Batman V Superman: e o ciclo que não se fechou

No início de 2016 chegou aos cinemas um dos filmes mais esperados da temporada de arrasa quarteirões: Batman v Superman: Dawn of Justice, traduzido como A Origem da Justiça no Brasil, dirigido pelo diretor Zack Snyder com roteiro de David Goyer e Chris Terrio, tendo nos papeis principais os atores Ben Affleck (Batman) e Henry Cavill (Superman) além de outros nomes como Gal Gadot, Amy Adams, Jesse Eisenberg, Diane Lane e Laurence Fishburne. A premissa do longa gira em torno dos desdobramentos e consequências ocorridas após os eventos de Man of Steel (Homem de Aço, de 2013), além de uma nova leitura e abordagem do universo superheroico da DC\Warner para os sétima arte.

A DC\Warner Bros. definiu o tom dos seus filmes do subgênero super-herói a mais de dez anos, com o lançamento de Batman Begins (2005) de Christopher Nolan. Após a consagração de The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, de 2008) com a ajuda do malsucedido Green Lantern (2011), e, neste meio tempo, houve os resultados não tão expressivos atingidos pelo nostálgico Superman Returns (2006). Todas as investidas do estúdio em seus personagens deste estilo seriam definidas a partir da inclinação sombria, realista (ou, ao menos plausível) e inseridas nos longas do estúdio.

Mesmo com menor participação final do que no filme de 2013, Hans Zimmer (em parceria com Junkie XL) ficou no encargo da trilha sonora, um dos pontos altos do longa, nos entrega faixas como Beautiful Lie, Men Are Still Good e This is My World, fortalecendo ora o tom epopeico ora dramático da obra de 2016. Visualmente, temos a já conhecida acurácia de Zack Snyder em ambientar-nos às diferentes locações das filmagens, mesmo que tais detalhes aprecem somente na versão estendida. A fotografia e figurinos também se colocam com um ponto alto do filme, em comparação com o roteiro, que possui algumas falhas em seu desenvolvimento.

Num outro ponto da realização de Batman v Superman, a construção publicitária do longa já nos oferecia o que estava por vir, sempre frisando o conflito ideológico e psicológico entre os dois maiores heróis da DC Comics. Este embate já figurou em edições de diferentes revisas em quadrinhos, mas nunca tinha sido transplantado para a  sétima arte, justamente por envolver uma demanda simbólica e de investimentos maior do que os estúdios (estima-se que o filme tenha ultrapassado a casa dos 400 milhões de dólares em custos), neste caso a Warner Bros., estariam dispostos a suprir ou apostar.

Importante destacar, também, que a análise aqui apresentada se pautará na versão definitiva do filme, que não chegou aos cinemas em abril de 2016, mas sim em formato de DVD e Blu-Ray no meio daquele ano, adicionando 30 minutos a já extensa cópia original, em suas mais de duas horas de duração. Esta ressalva merece espaço por esta versão completa ser superior e, mais do que isso, suprimir muitos dos problemas encontrados na versão exposta ao grande público.

Esta diferenciação entre as duas versões agora existentes só reforça a ideia de que estava em mãos um material rico e com substrato suficiente para se igualar ou até mesmo superar incursões maiores do gênero como a trilogia Cavaleiro das Trevas (2005-2012) de Christopher Nolan ou nos, já longínquos, Superman I e II (1978 – 1980) do final do século passado, protagonizados por Christopher Reeve, isso nos atendo aos dois maiores ícones da DC Comics e da cultura pop superheroica em geral.

A presença da Mulher Maravilha não colocada em relevo nesta análise, por dois motivos específicos. O primeiro deles de ordem mais pertinente diz respeito a ausência de importância em suas falas e situações no roteiro em relação ao personagem principal deste artigo. Na outra vertente vem a questão mais complexa de que sua inserção na trama não representar um mote de grande impacto na mesma, principalmente levando em consideração o peso próprio que a personagem já possui isoladamente, ganhando até mesmo uma adaptação própria nos cinemas.

