Os cisnes selvagens e o animus feminino

Os cisnes selvagens é um conte de Hans Christian Andersen, autor de O Patinho feio, Polegarzinha, A pequena sereia, entre outros. No começo do conto temos os seguintes personagens: O rei, onze filhos e uma filha. A rainha já está morta. Ou seja, temos doze personagens sendo que apenas uma delas é feminina. Temos masculinos demais! Podemos com isso supor, que a heroína, Elisa, precisa resgatar o elemento feminino faltante e equilibrar as energias.

Logo em seguida, surge a figura da madrasta, que de início odeia os enteados. Bem, a figura da madrasta é recorrente em contos de fadas. Símbolo da Mãe Terrível é ela quem desencadeia a ação e impele a heroína no processo de individuação.

Já que falamos do feminino, sabe-se que uma das suas características é se vingar da prole da concorrente. Vemos isso na Mitologia, a deusa Hera, quando traída, se vingava de Zeus não diretamente, mas atingindo a outra ou os filhos da relação extraconjugal. Aqui não há adultério, mas sabemos que quando alguém morre se torna divinizado e santificado. E com um ser divino a nova mulher não consegue competir.

Além disso, com ela passamos a ter 13 personagens. Bem, o número 13 corresponde no taro de Marselha ao trunfo da Morte. Em muitas sociedades primitivas, todos os anos, o velho rei é simbolicamente morto, desmembrado e ritualmente “comido” para assegurar a fertilidade das novas colheitas e a revitalização do reino (NICHOLLS, 2007). No caso do conto, temos um rei fraco que não defende os filhos e não se coloca contra os atos da nova mulher. Ou seja, a morte representada pela madrasta-bruxa vem para uma renovação do símbolo do Self na consciência coletiva representado pelo rei.

Revitalização e renovação. O reino precisa de um novo rei que aceita e acata o feminino e o traz sempre ao seu lado.

O lado masculino da mulher, o animus aparece muitas vezes, simbolizado por um grupo de homens. Ele representa um elemento mais coletivo que pessoal. Devido a este caráter coletivo, as mulheres referem-se habitualmente (quando o animus se expressa por seu intermédio) a “nós” ou a “eles” ou a “todos” e, em tais circunstâncias, empregam na sua conversa palavras como “sempre“, “devíamos“, “precisamos” etc (JUNG, 2002).

É uma imagem que emerge em uma quantidade de homens, um bando de pais, um conselho ou um tribunal ou ainda uma assembleia de homens sábios, ou então um artista transformista que pode assumir qualquer forma e que faz uso abundante dessa capacidade (JUNG, 2006).

Podemos supor que os irmãos, a um nível pessoal, formam a imagem do animus de Elisa, mostrando que a menina possui uma quantidade enorme de opiniões e pensamentos que precisam ser elaborados. O fato de não possuir uma figura feminina positiva no conto, indica que ela terá de construir a sua própria imagem do feminino. E terá de enfrentar esse animus na forma de um tribunal.

A bruxa-madrasta transforma os irmãos em onze belos cisnes brancos. O cisne branco é um animal associado à pureza e à luz. Na antiga Grécia, o cisne macho era o acompanhante permanente de Apolo, o deus da beleza, da música e da poesia, cujo carro celeste era puxado por cisnes. No mito de Leda, o cisne tem também uma simbologia masculina já que Zeus se transforma em cisne para perseguir Leda, que lhe foge transformada em ganso, simbolicamente semelhante ao cisne fêmea.

No Oriente, o cisne é símbolo da música e da poesia, para além de representar a coragem, a nobreza, a prudência e a elegância. Na Índia, o cisne é montado pelo deus Brama, e simboliza a elevação espiritual. Na tradição celta, os espíritos do outro mundo regressam ao mundo dos vivos sob a forma de cisne. São os cisnes também os responsáveis por trazer as crianças ao mundo em muitas tradições. Os cisnes, enquanto casal é um símbolo de fidelidade eterna, já que se unem para toda a vida e nunca substituem o companheiro morto. O canto dos cisnes é associado às juras de amor eterno e imortal.

Podemos fazer uma associação da relação de Elisa com os irmãos, muito próxima com a relação Artemis-Apolo. Apolo, irmão gêmeo de Artemis era a única relação significativa que a deusa tinha com um homem. O irmão é uma das manifestações da imagem arquetípica do animus. Enquanto a imagem do animus feminino está associada ao irmão a relação com os homens ficam comprometida, uma vez que com o irmão existe afetividade e companheirismo, mas não existe a relação erótica, que simbolicamente leva a coniunctio.

