Robin Hood e o mito do anti-herói

Robin Hood é um mítico herói inglês. Resumidamente ele era um ladrão que roubava dos ricos para entregar aos pobres. Segundo sua lenda ele teria vivido no século XIII, na época das Cruzadas, juntamente com o Rei Ricardo Coração de Leão, sendo a ele leal.

É comumente dito que Robin existiu de verdade, mas o fato é que se realmente existiu, isso não importa, pois a sua lenda permanece viva e encanta o mundo a séculos, sendo retratada diversas vezes ao cinema, quadrinhos, e televisão.

Em Nottingham, cidade no centro de Inglaterra onde se passam as aventuras de Robin, além das estátuas, há as ruas batizadas com o seu nome e um festival anual que lhe é dedicado. E há também o que resta da Floresta de Sherwood, onde é possível encontrar a árvore em redor da qual o bando de Robin se reunia em conselho.

Robin Hood ficou retratado no imaginário coletivo como alguém exímio no arco e flecha. Ele vivia na Floresta de Sherwood e tinha como grandes amigos e auxiliares João Pequeno, Will Scarlet e Frei Tuck. Seu grande amor era Lady Marian, com quem se casa em todas as versões.

O Príncipe dos Ladrões – como ficou conhecido – prezava a liberdade, a aventura e a vida ao ar livre. Uma das primeiras referências escritas ao personagem é o poema épico Piers Plowman, escrito por William Langand por volta de 1377. A compilação Gesta de Robin Hood, datada de 1400, sugere que as histórias que compõem a lenda já circulavam bastante e eram de conhecimento público anos antes, pelo menos desde 1310.

Existem diversas versões e origens do herói. A mais conhecida é a de que Robin se chamava Robert Locksley. Robert serviu em uma Cruzada ao lado do rei Ricardo, mas ao retornar ao lar, Nottingham, o encontra sob a tirania do irmão do Rei, o Príncipe John. O povo estava debaixo de leis abusivas e a caça – forma de sustento na época – havia sido proibida. Indignado, ele se recusa a aceitar a situação e se torna um fora da lei. Aproveitando – se de seu conhecimento em cavalaria, arquearia e combate adquirido na guerra, ele une um grupo e inicia um combate à tirania da nobreza, roubando nobres arrogantes e clérigos abastados, como forma de compensar o abuso.

Ao final da historia ele vence o príncipe John e casa-se com Laid Marian, sobrinha de Ricardo. No fim da história, Ricardo Coração de Leão reaparece após sua derrota em terras estrangeiras e nomeia Robin Hood cavaleiro, tornando o nobre novamente. A verdade é que Robin Hood sempre foi fonte de versões para o cinema e televisão. A ideia do anti-herói que usa um artifício antiético para promover a justiça agrada a consciência coletiva.

Em todas as teorias que sustem que Robin realmente existiu, o herói escolheu a vida clandestina e de fato era um fora da lei, transgressor da ordem, por ter sido injustiçado e assim convocando para sua missão um grupo enorme de aliados. Ele se torna então o símbolo do heroi para o povo de generosidade e o temor dos governantes. Robin costuma ser retratado com uma roupa verde, que maneja o arco como ninguém, não teme nada e vive livre e feliz, rodeado de amigos que se ajudam a cada nova ameaça.

Antes de começar a analise então é importante salientar que é de pouca importância o que se sabe sobre o homem real que teria servido de inspiração para o surgimento dessa figura mitológica. Pretendo analisar o símbolo e o suposto contexto histórico. A grande questão e cerne central da epopéia de Robin Hood são as Cruzadas.

O Rei Ricardo parte em combate em nome da Igreja. Ele vai para Jerusalém na Terceira Cruzada e seu trono é então usurpado por seu irmão tirânico o Príncipe John. Temos aqui o inicio do problema: o rei é fraco e sucumbe ao poder.

Conforme Von Franz (2005), os contos e as lendas sempre se iniciam com um problema ligado ao rei:

Agora, nós continuamos com a exposição, ou seja, com o início do problema. Você o encontrará na forma do velho rei que está doente, por exemplo, ou o rei que descobre que toda noite são roubadas maçãs douradas de sua árvore, ou que seu cavalo é estéril, ou que sua mulher está doente e que precisa da água da vida. Algum problema sempre aparece no início da história obviamente, porque se assim não fosse, não haveria história. Então se define o problema psicologicamente e procura-se também entender sua natureza.

