Tiana: a magia e a realidade da quebra de preconceitos

A Princesa e O Sapo, a produção norte-americana dos estúdios Walt Disney, lançada em 2009, conta a história de uma moça negra que vive na Nova Orleans dos anos 1920, nos Estados Unidos, e representa a mais contemporânea das histórias das princesas em termos de animação. Tiana é a única princesa que tem vínculos empregatícios e precisa se sustentar a partir do uso da sua força de trabalho, mostrando em parte como se deu a inserção da mulher negra no mundo do trabalho – antes mesmo que a mulher branca pudesse ser inserida nesse. Tiana faz dupla jornada e não é de verdade uma princesa, mas se torna uma quando encontra o príncipe.

Ainda que exista uma leve referência para nós brasileiros, poucos sabem que essa região dos EUA era no final do século XIX o grande mercado negreiro americano, sendo um dos últimos estados onde a abolição da escravatura aconteceu no país, e a história de Tiana ilustra o cotidiano de muitas moças da época, cumprindo longas jornadas de trabalho para poder levar uma vida minimamente confortável. Mais um caso aqui de mulher que precisa se resgatar por si mesma, uma vez que o príncipe é imperfeito e muito mais humano do que a maioria dos personagens que costumamos ver nos contos de fada. Ao invés de salvar Tiana, o príncipe de seu conto a coloca em diversas situações complicadas, como por exemplo, transformá-la em sapo e quase arruinar a possibilidade de que ela consiga seu restaurante.

O filme vai se desenvolvendo a partir da história da família de Tiana, em que sua mãe trabalha assim como o seu pai. Nesse primeiro momento da trama, já se percebe o contraste com a realidade da Charlotte, a “princesinha do papai”. Depois de algum tempo vemos uma Tiana crescida e que se torna endurecida pelo trabalho, uma moça que passa tanto tempo em atividade que não tem tempo para o lazer ou amigos, sempre em contraste com Charlotte, jovem rica e mimada, cuja maior preocupação é conseguir conquistar um príncipe.

Enquanto isso, Tiana tem tempo apenas para “se focar” em realizar seus sonhos: abrir um restaurante glamouroso e de sucesso.

Em outras palavras, sua personagem tem sonhos de construir um patrimônio seu e de ser bem-sucedida a partir de seu próprio trabalho. O príncipe pouco ou nada tem a ver com isso, e é assim que ele permanece na história, sem financeiramente contribuir para a abertura do restaurante, e se caracteriza como um personagem que tem defeitos, sentimentos e sonhos.

O casal não se apaixona à primeira vista, e o príncipe busca relações por interesse, pedindo um beijo à Tiana para que ele volte à forma humana, e em troca promete a ela dinheiro para o seu restaurante.

O filme mostra como a relação entre os dois vai se construindo, e como ambos, Tiana e o príncipe, precisam rever seus valores de felicidade para que possam se engajar em uma relação amorosa. Nesse aspecto, o amor aparece também como parte da magia responsável pela transformação da vida das pessoas.

O amor e a magia são sempre elementos essenciais dos contos de fada, histórias essas que no último século começaram a ser predominantemente feito para meninas, mostrando mulheres frágeis e que necessitam de alguém que as resgate dos apuros que sua condição feminina as colocou.  Contudo, alguns dos filmes de princesas produzidos na última década trazem não só o amor e a magia como elementos para que seus personagens se salvem das adversidades exteriores, mas a determinação e a ação concreta para que se salvem de si mesmos.

Surpreendida por um príncipe que não esperava, Tiana se depara com um homem atrapalhado, infantil e confuso, e que em consequência a coloca em diversas situações que a convida a entrar em ação.

Novas possibilidades de relacionamento também se descortinam com as tramas, e agora a mulher aparece constituindo e se constituindo nessa relação de outra forma, sendo também autora dos destinos desse relacionamento e de suas vidas. A princesa Tiana escolhe os rumos de sua vida, e ao invés de ser escolhida prioritariamente por sua aparência ou por predileção do destino, o é por suas características e pela maneira como se coloca no mundo.

Contudo, se por um lado vemos uma nova representação de mulher, forte, ativa, determinada e que usa esses recursos em detrimento da magia, o que vemos é a extensão dos valores do self-mademan também para as protagonistas de contos de fada: uma mulher que faz e não só acontece. Especialmente em A Princesa e o Sapo, que ao não explorar a questão racial – que é essencialmente social – com uma visão social e crítica sobre as consequências do racismo na vida das mulheres negras, tenta apresentar uma solução para superar a discriminação pela via do individual: Tiana é a típica mulher que precisa ir e fazer ela mesma, apresentando o sujeito do ideário neoliberal em que cada um deve estar por si.

Tiana é uma princesa que rompe com o ideário da típica princesa: é negra. Representando o que as mulheres já fazem e os dramas que vivem há décadas, os novos filmes trazem mulheres que precisam não só cuidar de seus homens, filhos e famílias, mas também de si, em duplas, triplas ou sabe-se-lá quantas jornadas. O que se pode dizer, ao final, é que a história contada através de Tiana traz novos valores nas telas que já são antigos conhecidos de todas nós mulheres da modernidade.

Psicóloga, Mestranda em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília. Consultora em Clínica do Trabalho no Sindicato dos Professores do Distrito Federal.