Mesmo sabendo do risco que é recorrer à arte para ilustrar uma produção de texto, não se deve recuar diante do desejo de apostar na incursão por essa via. Articular cinema e psicanálise não seria diferente. O cinema, enquanto expressão cultural de determinadas culturas, é reflexo dessas, que por sua vez, é afetada por esse, inclusive se tornando, na maioria das vezes, um método eficaz de influenciar os sujeitos.
Diante disso, as personagens das princesas – levadas dos contos de fadas para o cinema por Walt Disney –, possibilitam reflexionar sobre o que é ser mulher a partir de estereótipos que são construídos na infância, numa “explosão terapêutica do inconsciente” (BENJAMIN, 1994, p. 190).
Muitos dos clássicos da Disney foram investidos em protagonistas femininas, sendo refletidos neles a mudança do papel da mulher na sociedade, de acordo com a época em que eram produzidos, em criação, não obstante, de estereótipos. Segundo o dicionário Michaelis, estereótipo é uma “imagem mental padronizada, tida coletivamente por um grupo, refletindo uma opinião demasiadamente simplificada, atitude afetiva ou juízo incriterioso a respeito de uma situação, acontecimento, pessoa, raça, classe ou grupo social”.
Assim, da mulher perfeita da década de 30 do século passado, da menina maltratada pela madrasta – Branca de Neve — que conhece seu “príncipe” e casa-se com ele, da menina –Cinderela – que sonha em casar e viver feliz para sempre, da menina curiosa – Aurora – que toca no objeto proibido e adormece a espera do beijo encantado – ao filme A Pequena Sereia, lançado em 1989, há um caminho esquadrinhado.
Ariel, traz-nos algo inusitado: ela não é apenas uma sereia, ela é diferente por ser retratada como um “ser desejante”. Ela desejava algo diferente da vida que vivia, pois, achava sua vida monótona e rotineira. Assim, ela é apontada como rebelde, insubordinada e cabeça dura.
As princesas Disney, nascidas em 1937, sofreram várias transformações no decorrer desses 76 anos, porém, um ponto em comum pode ser apontado para praticamente todas elas: o amor sendo alçado a um lugar privilegiado no universo feminino. Trazemos, em confirmação, o cantar de Ariel em determinado lugar do citado filme: “Eu não sei bem como explicar que alguma coisa vai começar, só sei dizer, que a você vou pertencer.” (grifo meu)
“Vocacionada” para o amor, Ariel renuncia a seu Eu para aderir ao Outro amado, tanto que ela deixa de ser sereia para se tornar humana, denunciando, por consequência, sua relação de identificação/dependência com o outro masculino por quem se apaixona, em detrimento de si mesma.
Outras produções da Disney, continuamente, descortinam o feminino em personagens que povoam o imaginário das meninas e mulheres de todas as idades. Como não lembrar das “esquisitices” daBela? Uma menina com mania de leitura, que inclusive foi capaz de enxergar a beleza da Fera porque conseguiu ir além dos padrões estipulados pelo contexto em que estava inserida. Temos também a princesa Jasmine, a garota que lutou para poder ter mais independência, que enfrentou o pai para que ele não escolhesse seus pretendentes. Outra personagem que marcou as aventuras da Disney foi Pocahontas que encarou com altivez o abismo existente entre seu próprio mundo e o mundo de quem ama.
E que menina não sonhou em ser corajosa como Mulan? Ela que assumiu o lugar do pai na guerra e é tida como a maior mulher guerreira da China. Seguindo as narrativas da Disney temos Tiana, a primeira princesa negra da Disney, ela que, com vínculos empregatícios, precisou se sustentar a partir do uso da sua força de trabalho. Como as mulheres modernas, tinha dupla jornada. Rapunzelque num processo doloroso de autoconhecimento foi em busca de seu lugar no mundo.
Diferenças a parte, eis que surge Merida, ela que nos faz pensar que pode sim ser uma princesa diferente. Aventureira, nunca gostou de pentear os cabelos, nem de roupas coladas ao corpo e que muito menos ficava suspirando a espera do príncipe encantado. Sua diversão era cavalgar, escalar, ser livre. Em Frozen, último filme da Disney, temos a história de duas irmãs, Elsa e Anna. Anna é engraçada, sonhadora, inteligente e espera o seu príncipe encantado. Já Elsa (a irmã mais velha) nasceu com um dom especial e teve que enfrentar seus medos e aprender a lidar com o diferente.
