Da mente de Neil Gaiman, reimaginando um personagem clássico da DC Comics, surge Sandman (1988). O personagem é chamado de Morpheus, que recebe o título de Sonho dos Perpétuos, e se trata do governante do Reino do Sonhar. O sonhar seria uma instância da existência onde todos os seres vivos visitam ao dormir; lá ocorreriam todas as narrativas oníricas e as experiências dos sonhos, Morpheus é quase que todo poderoso ali e com milhares de seres ajudantes que coordenam aquele plano existencial junto a ele.
A trajetória de Sandman é longa a partir daí, então para o contexto desta produção será observado o princípio das histórias de Morpheus, no Brasil chamada de Sandman: Prelúdio (2015), ilustrada pelo magistral J. H. Williams III. Uma graphic novel publicada mais recentemente na intenção de mostrar pontos anteriormente desconhecidos da vida do protagonista.
Essa história relata a sucessão de fatos que movem o protagonista a sua jornada de redenção no primeiro volume da série, e vem demonstrando a magnitude deste universo ao levar o leitor a ter consciência de que todos os seres e todas as partículas em todos os universos e existências sonham, dessa maneira, haveria uma versão do Sonho dos Perpétuos para cada ser da existência. O personagem descobre então que algo está matando outras versões dele mesmo, outros Governantes do Sonhar estão sendo mortos, e cabe ao (nosso) Morpheus investigar a morte de seus iguais.
O Sonho para a Psicologia Analítica e a Simbologia do Sonhar
Para a psicanálise o sonho está ligado principalmente a imagética do sonhar, e ao valor compensatório do sonho para o sonhador. O sonhador deslocaria libido pelo Inconsciente enquanto dorme, e através de um arranjo de imagens conseguiria entrar em contato com conteúdos reprimidos fortes, ter vislumbres de questões recalcadas por seu aparato psíquico ou mesmo realizar desejos fortes que estariam em seu dia-a-dia reprimidos por todos os mecanismos de defesa propostos na clínica psicanalítica:
Na concepção psicanalítica, além de representações mentais mnemônicas derivadas da percepção consciente, as imagens adquirem uma função dinâmica, uma vez que, para Freud, elas possibilitam a transferência da energia instintiva que não encontra seu objeto no campo da fantasia. (SANT’ANNA, 2005, p.19)
Em Sandman, o personagem é o soberano do Sonhar, esta que seria uma instância dimensional onde todos os seres vivos se deslocam psiquicamente ao dormir para viver os sonhos. Esse conceito fantástico e abstrato é palatável quando se tem em mente o funcionamento da psique a maneira analítica de se ver.
Jung et al. (2016) decorre sobre a função do sonho e sobre o Inconsciente coletivo; sendo o sonho além de uma função organizadora da psique, onde conteúdos são revistos e processados, também é uma maneira do Inconsciente Pessoal de cada indivíduo se comunicar com a consciência através dos resquícios imagéticos. O Inconsciente Coletivo atravessa essa demanda na medida que fornece símbolos ancestrais e nos permite contato com os arquétipos. Logo, podemos colocar em paralelo a visão de Neil Gaiman na concepção do Sonhar, como esse local em paralelo a realidade e a psicologia analitica do ato de Sonhar.
A maneira mais eficiente para se enxergar essa comparação é observar na própria escolha de personagens de Gaiman no preenchimento de sua história. Sonho pertence a uma categoria de seres, equivalentes em seu mundo aos deuses, um panteão, conhecidos como os perpétuos.
Em sua jornada ele se depara por exemplo com Desejo, Delírio, Destino e Morte, seus irmãos perpétuos; seu ajudante Lucien, o bibliotecário, que guarda todas as histórias não escritas; Coríntio, o pesadelo, que vem em contraponto e antagonizando o protagonista, quase como a Sombra arquetípica de Morpheus, representando seu oposto e negativo. Entre outros personagens, esses são fundamentais para entender a característica simbólica de tudo que cerca o reino do Sonhar, tudo alí surge e finda em conceitos complexos e simbólicos.
O conceito de arquétipo ocupa lugar significativo na teoria fortemente associado à ideia de inconsciente coletivo, um substrato psíquico coletivo. (…) Em cada indivíduo, manifesta-se por meio de imagens individuais (nomeadas por Jung como imagens arquetípicas) que têm a função de agrupar os elementos psíquicos próprios de cada pessoa e enviar à consciência algo como uma mensagem proveniente do inconsciente. Nessa perspectiva, o arquétipo só pode ser conhecido através de seus efeitos. (BONFATTI et al., 2019, p. 543-544)
Por fim, vale olhar para o mito de Morfeu em relação com o Personagem Morpheus. Sendo o primeiro o deus grego dos sonhos, filho de Hipnos, deus do sono, este era responsável por trazer a narrativa onírica aos humanos e guiá-los por uma boa noite de sono ou punir com os pesadelos (BULFINCH, 2013). O paralelo simbólico mais evidente feito por Gaiman, que em sua obra tende a tangenciar os conceitos para afastar dos arquétipos no mundo real, ele escolhe por emular quase que diretamente o deus dos sonhos grego em seu mundo fantástico.
A Conclusão do Princípio da Jornada
Sandman: Prelúdio é a jornada pessoal de confronto de Morpheus consigo mesmo, diversas vezes. As várias versões do Sonho dos Perpétuos se defrontam com suas maiores qualidades e também seus maiores defeitos – Gaiman é um ótimo autor para trazer a humanidade a personagens imortais e de poder grandioso – e essa é a melhor parte da história, observar como um ser que tem a eternidade e a infinitude a sua disposição pode em seu ritmo tomar lições valiosas de crescimento pessoal e de personalidade.
Ao desvendar o mistério por trás do assassinato de seus pares, logo ao leitor fica claro que o Senhor dos Sonhos sabe o motivo e a circunstâncias do crime tão hediondo, pois de uma maneira bem arquetípica e bem similar a como funciona o Inconsciente Coletivo humano, cada versão de Morpheus espalhada pelo universo é também parte de sí mesma, todos os sonhos estão conectados e então ele tem consciencia do que ocorreu às partes dele que padeceram.
A história nesse ponto toma outro formato, não se tratando mais de uma investigação, mas sim de uma busca de redenção, da tentativa de abjuração de um erro cometido pelo próprio Morpheus que sucede nos assassinatos. Morpheus deve se conhecer e se munir da companhia de si mesmo para finalizar sua jornada com sucesso.
Referências
BONFATTI, Paulo et al. Acerca do conceito de arquétipo na Psicologia Analítica: breves considerações. ANALECTA-Centro Universitário Academia, v. 4, n. 4, 2019.
JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. HarperCollins Brasil, 2016.
SANT’ANNA, Paulo Afrânio. Uma contribuição para a discussão sobre as imagens psíquicas no contexto da psicologia analítica. Psicologia USP, v. 16, n. 3, p. 15-44, 2005.