O que a psicanálise poderia dizer sobre isso?
Sou uma aficionada pela série americana The Walking Dead, que é uma adaptação para a TV da obra homônima dos quadrinhos, criada por Robert Kirkman e desenhada por Tony Moore. Para quem não acompanha, a série, que está na sua 7ª temporada, narra a história de um grupo de pessoas que tenta sobreviver após um apocalipse zumbi. Todavia, a luta cotidiana pela sobrevivência e as cenas de suspense ou terror são apenas pano de fundo para o que é mais interessante na série: o desenrolar de como os sobreviventes vão tentando lidar com o mal-estar que está colocado – no caso, a ameaça zumbi – e que implicações éticas isso desencadeia.
Freud dirá que o mal-estar é constitutivo da cultura humana, ou seja, uma vez que ingressamos no mundo da linguagem, perdemos o paraíso, ou melhor dizendo, o mundo não pode ser para nós aquilo que é em si, será sempre aquilo que representamos, que desejamos ou que imaginamos. Nesse sentido, nossa relação com o mundo e com os outros é sempre de insatisfação, de mal-estar, não importa como estes se apresentem. Mas a questão que sempre intrigou Freud e sua psicanálise foi: O que fazer com este mal-estar para o qual não há cura?
No cenário apocalíptico de The Walking Dead o mal-estar está muito bem circunscrito e definido. O mal-estar são os zumbis, muito facilmente identificáveis por suas roupas maltrapilhas, seus corpos cadavéricos e seus andares claudicantes, e resolver o mal-estar também é algo relativamente simples: atirar, esmagar ou furar seus crânios. Talvez isso explique o grande sucesso da série no mundo todo, o fato de experimentarmos com ela relativo conforto, já que, de certa forma, a vida dos sobreviventes da ficção é muito mais simples que a do nosso mundo real, pois, ao contrário de nós, eles já têm identificados tanto o mal-estar quanto a solução para ele.
Mas o que me aparece genial na série é que, à medida que as temporadas vão avançando, fica cada vez mais evidente que os zumbis não são o maior problema. Para o grupo de sobreviventes que protagoniza a série, mesmo num mundo infestado por zumbis a ameaça mais cruel e perversa vem de outros viventes. É a maneira como alguns grupos e indivíduos vão lidar com o mal-estar instalado que se torna a maior ameaça.
Nesse sentido, as questões éticas discutidas na série são muito interessantes, afinal, diante do caos e da necessidade de sobreviver chega-se a um limite: aquele que vai definir quais viventes vão se manter dentro do espectro ético que definimos como humanos. E exatamente aí se evidencia o conflito trabalhado na obra, porque enquanto os zumbis – os mortos-vivos – são facilmente identificáveis e elimináveis, os vivos-mortos não, o que faz desses últimos mais temíveis e perigosos. Os vivos-mortos são aqueles que mesmo estando entre os sobreviventes, estão mortos, de certa forma, mortos para uma ética compartilhada que caracterizaria aquilo que chamamos de humanidade. Os vivos-mortos são aqueles que não se tornaram zumbis, mas mesmo assim perderam grande parte de sua humanidade.
Isso nos faz pensar que a humanidade, aquilo que nos enlaça a uma comunidade, não é algo dado a nós junto com a existência. Enquanto o João de Barro nasce João de Barro e será João de Barro até o fim, nós não nascemos humanos. Tampouco a humanidade está garantida depois de conquistada, porque não é um dado biológico, é uma construção no campo do simbólico e, como tal, pode se perder. A humanidade não é algo natural para os seres humanos.
Mas quero tratar aqui é do modo como os diferentes grupos lidam com o mal-estar instalado a partir do apocalipse zumbi. Certos grupos ultrapassam alguns limites éticos compartilhados, mas mantém outros, alguns criam novos códigos de conduta próprios, há os que tentam preservar tais limites éticos, e outros, ainda, os perdem significativamente, vivem quase como animais.
A partir da 5ª temporada dois desses grupos vão se cruzar. Ambos optaram por manter preservados os limites éticos humanos, mas cada um de uma maneira diferente. O grupo que protagoniza a série, liderado pelo ex-policial Rick, eventualmente se protege em algum tipo de espaço circunscrito, quando isso é possível e necessário, mas também está sempre se movimentando, buscando novos caminhos e enfrentando “o mundo lá fora”, aquele que está infestado de zumbis. Já o outro grupo, que aparece no final da 5ª temporada, criou no meio do caos uma cidade completamente murada, Alexandria. Em Alexandria tudo deve funcionar como funcionava antes dos zumbis. Trata-se de uma espécie de oásis. O recurso utilizado pela comunidade de Alexandria para lidar com a realidade é evita-la ao máximo, criando uma redoma para si.
É impossível não comparar Alexandria com os condomínios fechados, tão comuns nas cidades brasileiras, especialmente nos centros maiores. Os condomínios surgem também nessa tentativa de criar uma redoma de proteção contra a realidade violenta e insegura. Mas o que podemos dizer sobre esse modo de lidar com a realidade, à luz da psicanálise?
Voltemos a The Walking Dead. Há um momento em que o grupo liderado por Rick encontra a comunidade de Alexandria e, de certa forma, é acolhido por ela. A partir disso, fica evidente a diferença entre o modo de lidar com a realidade de cada um dos grupos. Enquanto o primeiro grupo lida com a realidade de modo a enfrenta-la e se relacionar com ela, o segundo prefere criar uma espécie de mundo paralelo, que faz de tudo para rejeitar e negar a realidade. Para retratar tal diferença, citarei um diálogo muito interessante entre Rick e o marido da líder de Alexandria, o arquiteto Reg, responsável pelo projeto do muro em torno da cidade. No diálogo, Rick elogia Reg, afirmando que ele fez um belíssimo trabalho em seu projeto de cercar a comunidade. Mas Reg responde que foi Rick quem fez um trabalho incrível lá fora, liderando seu grupo para sobreviver em meio ao caos. “O que eu fiz é apenas um muro”, finaliza Reg.