Com essa explanação faz-se necessário compreender a natureza desse problema inicial. Primeiramente o simbolismo do Rei é de muita importância. Um estudo mais aprofundado sobre o rei encontra-se em um capítulo intitulado “Rex et Regina”, do livro de Jung, Mysterium Coniunctionis. O Rei nas tribos mais antigas possuía qualidades mágicas para o povo. Certos chefes, por exemplo, eram tão sagrados que não podiam mesmo tocar a terra e por isso são carregados pelo seu povo (VON FRANZ, 2005).

Em diversas sociedades primitivas, a prosperidade de todo o país dependia da sanidade física e psíquica do rei: se ele se tornasse impotente ou doente, tinha que ser morto e outro rei deveria tomar seu lugar, cuja saúde e potência garantissem a fertilidade das mulheres e do gado, bem como prosperidade de toda a tribo. Com isso existe a ideia de que o Rei deve ser renovado periodicamente.

Conforme Von Franz (2005)

Pode-se dizer, em resumo, que o rei ou chefe incorpora um princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação. O rei representa o princípio divino na sua forma mais visível, é sua encarnação e sua moradia. Consequentemente, ele tem muitas características que nos levariam a considerá-lo o símbolo do SELF, porque o SELF, de acordo com a nossa definição, é o centro do sistema autorregulado da psique, do qual depende o bem-estar do indivíduo.

O Rei Ricardo então, como símbolo do Self, e ligado a uma civilização ocidental, representava, sobretudo a religião vigente: o Cristianismo, que deveria ser a fonte de saúde psíquica do povo. No entanto, a sua época havia um grande descontentamento com o Cristianismo, devido as Cruzadas. Esse descontentamento aparece diversas vezes nas adaptações do herói no cinema, principalmente em suas falas.

E a religião, assim como qualquer sistema regente, se desgasta. Seus símbolos perdem as qualidades numinosas. A história comparada das religiões mostra a tendência dos rituais ou dogmas religiosos a tornarem-se superados depois de um tempo, a perderem seu impacto emotivo original, tornando-se fórmulas mortas. Embora adquiram qualidades positivas da consciência, como a continuidade, eles perdem o contato com a corrente irracional da vida e tendem a tornar-se mecânicos (VON FRANZ, 2005). O mesmo acontece como os sistemas políticos, que se torna com o tempo desgastado.

Em Robin Hood, vemos os sistemas político e religioso vigente em processo de desgaste. Ricardo como Rei sucumbe as Cruzadas e abandona o que era essencial: o povo. As Cruzadas eram movimentos militares de inspiração supostamente cristã que partiram da Europa Ocidental em direção à cidade de Jerusalém com o intuito de conquistá-la, ocupá-la e mantê-la sob domínio cristão. Foram cerca de nove Cruzadas.

A Terceira Cruzada, pregada pelo papa Gregório VIII após a tomada de Jerusalém pelo sultão Saladino em 1187, foi denominada Cruzada dos Reis. É assim denominada pela participação dos três principais soberanos europeus da época: Filipe Augusto (França), Frederico Barba-Ruiva (Sacro Império Romano-Germânico) e Ricardo Coração de Leão (Inglaterra). Com isso, vê-se que o Cristianismo havia sucumbido ao principio do Poder. Não havia mais Eros na religião vigente. Cobiça e brutalidade marcaram esse movimentos.

O irmão do Rei, então usurpa o trono. John é a sombra do Rei, o principio do poder. Onde quer que uma estrutura cultural, religiosa ou civilizatória perca seu caráter religioso, ocorrem lutas políticas entre ditadores e grupos exclusivos que determinam o destino inteiro de uma civilização. Caso não haja um símbolo mais poderoso ainda capaz e unificar o povo, então a influencia disruptiva, aliada a lutas por prestígio e vaidade aparece (VON FRANZ, 2002).