 

Sua relação com o masculino é fraternal, porém distante e destituída de Eros.

O cisne enquanto símbolo da fidelidade eterna mostra que Elisa está em um compromisso de fidelidade e devoção com o seu animus. E ele ainda se apresenta de uma forma instintiva, mesmo sendo um animal nobre como o cisne. Bem, Elisa possui um complexo materno negativo. A mulher com complexo materno negativo desenvolve uma defesa contra tudo o que é materno e feminino e a faz se aproximar do mundo masculino.

O propósito é quebrar o poder da mãe através da crítica intelectual e cultura superior, de modo a mostrar-lhe toda a sua estupidez, seus erros lógicos e formação deficiente, O desenvolvimento intelectual é acompanhado de uma emergência de traços masculinos em geral (JUNG, 2008). Por isso ela vê a mãe como madrasta e bruxa que a quer afastar dos irmãos e do pai que ela tanto ama.

Jung (2008) ainda nos fala sobre o complexo materno negativo:

De todas as formas de complexo materno é na segunda metade da vida que ela tem as possibilidades de ser bem-sucedida no casamento, mas isso só depois de sair vencedora do inferno do apenas-feminino, do caos do útero materno que (devido ao complexo negativo) é sua maior ameaça.

Portanto para que Elisa se case com o rei – animus positivo – deve passar pelo caos materno, e enfrentar e assimilar essa imago feminina negativa que foi construída em seu inconsciente.

Em termos coletivos, nossa sociedade ocidental pautada pela religião judaico-cristã, definiu uma imagem feminina bastante unilateral. A igreja admitiu o culto a Virgem Maria, mas essa imagem sofre de sérias restrições. Ela é uma imagem unilateral do feminino destituída de sua sombra. Aliás, como cita Von Franz (2010), a igreja acolheu a imagem da deusa-mãe, mas apenas na medida em que se submetia à aprovação do homem e se comportava “adequadamente”.

Tudo o que não se encaixava nesse papel adequado do feminino puro, submisso e virginal foi projetado na figura da bruxa. Portanto, nos contos de fadas a figura da bruxa-madrasta, é a projeção da sombra do feminino que foi desprezada e reprimida. Por essa razão os contos de fadas veem compensar essa atitude unilateral trazendo a solução do conflito para a consciência coletiva.

A bruxa não transforma Elisa em cisne, mas apenas os príncipes, uma vez que é o patriarcado que a transformou em uma figura sombria. E esse resgate do animus positivo é também um resgate do feminino, como veremos agora.

Os irmãos cisnes de Elisa a levam para uma terra distante e nessa viagem e ela entra em contato por meio de um sonho com a fada Morgana. Morgana é uma personagem muito conhecida da lenda do Rei Arthur. Ela é sua meia irmã, sacerdotisa da Grande Deusa e foi pelo patriarcado alçada a qualidade de bruxa.

Entretanto é essa figura que dá a Elisa a solução para trazer a forma humana seus irmãos.

Elisa deve fiar 11 túnicas em urtiga e não deve pronunciar uma palavra sequer durante esse tempo, mesmo com as mãos sangrando. O ato de fiar, tecer, costurar é uma atividade extremamente masculina. Nela deve-se ter muita paciência e permanecer em uma atitude de mobilidade durante um bom tempo. Para mulheres com um animus muito forte chega a ser desesperador ter que desacelerar o ritmo frenético e calar seus pensamentos. Vemos muitos exemplos nos contos de fadas onde a heroína se encontra com a atividade de fiar e tecer, como em A Bela Adormecida e Rumpelstilsequim.

O fato de não poder falar significa que ela deve calar as opiniões e generalizações de seu animus negativo. Sua atitude deve ser concentrada e totalmente voltada para o ato de fiar e costurar para assim poder colocá-lo em seu devido lugar e resgatar seu feminino. Aqui uma atitude unilateral para compensar a unilateralidade da atitude anterior é necessária para assim poder chegara um meio termo.

A urtiga é uma planta que começou a ser utilizada pelo Homo sapiens, desde 4000 a.C. Suas fibras eram utilizadas na fabricação de tecidos e mais tarde na produção de papel. A urtiga é conhecida por uma propriedade em suas folhas que se encostadas na pele, podem irritá-la, deixando uma sensação de que a pele fora queimada. Antes de serem descobertas as propriedades medicinais da planta o uso dela na indústria têxtil se manteve em alta até o século XX, mesmo já tendo sido descoberto o linho para fabricação de roupas e demais tecidos.

