Histórias sobre loucos e hospícios normalmente acabam em piadas, tragédias, assuntos de paranormalidade ou filmes sobre serial killers. Gostaria, entretanto, de contar uma que nada têm a ver com esse tom depreciativo e hollywoodiano. Aliás, seria interessante dizer que essa depreciação já faz parte de um funcionamento cultural antigo, assim, as pessoas podem se eximir da loucura que habita as próprias emoções e pensamentos mais íntimos. À medida que louco é sempre o outro, ficamos seguros de que pertencemos ao time dos chamados normais − como se houvesse um.
Conto então essa pequena história, partindo do pressuposto de que todos somos normais: eu que escrevo e aqueles que lêem. Dessa forma, nenhuma ameaça deve pairar aqui do lado de fora dos manicômios que, diga-se de passagem, sempre tiveram um importante papel na História ao isolar a loucura da sociedade em espaços fechados, sem troca, sem vida, para que nós, os ‘normais’, nos tranqüilizássemos e toda hipocrisia fosse resguardada. Mas, isso é assunto pra outro caso. Queria mesmo contar um fato que vivi num grande hospital psiquiátrico, ao tomar conhecimento de uma história triste, singela e belíssima!
Seu Lino era morador de um setor para pacientes crônicos e estava internado há mais de trinta anos. Idoso, sem ninguém no mundo, vivia ali seu universo, isolado, arredio, sem palavras, desejos, reivindicações ou qualquer noção sobre o lado de fora. Já muito adoecido dos pulmões, se encontrava no estado terminal da doença.
Num dado dia, acamado e muito debilitado, falou pela primeira vez, depois de anos em silêncio. Todos se assustaram e foram saber o que desejava. Lino pedia que sua doutora fosse até ele. Logo a chamaram e esta se sentou ao seu lado, não menos espantada que os outros! Olhou para a médica com uma ternura jamais vista e disse que queria confessar-lhe algo, mas pediu que guardasse segredo. Contou que tinha um grande amor! Um único e verdadeiro amor que ninguém jamais soube. Ela, surpresa, sem ter muito o que dizer, perguntou quem era e por que não tinha vivido esse grande amor? Lino velho, louco, disse acanhado, com voz trêmula, quase apagada, que o único e verdadeiro amor de toda a sua vida, que por ele valeria a pena viver tudo de novo, era ninguém menos que Branca de Neve! Tirou do bolso naquele momento um papel amarelado, rasgado, trazendo a figura da pequena dama de Walt Disney. Pediu à médica que guardasse o segredo e colocasse a foto de sua grande amada junto dele quando fosse enterrado − sabia que estava morrendo. Os olhos da médica marejaram e, atônita, sem ter o que dizer, apenas concordou com a cabeça que seu desejo seria realizado. Lino faleceu, de fato, alguns dias depois…
Ouvi toda a história da médica, que me contava com os olhos cheios d’água e não pude evitar que os meus também ficassem. Sem mais palavras saí atordoado, em silêncio e parei diante da janela do pátio central daquele hospício. Pela fresta pude ver os loucos andando, sorrindo, gritando e senti muita vida pulsando ali naqueles seres humanos tão singulares esquecidos pela sociedade. Pensei na infinidade de histórias ricas e anônimas que se perdem no abandono que sempre reinou por trás dos muros dos manicômios…
Querido Lino, meu amigo fraterno de jornada! Todo grande amor é um ato de extrema loucura e coragem. Felizes daqueles que podem vivê-lo e se arremeter em suas teias, perdendo-se por inteiro. Fique em paz com sua princesinha encantada, onde quer que você esteja.