John Stuart Mill – Até onde vai nossa Liberdade?

Fonte: http://www.theimaginativeconservative.org/wp-content/uploads/2014/08/mill.jpg

Com raízes em princípios do eudemonismo, que julga como eticamente positivas todas as ações que possam levar o ser humano à felicidade, o utilitarismo, inicialmente defendido por Jeremy Bentham e posteriormente também defendido e ampliado por John Stuart Mill, pode ser resumido como sendo uma doutrina ética que defende que nossas ações são boas quando pretendem produzir a maior felicidade para o maior número de pessoas e são más quando promovem o contrário disso.

Nascido em 1806 em Londres, na Inglaterra, Stuart Mill foi um filósofo e economista, considerado um dos mais liberais e influentes do século XIX. Filho de James Mill, foi criado rigorosamente para defender o utilitarismo proposto por seu padrinho Jeremy Bentham.

Stuart Mill se destacou então em muitos campos, desde história a política, mas nesse artigo iremos discutir o significado e alguns aspectos da doutrina ética que ele defendia, a saber, o utilitarismo, e as implicações dessa doutrina para as ações e vida humana. Uma das máximas mais famosas de Stuart Mill: “Sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano”, servirá como nosso norte no desenvolvimento do texto a seguir.

Sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano

Mill defendia que todo ser humano deve tomar suas decisões baseado no máximo bem possível para o máximo de pessoas possível. Ele também defendia que o indivíduo deve ser livre para tomar atitudes que lhe proporcione felicidade, ainda que isso possa prejudica-lo, mas como dono de si próprio, ele tem o direito de fazer aquilo que lhe apetece.

Entretanto, ele também deve levar em conta a felicidade dos outros, logo, esse indivíduo é livre para fazer o que queira e tomar decisões que afetem seu corpo, desde que isso não afete terceiros. Portanto, sobre seu corpo e mente, esse indivíduo é soberano, sendo vetado ao governo e à sociedade, decidir o que esse homem deve ou não fazer.

Vale ressaltar que esse princípio ético se aproxima bastante da doutrina de Jesus Cristo, descrita na Bíblia, na qual ao exortar a um doutor da lei, usa a parábola do bom samaritano, que ao ver caído e espancado na estrada um homem judeu, que aquela época era considerado seu inimigo, ainda assim, cuidou dele, levando-o a uma hospedaria e pagando por assistência médica. (Lc 10:25-37). Ou seja, o samaritano fez uma ação que levava em conta não apenas suas próprias necessidades e felicidade, mas também a máxima felicidade possível naquele contexto. Para Mill, o “ama ao teu próximo como a ti mesmo” constitui o ideal da moralidade consistida no utilitarismo.

Fonte: http://www.a12.com/files/media/originals/o_bom_samaritano.jpg

Como visto, o utilitarismo avalia a utilidade de cada ação, defendendo que ela só deve ser realizada a partir do momento em que se avaliam as suas consequências e se ela vai ser útil ou não, ou seja, cada ação deve ser avaliada de acordo com sua utilidade prática. Para essa doutrina, ser útil é ponto mais elevado da moral (SANTANA, 2016).

Essa linha filosófica, já era cultivada na Antiguidade, havendo relatos de pensamentos semelhantes em Epicuro de Samos, na Grécia, passando por Richard Cumberland, no século XVII, Francis Hutcheson que defendia que a melhor ação é a que busca a maior felicidade para todos e David Hume que tentou compreender as fontes das virtudes partindo da sua utilidade (SANTANA, 2016).

A principal diferença entre Bentham e Mill está na forma como enxergavam os prazeres. Bentham defende que as nossas ações devem ser feitas a partir da quantidade de prazer que pode proporcionar para todos, enquanto Mill observa que há prazeres que são superiores aos outros, de forma que a qualidade do prazer seria o que realmente importa. Os prazeres inferiores são em sua grande maioria sensuais e relacionados à simples satisfação de desejos materiais. Os prazeres superiores estão relacionados com a felicidade que se alcança ao se buscar a intelectualidade e cultura. A partir disso, ele declara que é melhor ser um sábio infeliz do que um tolo feliz.

Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-KjnjXJBGhD8/Ua6pK66fYMI/AAAAAAAAdb0/p8ZO63BmoWA/s400/saindo+do+controle

Podemos então diferenciar isso como hedonismo quantitativo e hedonismo qualitativo. O hedonismo quantitativo, defendido por Bentham diz que o valor de um prazer depende apenas de sua duração e intensidade. O hedonismo qualitativo, defendido por Mill diz que o valor de um prazer depende de sua qualidade. (BRAY, Helena; 2014)

O indivíduo poderia se desenvolver qualitativamente a partir de experiências em sua vida, passando então a diferenciar os prazeres inferiores (comparáveis aos de um animal) dos prazeres superiores, transformando-se e crescendo. (DIAS, Maria Cristina Longo Cardoso; [?])