Além destas questões, houve um grande debate, e cisão, entre críticos e público em geral a respeito do filme, seus personagens, história, enredo e tonalidade. É importante salientar que Dawn of Justice é, mesmo que não nominalmente, uma continuação direta dos acontecimentos de Man of Steel. Esta ligação entre os filmes será utilizada em alguns momentos neste artigo, cujo foco é o Superman – a falta de menção à Mulher Maravilha provém desta circunstância e, também, pela presença da personagem (apesar de agradável) não acrescentar ou alterar os cursos do filme – e os desdobramentos que este personagem carrega nas mais de três horas de duração da versão definitiva.

A mitologia da nona para a sétima arte

Já faz alguns anos, duas décadas ou três décadas, ao menos, que os estúdios de hollywood passam por uma crise criativa. Recentemente esta situação se tornou ainda mais visível devido a imensa quantidade de reboots (refilmagens), adaptações de livros, contos, expansões de curtas-metragens e falta de roteiros originais em obras fílmicas. Batman v Superman: Dawn of Justice segue uma tendência forte nos cinemas atualmente, constituindo a onda de adaptações cinematográficas advindas das histórias em quadrinhos, as comics books.

O aproveitamento destas estórias pelo cinema é de longa data, e ocorre pelo fato de, muitas vezes, já terem em si um andamento e organização dos acontecimentos da trama que facilitam sua transposição da plataforma escrita para a filmada. (REBLIN, 1992; REYNOLDS, 2012; SILVA, 2010). Se levarmos em consideração que o modelo das graphic novels possuem uma plasticidade imagética superior, em comparação com suas contrapartes tradicionais, fica mais fácil compreender a busca por estas obras como possibilidade de adaptações para o cinema.

No caso de Dawn of Justice esta transposição foi facilitada pela premissa de conflito já seminal à ideação do filme, ou seja, a divergência de ideias entre os super-heróis que dão título à obra. Como dito por Comparato (2000), a existência de um conflito base melhor pavimenta o desenvolvimento de um roteiro ou narrativa: “Construir a story line é determinar o conflito; escrever uma sinopse é descobrir as personagens; estruturar é organizar uma ação dramática; elaborar o primeiro roteiro é chegar aos diálogos e ao tempo dramático; trabalhar o roteiro final é manejar as cenas, isto é, a unidade dramática.” (COMPARATO, 2000, p. 29).

Nesse contexto de importância do escopo narrativo, apesar de apresentar algumas falhas em aspectos de sua montagem e edição, há momentos-chave em Batman v Superman com relação ao seu texto, as palavras, valorizadas por Comparato (2000). E são estas passagens que serão utilizadas no decorrer deste artigo de modo a enriquecer a análise, costurando os argumentos expostos com colocações teóricas específicas. Esta opção de olhar para a obra fílmica seguindo estas diretrizes analíticas tem como objetivo o foco no conflito matriz de sua exposição:

Mas a ideia audiovisual e dramática deve ser definida através de um conflito essencial. A este primeiro conflito, que será a base do trabalho do roteirista, chamaremos conflito-matriz. Embora a ideia seja algo de abstrato, o conflito-matriz deve ser concretizado por meio de palavras. Começa aqui o trabalho de escrever: fazemos um esboço e começamos a imaginar a história, tendo como ponto de partida uma frase a que chamamos story line. Assim, a story line é a condensação do nosso conflito básico cristalizado em palavras. (COMPARATO, 2000, p. 23 – grifo meu).

Portanto, a ideia de uma estrutura matriz, chamada por Comparato de conflito-matriz está presente na amplamente utilizada jornada do herói trabalhada, por exemplo, por Vloger (2006) ou na morfologia do conto maravilho de Propp (1977), dentre outras proposições de apuramento narrativo, na literatura, cinema, teatro, etc. Em suma, temos diferentes etapas, nas quais e pelas quais, o herói irá desenvolver suas habilidades, negar, em alguns momentos, seus encargos e assumir sua condição como tal ao fim do caminho percorrido em sua história.

Figura: O atos (ou etapas) da jornada do herói
Fonte: (VLOGER, 2006, p. 159).