A igreja nessa época não possuía mais vida espiritual capaz de manter o povo unificado, e assim estava destinada a perecer na luta contínua por poder. Nessa época, onde o Rei precisa ser renovado o principio do poder, representado por John, impera. Na figura de John temos a ira destrutiva. Na animação da Disney de 1973, John é representado por um leão, animal que para Jung, além de ser símbolo da realeza, representa os impulsos animais, fortes e apaixonados desejos, afetos. O leão representa um impulso poderosíssimo.

Conforme Von Franz (2002):

“Se um ser humano perde o seu ponto de apoio religioso, ela se desintegra se tornando alvo fácil de afetos, tais como sexo, poder, além de outros impulsos e desejos. (…) É o momento em que a personalidade é avassalada pela cobiça.”

É nesse cenário que surge Robin Hood, em defesa dos oprimidos e se torna uma figura mítica. Apesar de fora da lei, Hood é um herói. Entre as figuras de herói existe uma grande variedade: o tipo “tolo”, o tipo trapaceiro, o homem-forte, o inocente, o jovem belo, o feiticeiro, aquele que resolve os problemas e obstáculos através da mágica e aquele que os suplanta e resolve através de poder e coragem. O herói é o salvador, ele renova situação de vida.

Conforme Von Franz (2005):

O herói é, consequentemente, o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego que restabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, onde todos os egos da tribo ou nação estão desviando-se do padrão básico e instintivo da totalidade. Pode-se dizer, então, que o herói é uma figura arquetípica que representa um modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF.

Robin cumpre os desígnios do arquétipo do herói, pois ele realmente compensa e restaura a situação sadia. O fato de ser um fora da lei mostra que os elementos que provem do Self não se adequam a moral vigente. O inconsciente é amoral diante da consciência. Mas na verdade, Robin é então um transgressor. O ato de roubar o aproxima do mítico Prometeu, que rouba o fogo dos deuses para dar a humanidade. Robin rouba os valores dos poderosos, e do principio regente da consciência, que se desviou do padrão instintivo de funcionamento.

Como Prometeu trouxe o progresso a humanidade, Robin traz uma nova visão ao homem Ocidental, um acréscimo de consciência. Esse acréscimo de consciência vem por meio do questionamento das ações humanas. A destruição de um povo em nome do poder e o abandono de outro povo à custa do que se denomina Deus. Assim como Jó bíblico e Prometeu, ele questiona essa divindade. Ele questiona seus atos, sua agressividade, seu instinto. A dúvida é o início da consciência.

Mas tanto o mito, quanto a lenda mostram que a cada ganho em conhecimento e consciência, é acompanhado, inexoravelmente, por sofrimento, culpa e castigo. O ônus a ser debitado àquele que sai das trevas. Robin paga seu débito com a exclusão e a solidão. Além disso, Robin vive na floresta, em meio à natureza. A floresta é um símbolo do feminino e de uma parte intocada da psique. Tanto que a deusa associada as florestas é a deusa virgem Ártemis, um dos aspectos da Grande Mãe.

Na lenda e nas adaptações cinematográficas não há uma figura feminina juntamente com o rei. Ou seja, falta o elemento feminino no principio regente da consciência. A lenda de Robin mostra um fato bastante atual na humanidade, que é a exploração dos recursos naturais provinda do homem moderno. Essa exploração já vem chegando ao limite do absurdo. E a vida na floresta escolhida por Robin, mostra um caminho completamente oposto do homem ocidental, que prefere a vida agitada das grandes cidades. Essa característica o aproxima dos deuses pagãos da natureza, consortes da Grande Mãe.

O elemento feminino também é trazido à tona com o herói que passa a auxiliá-lo e sua aventura, que é sua amada Marian, retratada as vezes como sobrinha do rei Ricardo. Outro aspecto interessante em Robin é o fato de utilizar seu arco e flecha com maestria. Sobre isso podemos fazer algumas associações. O arco e flecha pode ser considerado como uma das mais inteligentes invenções da história da humanidade. Com essa arma, o homem passou a evitar a luta corpo a corpo, à qual estava submetido na antiguidade.

Nessa época, o homem precisava lutar corpo a corpo com os animais para caçá-los ou atirar dardos ou lanças, o que era extremamente perigoso e tornava praticamente impossível a caça às aves. O arco e flecha, então, passa a proteger o homem que podia atirar a uma distância segura e em silêncio. Levando a humanidade a um salto para frente em termos de melhoria quanto à sobrevivência. Arco e flecha então é um fruto da função intuição, uma vez que veio a se opor a força bruta. Além disso, para se utilizar o arco e flecha em uma caçada, era necessário não apenas ter uma boa pontaria, mas um estado psicológico adequado. Se antes disso o caçador houvesse tido uma briga, certamente erraria o alvo.