Diante dessas narrativas, uma questão pode ser levantada: haveria uma relação intrínseca entre o amor e o feminino? Para respondê-la, faz-se necessário um brevíssimo percurso histórico, onde a proximidade desta relação se fez presente, servindo, dessa maneira, de ponto de ancoragem.
Muitos já devem ter lido ou ouvido falar do Banquete, obra de Platão, escrita no século IV a.C. Nela, os amigos de Agáton, reunidos por ocasião de um de seus sucessos teatrais, celebram sucessivamente o amor, cabendo a cada um deles fazer um discurso sobre o amor. Depois de Fedro, do orador Pausânias, do médico Erixímaco e dos poetas Aristófanes e Agáton, chega à vez do discurso de Sócrates, que pouco fala, fazendo falar, em seu lugar, Diotima, uma mulher estrangeira, dizendo dela ter aprendido o que sabia sobre o amor.
É curioso que numa obra, onde a predominância de personagens masculinos faz-se presente, Sócrates invoca uma mulher para falar do mito do nascimento do amor, ainda mais se pensarmos que também foram as mulheres que possibilitaram a criação da Psicanálise. Um ponto de vista a se tirar dessa obra de Platão é que, ao tentar falar do amor estou arriscando a reduzir, ou melhor, a dizer qualquer coisa, pois, quando se fala do amor, não se sabe do que se fala e quanto mais se fala dele, menos se sabe a seu respeito. Portanto, o filósofo, ao lançar mão do mito, aborda o indescritível real, algo que não pode ser obtido no plano do saber.
O mito do nascimento do amor, contado através da boca de Diotima, mostra-nos que é, justamente, no momento em que Poros dormia, momento em que não sabia de nada, visto que estava embriagado, é que o amor foi gerado, ou seja, a concepção do amor só foi possível porque Penia desejou ter um filho de Poros. Penia, a Pobreza, não tem nada a oferecer; Poros, o Recurso, ao contrário. Penia só tem para dar a sua falta, surgindo, em estudioso do pensamento freudiano, uma das definições do amor como “dar o que não se tem” (LACAN, 1992, p. 124)
Sócrates, ao passar a palavra a Diotima, talvez estivesse invocando, como disse Lacan, a mulher que está nele. Diotima, mulher, do lado do ser e não do ter masculino, esclarece sobre o belo, dizendo que ele não se relaciona com o ter, mas com o ser.
Renomada psicanalista será explícita ao referenciar o ser e sua relação com o feminino. Ela chama-nos a atenção para a importância que o amor assume para a mulher, precisamente, como tentativa de superação do não ter pela via do ser, buscando no amor uma identificação, não apenas como sujeito, mas, principalmente, como mulher. Ela escreve: “(…) a questão do ser, do extremismo do ser, prima sobre o ter à medida que na posição feminina o sujeito, ao estar não-todo inscrito na função fálica, busca se identificar através do amor de um outro.” (SOLER, 1995, p. 150)
Mesmo com séculos a separar estas duas obras, vemos a relação amor e feminino surgindo como ponto comum em ambas. Assim, numa obra escrita no século IV a.C., já surge a descrição da mulher numa situação de dependência do amor, ou seja, Penia supondo que Poros tem o que lhe falta, busca se identificar com o Recurso do qual se vê e sente privada em sua Pobreza.
Se, em época tão remota, a mulher já se encontrava numa situação de dependência do amor, não significa que ela tivesse voz e vez de reinvindicá-lo, tanto que Penia utiliza-se de um artifício, um tanto quanto “escuso” para se engravidar de Poros, em sinalização de certo desencontro que irá sempre marcar a relação homem–mulher.
Agora daremos um salto no tempo, isto é, da Antiguidade para o século XIX, época que trouxe em seu bojo certo puritanismo em relação às mulheres. Em tal época, a literatura foi rica de personagens femininos, em indicação de que a questão do feminino surgia no cenário social para ficar e, por ironia, autores homens escrevendo e retratando sobre o universo feminino1
Desta forma, a modernidade foi um momento em que a perspectiva de vida das mulheres sofreu grandes transformações e, neste cenário, a Psicanálise é criada por Freud. A sua genialidade, ao ouvir a queixa das histéricas, foi perceber que o sintoma surge para poder dar conta de um descontentamento frente a uma posição feminina insatisfatória.