Assim, a organização das narrativas neste padrão de atos descrito por Vloger (2006) é visível em diferentes obras, não apenas no cinema. Em Batman v Superman, especificamente, tanto os limites, como as passagens entre os atos é bem visível, até porque com estas etapas do desenvolvimento da história e, levando em consideração a quantidade de temas e personagens, o caminho a ser seguido pela direção do filme se fortalece, no sentido de definição dos rumos a serem tomados, no desenrolar da obra. Estas funcionalidades presentes nos atos estoriais também são levantados por Propp (1977, 32-33), quando o autor disserta que:

Podemos decir, anticipando, que las funciones son extremadamente poco numerosas, mientras que los personajes son extremadamente· numerosos. Esto explica el doble aspecto del cuento maravilloso: por una parte, su extraordinária diversidad, su abigarrado pintoresquismo, y por otra, su uniformidad no menos extraordinaria, su monotonía. Las funciones de los personajes representan, pues, las partes fundamentales del cuento, y son ellas las que debemos aislar en primer lugar.

Este percurso clássico do heroi, com seus desafios, barreiras e superações, é um dos objetos de análise de Campbell (1997), quando este autor elucida uma visão mais histórica e antropológica do papel do heroísmo nas sociedades humanas. Nesta visão, há toda a carga mítica e mitológica de um ser excepcional em uma comunidade específica, daí a questão da diversidade modular do mito, por haver uma imensurável quantidade de adaptações dos passos a serem seguidos pelas figuras fantásticas destas histórias:

O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloqüência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu. (CAMPBELL, 1997, p. 13-14).

Por esta razão é que podemos dizer que estamos diante de grandes ritos, arcabouços mitológicos, criadouros de cânones e arquétipos passíveis de trânsito os diferentes tipos de manifestação simbólica e cultural ao redor do mundo. Em Batman v Superman, há uma tentativa de colocar em tela um exercício de lupa do micro situacional para o macro fenomênico, ou seja, a partir daquelas exposições cênicas, elaborar uma discussão maior alcance. Campbell (1997) também trabalha com esta ideia da mitologia como um reflexo do que a sociedade vê como caminho a ser seguido pelos seus pares, ou então numa amostragem das situações cotidianas e rotineiras das comunidades que cultuam ou reificam estes mitos e ritos ao longo do tempo.

No limite desta interpretação, a respeito do motor narrativo assegurado pelo conflito matriz da história\mito\fábula em questão, temos a dualidade entre o humano e o sobre-humano, o uso da moral individualista, mais figurativa em Batman, com os questionamentos de como não apenas enxergar, como colocar em prática uma moralidade universal e equilibrada para todos os viventes daquela sociedade, dilema vivido pelo Superman desde a sua criação no século passado:

A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás. Com efeito, pode ser que a incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorra do declínio, entre nós, desse auxílio espiritual efetivo. Mantemo-nos ligados às imagens não exorcizadas da nossa infância, razão pela qual não nos inclinamos a fazer as passagens necessárias da nossa vida adulta. (CAMPBELL, 1997, p. 9).

Seguindo as colocações de Campbell (1997), Flávio Kothe (1985), também lança um olhar analítico sobre o percurso tanto das narrativas fantásticas como do heroi, tendo como foco aspectos como o heroi– representado pelo Superman – e o anti-herói, aquele que enfrentará os deuses ou colossos para provar o seu valor diante do seu povo, como mostra da capacidade de contrariar o poderio das divindades – aqui a similaridade com Batman é mais clara.

Além da premissa básica do conflito entre Batman e Superman, há o aproveitamento e aumento das temáticas trabalhadas no primeiro filme do universo expandido da DC\Warner, Man of Steel, especialmente no que tange à chegada tanto de um ser de outro planeta como detentor de poderes inimagináveis à Terra. A fala de um dos personagens (ou melhor sai uma participação especial) do filme de 2016, o astrofísico Neil DeGrasse nos traz as reflexões sobre um alienígena com poderes de deus vivendo entre nós:

Neil deGrasse Tyson: We’re talking about a being whose very existence challenges our own sense of priority in the universe. And you go back to Copernicus where he restored the sun in the center of the known universe, displacing Earth, and you get to Darwinian evolution and you find out we’re not special on this earth; we’re just one among other lifeforms. And now we learn that we’re not even special in the entire universe because there is Superman. There he is, an alien among us. We’re not alone. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

