Voltaire – Toda teoria pode ser desafiada

Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser,
mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.

Voltaire

Conhecido por expressar o ceticismo de forma engenhosa durante certa fase do Iluminismo (embora esta “corrente” exista desde a filosofia grega clássica), Voltaire (1694-1778) engrossou o coro dos que desafiaram as autoridades constituídas de seu tempo, notadamente a Igreja e a Monarquia, e questionou o cânon vigente, colocando em xeque as explicações “prontas” oferecidas até então por estas instituições.

Voltaire, na verdade, era o pseudônimo do pensador parisiense François Marie Arouet, nascido de família classe média e amante da escrita. Com ele, pôde-se concluir que todo fato ou teoria “na história foi revisto em algum momento”, uma vez que seria inconcebível “nascer com ideias e conceitos prontos em nossas cabeças”. Estas observações, não por menos, são precedidas das ideias do filósofo britânico John Locke, para quem a experiência sensorial (e não a reminiscência platônica) “permite a crianças e adultos adquirir conhecimento confiável sobre o mundo externo”.

A partir desta concepção “libertadora” para a época, Voltaire diz que “toda ideia ou teoria pode ser desafiada”, e apesar de as “certezas” oferecidas pelas instituições serem acalentadoras, “por ser mais fácil aceitar as declarações oficiais”, se analisadas a fundo, [tais certezas] não passam de um completo absurdo. Ora, se não existem ideias inatas, tão pouco é concebível um escopo teórico/prático que esteja além da construção cultural, e que vem sendo preservado pela “tradição” e pela história. Daí sua “rebelião” contra as instituições tradicionais.

O leitor já deve ter percebido que em Voltaire é a “dúvida” que se configura como “único ponto de vista lógico”. Como esta postura pode levar a um relativismo e “desacordo sem fim […], Voltaire enfatizou a importância da ciência para estabelecer o acordo (mediação)”. E a educação é outro ingrediente indispensável para esta receita que, segundo o francês, “levam ao progresso material e moral”.

O que diferencia céticos como Voltaire dos sofistas? Para Comte-Sponville, há no ceticismo uma busca pela verdade, o que afasta o viés sofista e configura-se como trajeto tipicamente filosófico, no entanto nunca estão “certos de tê-la encontrado [esta verdade]”. Assim, [os céticos] também se distanciam dos dogmáticos. “Não é a certeza que eles amam, mas o pensamento e a verdade. Por isso gostam do pensamento em ato, e da verdade em potência”. Esta visão, para vários pensadores como Jules Lagneau (1851-1894), é a que deveria nortear todos os filósofos.

Desta forma, é descarta – em linhas gerais – uma eventual inclinação do ceticismo ao pessimismo e/ou negativismo epistemológico. “Cético não é aquele que afirma que a verdade não existe, mas sim aquele que confessa não conhecê-la, sem com isso desistir de procurá-la”, define o pós-doutor Paulo Jonas de Lima Piva, da Universidade São Judas Tadeu.

A Queda da Bastilha, durante a Revolução Francesa, foi um evento fortemente influenciado pelo pensamento de Voltaire

O pensamento de Voltaire influenciou de forma direta a Revolução Francesa, que viria a ocorrer 11 anos após a morte do filósofo – também exerceria a mesma influência sob a Independência dos Estados Unidos. No bojo das demandas apresentadas pelos revoltosos, havia outra concepção voltairiana poderosa: uma preocupação com a liberdade, notadamente a liberdade de pensar. Desta forma, era necessário garantir que as pessoas pudessem expressar seus pontos de vista, mesmo que estes fossem conflitantes com o “establishment”. Daí surge a popular frase atribuída a Voltaire: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”¹.

Vida pessoal

A mãe de Voltaire morreu durante o parto, e o filósofo foi criado com certa “liberdade” pelo pai. De saúde frágil, o francês foi pajem do marquês de Châteauneut, o que lhe possibilitou viajar para a Holanda (Haia), local aonde viria a ocorrer a primeira “peripécia” de Voltaire, o envolvimento com a jovem Olympe Runoyer. Mandado de volta à França, logo se envolve em novo “romance”, desta vez com Susanne de Livry, e inicia uma frutífera produção de escritos, que variaram de poemas a peças teatrais. Numa das obras, com teor sátiro, acaba por ofender ao rei Henrique 4º, o que lhe rendeu um ano preso na Bastilha, local onde recebeu o nome pelo qual ficaria mundialmente conhecido.