A filosofia de Mill não era tão radical que pretendesse fazer uma revolução, mas ao invés disso, tencionava fazer reformas na sociedade, na política, na economia e nas relações humanas, se estendendo inclusive à emancipação feminina, questão fortemente aflorada pelo relacionamento que teve com Harriet Taylor, defensora dos direitos da mulher.

Stuart Mill foi além de Bentham na aplicabilidade do utilitarismo. Ele queria não apenas usá-lo para tomar decisões cotidianas, mas inclusive para ser aplicado política e socialmente, ou seja, para ser realmente implantado no mundo palpável, saindo da teoria e se tornando prática.

Ele acreditava que se podia estabelecer um tipo de educação na qual os indivíduos desde crianças aprendessem a pensar na felicidade individual como sendo indissociável da felicidade coletiva, e que o bem-estar do indivíduo só seria completo a partir do bem-estar da sociedade.

Deste modo, ao crescer aprendendo isso, as pessoas sempre pensariam no bem-estar coletivo ao tomar uma decisão. Para Mill, o governo deve assegurar que as pessoas tenham o direito de buscarem sua própria felicidade, sendo permitida a intervenção nesse processo apenas se a busca de felicidade de alguém impedir de alguma forma a felicidade de outros. Este é o princípio do dano. Ele demonstra que a felicidade de um não é garantia suficiente da felicidade de todos.

Fonte: https://www.greenme.com.br/images/viver/saude-bem-estar/felicidade.jpg

O princípio do dano explica que a única razão para interferirmos na felicidade de alguém é a autoproteção (BRAY, Helena. 2015). Notemos que Mill defende que o estado não deve interferir na ação de uma pessoa desde que essa ação só prejudique a si próprio. A única parte da conduta de uma pessoa sobre a qual ela deve responder diante da justiça é aquela que interfere na vida de outras pessoas. Além do mais, o indivíduo só deve ser julgado se o dano causado a outra pessoa for realizado sem o próprio consentimento da pessoa.

Um bom exemplo seria o caso famoso de Bernd Jürgen Armando Brandes que consentiu em ser morto e depois servir de alimento para o canibal alemão Armin Meiwes, em 2001. (Folha de São Paulo, 2003). Se a lógica do princípio de dano fosse inteiramente aplicada aqui, Armin Meiwes não seria condenado, visto que a vítima consentiu em todo procedimento. Aqui se concretiza também a celebre máxima de que sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano.

Ao procurar entender a origem da felicidade humana e por que a desejamos, ele chegou à conclusão de que a única evidencia de que desejamos algo é que realmente a desejamos. Isso seria um tanto quanto insatisfatório em termos explicativos, mas ele continua demonstrando a distinção entre dois tipos de desejos: os desejos imotivados e as ações conscienciosas. O primeiro tipo é aquele que queremos por que nos darão prazer o e segundo tipo são as ações que praticamos por senso de dever, que no momento não nos trarão nenhum prazer imediato, mas a longo prazo traz. Esse último tipo não é uma ação que provoca nossa felicidade, mas que serve como meio para alcança-la. Portanto, desejamos tanto a felicidade que usamos todos os meios para alcança-la, seja por meios diretos ou indiretos.

Sobre a prática de suas teorias, citada acima, Mill tentou aplica-la em várias áreas, como economia, defendendo um mercado mais livre, com intervenção mínima do governo; foi considerado um dos primeiros expositores do feminismo, ao defender o direito ao voto da mulher, e era amplamente contra a escravidão, citando a tão famosa frase “Já não há mais escravos legais, exceto as donas de casa”, onde defende ao mesmo tempo o fim da escravidão e faz uma crítica à posição inferior que as mulheres ocupavam.

O utilitarismo também foi denominado radicalismo filosófico, visto que Bentham pretendia reestruturar os valores éticos, colocando a utilidade como valor maior de uma ação/atitude, e até reestruturar a sociedade, realizar uma reforma em seus fundamentos, se possível.

Essa teoria difere radicalmente de outras, por que não coloca o motivo da ação da pessoa como indicador de caráter, visto que uma intenção ruim pode ter consequências boas e uma intenção boa pode ter consequências ruins. (COBRA, 2001). O utilitarismo é apoiado por doutrinas teológicas, visto que coincide com a crença de que o maior desejo de Deus é que o homem produza a felicidade, teoria essa proposta por John Gay, estudioso e filósofo que se dedicou a estudar a Bíblia.