E para fortalecer ainda mais os dois primeiros atos do filme, o diretor Zack Snyder faz uso de um recurso importante da história em quadrinhos de 1986 de Frank Miller – com alguns elementos também de sua versão cinematográfica de outro clássico: Watchman de 2009 –, na qual opiniões de especialistas, pessoas comuns e até mesmo de vilões a respeito do Batman são expostas. Em sua adaptação, os roteiristas, nos trazem a perenidade dos questionamentos a respeito da condição super-heróica do Superman na Terra, ou do modo de agir do homem morcego.

O peso destas obras é notado em várias passagens do longa, dando o tom de sua narrativa, desenvolvimento e consequências para os personagens envolvidos na trama. Esta carga das referências, inclusive, irá atrapalhar certos pontos de ligação e fluidez do filme, já que a grandiosidade e complexidade dos elementos envolvidos acarreta uma inevitável supressão na busca por uma forma coesa de contar a história que assistimos. No entanto, nota-se um tom de seriedade, dramaticidade e confronto com o real em um grau muito maior daquele visto em outros filmes do gênero.

Ponto e Contraponto: Batman

Superman e Batman, dificilmente, não serão listados entre os maiores super-heróis de todos os tempos. O último filho de Krypton foi criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shuster, já o Cavaleiro das Trevas veio um ano depois, 1939, pelas mãos de Bill Finger e Bob Kane. Ao longo dos anos os dois personagens foram sendo distanciados em suas ideações, identidades, representações e interpretações, ao ponto de vivenciarem inúmeros conflitos entre eles, mesmo sendo dois dos maiores líderes das aventuras da Liga da Justiça, união de todos os super-heróis da DC Comics.

Parte desta diferenciação entre os personagens de Dawn of Justice se incrusta numa grande trilha de popularização das histórias em quadrinhos ao longo das décadas. De um lado há um dos mais célebres fenômenos de popularidade e identificação imediata com um arquétipo tão fácil de encontrar em nosso mundo real como de representação em diferentes realidades culturais: Batman.

Do outro, apesar da premissa estar rechegada do seu tom ficcional originário da escalada tecnológica de seu tempo – e também com um subtexto menos denso dos imigrante judeus na América –, temos o primeiro e maior super-herói, carregando em si ideais de época, cargas simbólicas nacionais e todo um fundamento de representatividade ideológica de difícil transposição para nossos tempos: Superman.

Com base nestes extremos da composição dos personagens centrais do filme, neste trecho do presente artigo serão utilizadas, falas que remetem ou são diretamente extraídas do personagem Bruce Wayne\Batman em Dawn of Justice apesar de, teoricamente, o filme tratar dos acontecimentos centrípetos ao homem de aço, e não o contrário, como ocorreu na versão exibida nos cinemas, amplamente questionada por sua visão equalizadora da escuridão psicológica muito mais canônica ao morcego que sua contraparte alienígena do filme.

O baixio idealístico dos encapuzados chegou em seu extremo na década de 1980, em obras seminais produzidas por nomes como Frank Miller e Alan Moore. Com quase três décadas de atraso, esta percepção chega aos cinemas na junção de duas principais obras desta fase da nona arte: O Cavaleiro das Trevas de 1986 e A Morte do Superman de 1993.

Nesta mesma toada argumentativa, em seu ensaio sobre a diferença entre o heroísmo e super-heroismo, intitulado De Odisseu a Batman, Felipe Morcelli do portal Terra Zero, traz a reflexão tanto da concepção como dos atos entre o homem de aço e cruzador encapuzado. No primeiro caso, temos a situação clássica do filho de dois mundos que, para chegar ao panteão do qual fez parte um dia, precisa passar por desafios e provações e, também a aceitação do povo que faz parte.