No meu entendimento, Reg tem toda razão. Um muro é apenas um muro, não pode ser considerado um grande feito em se tratando de resolver nossas mazelas. Criar muros para cercar aquilo que nos causa mal-estar, não tem sido uma estratégia de sucesso ao longo da história. Fizemos isso com os loucos (em menor medida ainda fazemos), fazemos isso com os criminosos, e em nenhum dos dois casos temos tido o sucesso esperado, ao contrário.
Já com os condomínios fechados, parece que a ideia seja colocar a nós mesmos entre muros, na ilusão que poderemos deixar o mal-estar do lado de fora. Mas a psicanálise nos ensina que, se existe um modo fracassado para lidar com o real, ou mal-estar que nos assola, é aquele que sempre o evita e rejeita. Criar um mundo fictício, murado, privado dessa relação com o mundo real – ainda que este seja cruel e ameaçador – não nos tornará mais eficientes e capazes de lidar com ele, ao contrário, nos fará cada vez mais frágeis e impotentes diante do mesmo.
Voltando à série, temos a fala de Carl, filho adolescente de Rick que, em poucos dias morando em Alexandria, repara e comenta com o pai: “Eles são fracos”. O rapaz está correto. A cidade sitiada cumpre a função de proteger seus moradores, mas, por outro lado produziu humanos frágeis, débeis, incapazes de lidar com a realidade de onde Carl veio. Carl vive no apocalipse desde a infância, foi educado nele e para sobreviver a ele.
E é claro que a estratégia usada por Alexandria tem duração limitada. O apocalipse zumbi continua em marcha e numa crescente do lado de fora, e não há o que fazer quanto a isso. Por mais que se evite e rejeite o mal-estar, em algum momento ele irá atravessar os muros e invadir a realidade, e é exatamente isso que acontece na série. Por isso, a estratégia dos muros é sempre ruim, pois além de não resolver o problema, ainda debilita e fragiliza os que ficaram ali cercados. Enquanto o grupo liderado por Rick se teceu e se fortaleceu criando estratégias para lidar com a realidade zumbi, os moradores de Alexandria se alienaram em sua redoma. Sendo assim, quando a realidade chegar, e obviamente que ela chegará para todos, nós sabemos exatamente quem terá mais condições de lidar com ela.
Todavia, assim tem sido a estratégia que temos utilizado para lidar com o mal-estar das grandes cidades, especialmente no que toca à violência. Nos cercamos em condomínios, certos de estarmos seguros em nosso oásis belo e feliz. Entretanto, tal ilusão tem seus dias contados, afinal, o mundo do lado de fora continua em marcha. Fechados em suas bolhas os “cidadãos de bem” acreditam estar a salvo do mundo “contaminado pelo mal”, assim, não precisam se dar ao trabalho de lutar ou intervir lá fora. A estratégia dos condomínios está produzindo pessoas cada vez mais alienadas em sua relação com o mundo, incapazes de tomar a cidade, a política e os espaços públicos como de sua responsabilidade. Sob o prisma dos condomínios o outro é sempre tomado como estranho, perigoso e ameaçador.
Mas será que não haveria outra forma de lidar com nossos mal-estares que não seja simplesmente padecendo ou nos protegendo deles? A psicanálise, com sua ética, nos convida a lidar com o mundo a partir do real. O real é aquilo que nos assola, o que não podemos significar completamente, que nos causa mal-estar porque escapa ao contorno do simbólico. Partir do real como ferramenta ética seria, portanto, não recusar e rejeitar o mal-estar, mas se deixar atravessar por ele para, a partir dele, construir caminhos e estratégias. Se o mal-estar é inevitável e permanente, nega-lo apenas nos torna frágeis e impotentes para lidar com ele.
Em The Walking Dead o grupo protagonista escolheu lidar com o real apocalíptico enfrentando-o, se movimentando, criando laços e inventando estratégias, tudo isso sem se furtar aos embates necessários. Obviamente que tais embates não se fazem sem perdas e danos, mas por outro lado, é isso exatamente que vai fortalecendo e tecendo um certo estilo do grupo para lidar com seu mundo decadente. Alexandria, por sua vez, do modo como foi idealizada, teve seus dias contados. Cumpriu, apenas por algum tempo, a função de isolar e proteger seus cidadãos entremuros, além disso, fez deles sujeitos débeis e frágeis para lidar com o mundo real.
Se a vida imita arte, como dizem, a estratégia dos condomínios igualmente fracassará, se é que já não está fracassando. E talvez já estejamos vivendo os reflexos da debilidade que eles têm produzido, quer seja, um descolamento cada vez mais frequente das pessoas da noção de cidadania. Ser cidadão, nesse ponto, é compreender que a cidade também é minha responsabilidade e só pode melhorar com a minha participação política ativa e que, além disso, ela não será boa para mim e o que me é familiar se também não for boa para muitos, inclusive para os que eu considero estranhos. Não trataremos das mazelas da nossa civilização cuidando apenas dos jardins dos nossos condomínios. Aliás, o mosquito transmissor da dengue está aí para não deixar que a gente se esqueça disso. Mas isso já é tema para um outro texto.