Fonte:https://historiadoreshistericos.files.wordpress.com/2010/10/20071120112352-cerebro.jpg

Pode-se imaginar o furor que as ideias liberais de Mill provocaram e ainda mais seu empenho em torna-las legalmente possíveis, assim como suas ideias feministas. Mas ele se tornou ainda mais conhecido e comentado após a sua morte, visto que como não inspirava mais tanto perigo, podia ser citado livremente, arrebatando defensores em todos os lugares, e inclusive sendo citado por dois lados de uma mesma discussão sobre a proibição ou não do fumo em locais públicos.

Mas o que mais se destaca em Stuart Mill não é sua exposição do utilitarismo, e sim sua ardorosa defesa da liberdade. Para ele a felicidade não deve ser vista como mais importante do que a liberdade. Liberdade esta que sendo promovida e assegurada pelo governo, deve, conforme ele diz, promover a felicidade de cada indivíduo e por fim, da sociedade.

Como Reeves (2006) pontua, Mill queria mesmo preservar um espaço em que o homem pudesse ter autonomia e liberdade sobre suas ações, em que pudesse ser senhor de sua própria vida sem interferências, mas também acreditava que havia formas de vida que eram melhores que outras, e que o homem devia através de sua liberdade, construir o que lhe significa por felicidade.

Fonte:http://dinheirama.s3.amazonaws.com/wp-content/uploads/2014/05/16113024/20140516-dinheirama-controle-liberdade.jpg

Mesmo tendo sido expositor de uma grande teoria ética e sendo uma figura popular e apoiada, Mill não deixou de lado a desconfiança nos sistemas filosóficos que pretendiam mudar radicalmente a sociedade, o que contribuiu para que ele se tornasse cauteloso em relação a formar uma escola de pensamento. Não há uma religião em torno de seus pensamentos e sua teoria filosófica. O que se pode afirmar que ele deixou foram perguntas que nos impactam ainda hoje de forma bastante atual. Quando é que a segurança de uma nação suplanta a liberdade de expressão? O estado pode interferir na vida dos indivíduos? Pode-se legalizar a prostituição? Como? (REEVES, Richard , 2006)

Stuart Mill tentou responder a essas perguntas, demonstrando estar séculos adiante de seu tempo, trazendo questões que ainda são persistentes no século XXI. Mill acreditava que o governo era importante no sentido de prover econômica e educacionalmente a população, mas que não deveria interferir em questões em que o indivíduo pudesse decidir por si.

Fica claro para nós, que embora ele tenha defendido o utilitarismo, sua principal questão era a liberdade. Liberdade de ir e vir, liberdade de tomar decisões, liberdade de fazer coisas que poderiam ser prejudiciais para si próprio, liberdade para escolher aquilo que significasse felicidade para si. Liberdade para ser soberano sobre seu próprio corpo e mente.

Fonte: http://3.bp.blogspot.com/-_eQ0RPdecB8/TgJowUxE6HI/AAAAAAAAAKs/RmLzdBQX5xs/w1200-h630-p-nu/Charge+-+Liberdade+de+express%25C3%25A3o.jpg

Referências

BRAY, Helena. O hedonismo qualitativo de Stuart Mill. Disponível em < http://jornaldefilosofia-diriodeaula.blogspot.com.br/2014/02/o-hedonismo-qualitativo-de-stuart-mill.html> Acesso em 25 mar. 2016.

BRAY, Helena. O princípio do dano. Disponível em <http://jornaldefilosofia-diriodeaula.blogspot.com.br/2014/04/o-principio-do-dano.html>. Acesso em 25 mar. 2016.

COBRA, R.Q. Temas da filosofia: resumo. Disponível em < http://www.cobra.pages.nom.br/ft-utilitarismo.html>. Acesso em 25 mar. 2016.

DIAS, Maria Cristina Longo Cardoso. A concepção de ética no utilitarismo de John Stuart Mill. Discurso, [S.l.], n. 44, p. 235-260, dec. 2014. ISSN 2318-8863. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/89097/91988>. Acesso em: 24 mar. 2016.

PRESSE, France. “Rezei por nós, e o comi”, diz alemão acusado de canibalismo. 03/12/2003. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u66241.shtml>. Acesso em 25 mar. 2016.

REEVES, Richard. John Stuart Mill, 2006. Disponível em: < http://criticanarede.com/his_jsmill.html> Acesso em : 25 mar. 2016.

SANTANA, Ana Lúcia. Utilitarismo, 2016. Disponível em <http://www.infoescola.com/etica/utilitarismo/>. Acesso em:25 mar. 2016.