Já no caso do homem morcego a situação é diferente, pelo fato de ter nascido e crescido num mundo já deteriorado, mesmo tendo saído de uma família abastada, numa similaridade a grandes heróis gregos como Odisseu, Dédalo ou Ajax, precisando provar-se em meio à sua realidade posta. Na mesma direção, sobre a questão do heroísmo clássico, Kothe (1985) expõe algumas considerações sobre o tema:

O clássico herói trágico nunca é um membro do povo ou da camada média. Dentro da filosofia de que, quanto maior a altura, maior também o tombo, ele geralmente está no topo do poder. Parece pertencer por direito natural ao plano elevado, mas aos poucos vai-se descobrindo o quanto ele está chafurdando no charco. Ele descobre a mão-de-ferro do poder, do destino, da história: descobre que o seu agir foi errado; descobre que não devia ter feito tudo o que fez; descobre que é o mais fraco na correlação de forças, embora aparente ser o mais forte, ou ainda que tenha acreditado ser o mais forte. E é lá embaixo que ele redescobre a sua grandeza, não significando isto, porém, que ele necessariamente deixe de morrer ou que venha a recuperar o poder perdido. Ele como que perde o poder terreno para conquistar um poder espiritual; ele como que se despe do agora, para, lá debaixo, resplandecer elevada sabedoria, transcendendo todos os seus juízes e algozes. A custa do próprio sangue, torna-se mensageiro do passado para o futuro, como as almas dos mortos eram evocadas, convocadas a comparecerem ao presente. O sangue trágico do presente conclama o passado para superar pela sabedoria a tragédia. (KOTHE, 1985, p. 26).

Em Batman v Superman a visão do Batman gira em torno da necessidade de se ter em mãos um dissuasivo frente a um ser de grande poder, caso assim as coisas caminhem, algo parecido com o personagem Ozymandias em Watchman, de Alan Moore – naquele caso, o papel de superman é emulado pelo Dr. Manhatham. Essa condição de poderio extremo do Superman, é um dos pontos levantados por Umberto Eco, em seu ensaio Apocalípticos e Integrados, endossando ainda mais a realidade da postura de Bruce Wayne, frente ao super ser que agora caminha entre nós:

Superman es prácticamente omnipotente. Su capacidad operativa se ‘extiende a escala cósmica* Así pues, un ser dotado con tal capacidad, y dedicado al bien de la humanidad (planteándonos el problema con el máximo candor, pero también con la máxima responsabilidad, aceptándolo todo como verosímil, tendría ante sí un inmenso campo de acción. De un hombre que puede producir trabajo y riqueza en dimensiones astronómicas y en unos segundos, se podría esperar la más asombrosa alteración en el orden político, económico, tecnológico, del mundo. Desde la solución del problema del hambre, hasta la roturación de todas las zonas actualmente inhabitables del planeta o la destrucción de procedimientos inhumanos (leamos Superman conel “espíritu de Dallas”: ¿por qué no va a liberar a seiscientos millones de chinos del yugo de Mao?), Superman podría ejercer el bien a nivel cósmico, galáctico, y proporcionarnos una definición de sí mismo que, a través de la amplificación fantástica, aclarase al próprio tiempo su exacta línea ética. En vez de esto, Superman desarrolla su actividad a nivel de la pequeña comunidad en que vive (Smallville en su juventud, Metrópolis ya adulto) y —como sucedía con el lugareño medieval, que podía llegar a conocer Tierra Santa, pero no la ciudad, encerrada en sí misma y separada de todo lo demás, que tenía a cincuenta kilómetros de su residencia— si bien emprende con la mayor naturalidad viajes a otras galaxias, ignora, no digamos ya la dimensión “mundo”, sino la dimensión “Estados Unidos” (ECO, 1984, p. 292).

A obscuridade de um Bruce Wayne cansado da luta incessante, e aparentemente sem resultados longevos, em sua cidade natal aparece em fortes falas na interpretação de Ben Affleck: “There was a time above… a time before… there were perfect things… diamond absolutes. But things fall… things on earth. And what falls… is fallen. In the dream, it took me to the light. A beautiful lie.” Esta mentira lamentada pelo homem morcego ocorre também no tempo despendido em Gotham City: “Twenty years in Gotham. How many good guys are left? How many stayed that way? He has the power to wipe out the entire human race. I have to destroy him.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

