheres negras. Glória Maria foi um grande pilar em tudo que se propôs a fazer, foi figura de representação para aqueles, assim como ela, tem o sonho de pertencer a algum lugar. E, também, através da sua história, é possível ver a luta diária da mulher negra para conquistar seu espaço que lhe é seu por direito.
REFERÊNCIAS
BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos. Cadernos de pesquisa, v. 37, p. 537-572, 2007. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cp/a/KybtYCJQvGnnFWWjcyWKQrc/abstract/?lang=pt>. Acesso em 19 de abril, 2023.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, v. 49, p. 48-59, 2003.
CLEMENTE, Ana Tereza. Marília Gabriela Entrevista – 10 Anos de GNT. Globo: São Paulo, 2006.
HOOKS, Bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, v. 3, n. 2, p. 464, 1995.
MARTINS, Etiene. Vivenciamentos corpóreos produzidos e sentidos na interação comunicativa. ORIENTAÇÃO AFIRMATIVA, p. 97. 2021.
NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra no mercado de trabalho. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 259-263, 2019.
RIBEIRO, José Hamilton. Jornalistas: 1937 a 1997. Imprensa Oficial do Estado. São Paulo. 1998.
SILVA, Tauana Gomes. A participação política das mulheres negras comunistas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1984). In: II Seminário Internacional História do Tempo Presente-ISSN 2237 4078. 2014. Disponível em: <https://eventos.udesc.br/ocs/index.php/STPII/tempopresente/paper/view/181>. Acesso em 19 de abril, 2023.
SODRÉ, Muniz. A Ciência do Comum: notas para o método comunicacional. Petropólis: Vozes, 2014.