A urtiga apesar de queimar como fogo, vestia o homem dando caimento as roupas e melhorando sua aparência. O que significa que o fogo que queima e traz dor também ajuda a talhar e dar um aspecto mais humano aos príncipes. Isso se mostra quando os irmãos sentem compaixão pelo esforço dela e choram.

Elisa precisa permanecer mulher enquanto integra as qualidades de seu animus. E isso é uma tarefa árdua e dolorosa. O feminino é visto de uma forma negativa por isso a machuca e a fere, mas é nesse trabalho que se encontra a sua redenção. A princesa vai ao castelo com o rei que pretende se casar com ela, mas o arcebispo tenta envenenar o rei contra ela, dizendo que se trata de uma bruxa. O arcebispo representa o lado sombrio de seu animus – rei.

O rei permite que ela continue costurando as túnicas, pois trouxe suas coisas ao castelo, mas chega um momento que a urtiga acaba e ela deve buscar mais no cemitério. Ao ir ao cemitério encontra um grupo de bruxas que comem cadáveres humanos.

Essas bruxas representam o feminino ctónico, ligado a terra. Não se houve mais falar da madrasta, entretanto podemos supor que as bruxas e ela representam a mesma imagem, pois mais uma vez temos a morte presente. Elas representam uma face do feminino, justamente aquela suprimida pelo patriarcado. Elas são a face da anciã, da Grande Mãe, possuindo ligação com Hécate. As bruxas mostram um grande segredo do feminino, ao comer os cadáveres, elas nos dizem que todos nós voltaremos para o útero da Mãe Terra e seremos devorados por ela. Esse é o segredo da Morte. Viemos da mãe e voltaremos a ela!

Elisa deve passar por elas e não foi incomodada. Ela enfrentou a face da mãe terrível e devoradora e fez uma prece, ou seja, ela lhe prestou sua homenagem e respeito. Isso desperta a sombra do rei que passa a enxergá-la como bruxa e a entrega a julgamento.

A corte, o julgamento, o tribunal, geralmente aparecem nos sonhos femininos como uma manifestação do animus. Aqui Elisa deve enfrentar seus próprios julgamentos contra sua feminilidade. Ela transgrediu uma regra imposta ao comportamento feminino e acessou seu lado sombrio e toda transgressão gera culpa. Mas, infelizmente, sem esse lado sombra reprimido a mulher fica incompleta.

Elisa então é condenada a fogueira. E mesmo na prisão continuou tecendo as túnicas e não disse uma palavra. Ser fiel ao seu processo é uma questão importante no processo de individuação. Muitas vezes quem está de fora não entenderá o que se está fazendo. Uma pessoa que está em seu processo de individuação e não atende as normas do coletivo será muitas vezes julgada por seus atos. Um exemplo disso foi Cristo, que permaneceu sem reclamar durante todo seu calvário.

Aqui Elisa precisa mesmo sendo julgada pelo externo e interno ser leal ao seu processo senão tudo irá por água abaixo. Seus esforços em transformar seu animus e resgatar seu feminino não darão em nada. A verborragia do animus ainda deve ser contida para que no momento certo, a mulher possa colocar sue ponto de vista com assertividade.

Durante o caminho até a fogueira Elisa permanece em silencio e tecendo, até que aparecem seus irmãos na forma de cisnes e ela joga a túnica sobre eles, transformando-os em belos príncipes. Elisa desmaia de cansaço e dor e os irmãos explicam tudo ao rei.

Após seu exaustivo trabalho o feminino pode deixar seu masculino se expressar. Mas agora houve uma transformação, Elisa não é mais dominada pelo animus, mas é uma mulher feminina que assimilou as qualidades de assertividade e objetividade de se seu lado masculino. E assim ocorre o casamento sagrado, a coniunctio com seu masculino positivo e suas qualidades femininas e maternas podem ser expressas sem desvalorização.

Referências

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

JUNG, E. Animus e Anima, São Paulo, Cultrix, 2006.

NICHOLS, S. Jung e o Tarot – Uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 2007.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

Psicanalista Clínica com pós-graduação em Psicologia Analítica pela FACIS-RIBEHE, São Paulo. Especialista em Mitologia e Contos de Fada. Colaboradora do (En)Cena.