Já em liberdade, se envolve numa briga com um cavaleiro da corte e tem que se exilar por três anos na Inglaterra. Lá, conhece pensadores como Young Pope e Berkeley, e lhe chama a atenção como a “liberdade de expressão, a tolerância religiosa e a filosofia” eram nutridas naquele país. Vários anos depois, numa gradativa reaproximação com a França, Voltaire torna-se historiógrafo real e, em 1749, já em Paris, é eleito para a Academia Francesa. Neste ínterim, é convidado para dar aulas de francês ao rei Frederico 2º, da Prússia. “Tudo ia bem até que Voltaire publicou um panfleto atacando Malpertuis, protegido do rei e presidente da academia de Berlim”.

Fugitivo mais uma vez, Voltaire passa a morar em Genebra, e é de lá que ele termina suas maiores obras: “Um Ensaio sobre o Costume e o Espírito das Nações e sobre os Principais Fatos da História, de Carlos Magno a Luís 13”; e “A Era de Luís 14”. Em 1764, em Ferney, publica o “Dicionário Filosófico”.

Diferenças

É interessante observar que não se pode confundir o ceticismo filosófico de que trata Voltaire com o ceticismo científico, para se evitar que se tome “como cético todo o homem que adota para si e sobre as coisas uma postura crítica”. O cientista, ao abraçar uma atitude cética, “faz uso de metodologia específica para criticar conceitos estabelecidos ou fatos tais como se apresentam à investigação científica”.

A separação entre Ciência e Filosofia, no entanto, não é uma questão simples. O método científico, cujo fundamento bebeu de fontes primárias do pensamento universal, consideradas na Filosofia da Ciência, dizem, parece ter perdido muito com esse distanciamento. Questiona-se a divisão entre Ontologia (estudo da natureza do ser) e Epistemologia – afastando questões metafísicas das investigações – e o estabelecimento de certo cientificismo no desenvolvimento da própria Filosofia, influenciado pelo positivismo. Pensadores como Rousseau, Marx e o próprio Gramsci chegaram a mostrar que o avanço científico linear é insuficiente no auxílio à humanidade e seus problemas de toda ordem.²

Voltaire é um dos filósofos mais conhecidos durante o “resgate”, a seu modo, do ceticismo no Renascimento. E os ideais cristalizados pelo francês se tornam, desta maneira, barreiras a serem superadas. Do lado cristão, quem tomou para si esta empreitada foi o filósofo Blaise Pascal (1623-1710), para quem “o ceticismo teria consequências desesperadoras no plano existencial, como o ateísmo”.

Quando morreu, em 1778, Voltaire provavelmente jamais imaginaria que suas posturas sobre as instituições fossem influenciar gerações de estudiosos. Foi através de seus posicionamentos que várias mudanças ocorreram na França, notadamente em relação à liberdade de imprensa, a diminuição dos privilégios do clero e à tolerância religiosa (num país marcado pela luta entre católicos e protestantes). O pensamento de Voltaire também causou grande impacto sobre o que viria a ser a aplicação da proporcionalidade tributária. Curiosamente, a mesma Revolução Francesa que Voltarei ajudaria a eclodir (post mortem), acabou por instaurar o aumento de impostos “para financiar guerras, tanto coloniais quanto napoleônicas”. Enfim, tudo o que se desfruta hoje em termos de liberdades (em todos os sentidos) se deve, e muito, ao filósofo parisiense, que se imortalizou, dentre outras coisas, por acreditar que se deve julgar um homem “mais pelas suas perguntas que pelas suas respostas”.

Primeiro encontro de Voltaire com Frederico, o Grande (Harper’s New Monthly Magazine)

Notas:

¹ – Disponível em http://pensador.uol.com.br/posso_nao_concordar/ – Acesso em 20/01/2014.

² – Trecho da matéria “A evolução do pensamento Cético”, publicada na Revista Filosofia Ciência & Vida – Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/imprime87204.asp – Acesso em 21/01/2014.

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

Voltaire – Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Voltaire  – Acesso em 20/01/2014.

Filósofo e escritor francês Voltaire – Disponível emhttp://educacao.uol.com.br/biografias/voltaire.jhtm – Acesso em 19/01/2014.

Ensaios Sobre o Ceticismo / [organizados por SMITH, PLINIO JUNQUEIRA; SILVA FILHO, WALDOMIRO J.]. – São Paulo: Alameda, 2007.

PIVA, Paulo Jonas de Lima. A evolução do pensamento Cético – artigo publicado na Revista Filosofia Ciência & Vida – Disponível emhttp://portalcienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/imprime87204.asp – Acesso em 21/01/2014.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.