Portanto é necessário para se atingir um alvo buscar o equilíbrio interior. Acertar o alvo requer concentração, inteligência e intuição. Uma vez que o Self é representado como o centro da psique em sua totalidade, Robin além de ser extremamente inteligente, é hábil em acertar o alvo, mostrando que está em consonância com os desígnios do Self. E sendo por isso capaz de conduzir as pessoas à totalidade. Robin integrou a sombra, pois nele também vemos o aspecto negativo do herói, na figura do fora da lei.

Hood é conclamado o Príncipe dos Ladrões. O ladrão é uma figura mítica, sendo que a mais famosa é a do deus Hermes, considerado pelos gregos o padroeiro da inteligência, astúcia e dos ladrões. Todas essas características de deuses pagãos vistas em Robin são muito interessantes. Em uma época em que o paganismo foi reprimido em função de um Deus único, muito do conhecimento perdido dessa época foi para o inconsciente. Juntamente com esse conhecimento pagão, está o feminino que possui uma expressão mais magnífica no paganismo.

Robin então é responsável por trazer esse conhecimento reprimido à consciência e trazer a tona para que ocorra uma renovação. Também é importante salientar que nos contos de fadas vemos que a renovação se inicia nas camadas mais baixas da sociedade, Toda renovação não atinge de imediato as classes mais altas da sociedade. A renovação vinda de baixo seria a expressão da necessidade do povo de se livrar da opressão e ter liberdade. Aprofundando mais na imagem arquetípica de Robin Hood.

Conforme Hillman (1998), a figura do Puer Aeternus, como arquétipo único tende a unificar em um só as seguintes imagens: o Herói, a Criança Divina, O Filho do Rei, O Filho da Grande Mãe, Eros, o Psicopompo, Mercúrio – Hermes, Trickster e o Messias (o Salvador). Robin Hood possui várias dessas qualidades citadas: ele é um Herói; um sedutor assim como Eros; um Trickster, pois prega peças nos poderosos da cidade; um Mercúrio – Hermes por sua inteligência, criatividade e astucia; um ilho da natureza, ou seja, da Grande Mãe; e também um Salvador.

Ainda conforme Hillman (1998) o arquétipo do Puer Aeternus personifica ou está em relação especial com os poderes espirituais transcendentes do inconsciente coletivo. Representa com isso, o impulso do Espírito. A problemática do Puer foi muito bem detalhada por Marie Louise Von Franz em sua obra Puer Aeternus – A luta do adulto contra o paraíso da infância. Nessa obra ela aborda com clareza e detalhes o plano principal neurótico.

Contudo, agora quero enfatizar, com a figura de Robin Hood, o plano de fundo arquetípico, que traz a luz e a sombra e uma grande possibilidade de crescimento e desenvolvimento. O Puer é nossa própria natureza, algo de primordial em nós que transcende as normas coletivas. É a nossa essência que nos liga ao Self.

Através do Puer nos é dado nosso sentido de destino e missão, de que temos uma mensagem, de que somos portadores da chama divina. Ele é nosso sentido de vitalidade, de abundância, de entusiasmo. Assim como Robin ele está a serviço dos deuses (no caso o Rei Ricardo), ou seja do Self. Não quero com isso fechar o assunto, pois muito há o que se falar de Robin Hood e sua imagem de Herói, Trickster, Sedutor e Transgressor. Mas já é de muita valia compreender que ele representa o frescor da alma, a faísca do espírito e nossa mais profunda originalidade.

 

REFERÊNCIAS:

HILLMAN, J. O Livro do Puer – ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 1998.

KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fadas. 3 ed. Paulus: São Paulo: 1984.

VON FRANZ, M. L. Puer Aeternus – A luta do adulto contra o paraíso da infancia. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

Psicanalista Clínica com pós-graduação em Psicologia Analítica pela FACIS-RIBEHE, São Paulo. Especialista em Mitologia e Contos de Fada. Colaboradora do (En)Cena.