Chegamos, abruptamente, aos séculos XX e XXI e, uma pergunta precisa ser posta: o que mudou?Se a modernidade preconizou o amor romântico, os ideais deste amor romântico naufragaram; o que não significa, todavia, que o amor naufragou.
Todavia, percebe-se hoje que a mulher vem adotando, perigosamente, o discurso do senhor, como na dialética senhor x escravo2. Contudo, ao se apropriar de um discurso pronto, que não é o seu, acaba por provocar o des-encontro dela consigo mesma, que é de uma outra dimensão que lhe aparece como insuportável.
No percurso da obra de Freud, desde as primeiras cartas a Fliess até seus textos inacabados, percebe-se uma tentativa de esclarecer a questão do feminino, utilizando-se, para tanto, de abordagens diferentes na elaboração de um conceito, apontando a dificuldade de tornar-se mulher, visto que não se nasce mulher.
Desde muito cedo aparece em Freud uma queixa quanto à obscuridade que envolvia a vida sexual das mulheres, a ponto de escrever, nos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), que a vida sexual dos homens podia ser estudada em melhores condições “(…) cuja vida amorosa é a única a ter-se tornado acessível à investigação, enquanto a da mulher, (…) permanece envolta numa obscuridade ainda impenetrável.” (FREUD, 1996, p. 143)
Nos anos subsequentes, sempre que havia oportunidade, este “obscurantismo” era apontado e, muitos anos depois, em seu trabalho A questão da análise leiga (1926), ainda fazia questão de frisá-lo, numa frase que ficou famosa:
Sabemos menos acerca da vida sexual de meninas do que de meninos. Mas não é preciso envergonharmo-nos dessa distinção; afinal de contas, a vida sexual das mulheres adultas é um ‘continente negro’ para a Psicologia. (FREUD, 1996, p. 205)
Como conseqüência dessa alusão, ao “continente negro”, Freud foi conduzido, muitas vezes, a presumir que a sexualidade das mulheres podia ser tomada como análoga à dos homens, o que o levou a muitos “desvios” ao longo de sua obra. Porém, mediante leituras de suas obras, percebemos que o “tornar-se” mulher não pode ser concebido a priori, mas a posteriori, surgindo, daí, o caráter problemático do feminino.
Para Lacan, o que a mulher busca, ao se perceber não representada, “despossuída” de uma identidade, é obter um signo que a funde numa feminilidade reconhecida. Deste modo, seria o amor este signo? Seguindo este caminho, do amor (fenômeno) enquanto signo (que remete para algo diferente de si mesmo), não seria esta uma das razões do amor possuir esse estatuto privilegiado no universo feminino?
Assim, sob o signo da falta, da falta de uma identidade propriamente feminina, o amor entra como um mediador, mediando a dor que é da ordem do insuportável.
Notas:
1 Dentre os grandes autores e seus marcantes personagens femininos desta época citamos: Conde Tolstoi (Anna Karenina), Gustave Flaubert (Madame Bovary), Honoré de Balzac (A mulher de trinta anos), Machado de Assis (Dom Casmurro) etc.
2 André Vergez & Denis Huisman (1988, p. 280) esclarecem que para Hegel o senhor não é senhor “em-si”, mas por meio de uma mediação, isto é, uma relação. O senhor se define por sua relação com o escravo (e por sua relação com os objetos que depende, ela própria, da relação com o escravo). No ponto de partida, o senhor domina os objetos da necessidade, posto que no campo de batalha ele se mostrou corajoso, superior à sua vida, portanto aos objetos das necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo que trabalha, isto é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e fruição para o senhor.
Referências:
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura.Obras Escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1994. V.1
DICIONÁRIO MICHAELIS. Estereótipo. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/. Acesso: 10 dez. 2013.
FREUD, Sigmund (1901-1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. VII.
___ (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. VII.
___ (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIV.
___ (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XVIII.
___ (1923). O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIX.
___ (1923). A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIX.
___ (1925). Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIX.
____ (1925-1926). Inibições, sintomas e ansiedade.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XX.
____ (1926). A questão da análise leiga.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XX.
___ (1929-1930). O mal-estar na civilização.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XXI.
___ (1931). Sexualidade feminina.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XXI.
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LACAN, Jacques. A transferência.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O Seminário, livro 8)
PLATÃO. Banquete. São Paulo: Martin Claret, 2003. pp. 93-166
SOLER, Colette. Variáveis do fim da análise. São Paulo: Papirus, 1995.