Já sobre o Superman, Wayne possui opiniões claras de contrariedade à sua presença e existência entre nós, principalmente após as milhares de mortes causadas na batalha de Man of Steel em Metrópoles: “ That son of a bitch brought the war to us two years ago. Jesus, Alfred, count the dead… thousands of people. What’s next? Millions?” a questão do uso e possibilidade de corrupção dos poderes pelo homem de aço recebem também ressalvas: “He has the power to wipe out the entire human race, and if we believe there’s even a one percent chance that he is our enemy we have to take it as an absolute certainty… and we have to destroy him.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n)

Nota-se uma alegoria do Superman como o poderio bélico dos Estados Unidos perante o mundo, mesmo que suas intenções iniciais sejam as melhores possíveis. Este senso alarmismo – alçado à pânico nacional nos EUA após os episódios de setembro de 2001 – será uma das matrizes do conflito entre os super-heróis: “ You’re not brave… men are brave. You say that you want to help people, but you can’t feel their pain… their mortality… it’s time you learn what it means to be a man.”

Outra metáfora explorada tanto na publicidade como também no filme é a diferenciação entre Gotham City e Metrópoles, cidades nas quais atuam Batman e Superman, respectivamente, reforçando as dualidades entre o simbolismo do anjo e demônio, luz e escuridão, esperança e pessimismo transcendido de ambos para as ruas destes centros urbanos:

Gotham City […] concentra todos os aspectos negativos que se podem encontrar num aglomerado urbano: decadência, sujeira, criminalidade, corrupção policial e muitos antros (muquifos e esconderijos para os criminosos da pior espécie). Metrópolis, ao contrário, destaca-se pela imponência: ela lembra um cartão postal, ou uma foto retocada na qual se visualiza apenas a imponência dos arranha-céus que parecem obedecer a uma disposição ordenada. Em contraste com obscuridade e sujeira de Gotham, Metrópolis é lima e ordenada, todos os serviços públicos parecem funicionar, e se ela necessita de um guardião, é para conter ameaças de origem alienígena ou catástrofes naturais, já que os criminosos que desafiam o Superman já estão, de saída, derrotados. Para muitos, Gotham City é Nova Iorque à noite, em contraposição à reluzente Metrópolis que seria a versão diurna da cidade. (RAMA, 2006, p. 58)

Outros elementos retratados pela autora, no que diz respeito à dualidade Gotham\Metrópolis, estão nas cores, tonalidades, representações gráficas – como no caso da presença de pombos e pássaros em praças e parques da cidade do Superman, em contraposição aos corvos e estátuas gárgulas nos prédios neogóticos de Gotham City.

O preto e o azul, anjo e demônio, dia e noite, a esperança e o pessimismo podem ser encontradas na dualidade dos herois e suas cidades. Estas máximas conotam o que será visto ao longo de Batman v Superman. Aqui reside um dos pontos cruciais de exploração do longa, quando temos diante da tela representações das cidades fictícias dos heróis: Gotham e Metrópoles. Como dito por Rama (2006) é notável como estes dois centros urbanos refletem as ideias de Clark Kent e Bruce Wayne, ponto forte de um dos diálogos do filme:

Clark Kent: What’s your position on the bat vigilante in Gotham?Bruce Wayne: Daily Planet, wait, do I own this one, or is that the other guy?
Clark Kent: Civil Liberties are being trampled on in your city, good people living in fear.
Bruce Wayne: Don’t believe everything you hear, son.
Clark Kent: I’ve seen it, Mr Wayne, he thinks he’s above the law.
Bruce Wayne: The Daily Planet criticizing those who think they’re above the law is a little hypocritical, wouldn’t you say? Considering every time your hero saves a cat out of a tree, you write a buff piece editorial about an alien who if he wanted to can burn the place down, and there wouldn’t be a damn thing we can about it.
Clark Kent: Most of the world doesn’t share your opinion, Mr Wayne.
Bruce Wayne: Maybe it’s the Gotham City in me, we just have a bad history with freaks dressed like clowns. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n – grifo meu)

As falas destacadas neste diálogo expõem de forma direta os pontos de vista diferenciados entre os personagens: de um lado os ideias, ou a crença neles, das liberdades civis e do outro o ceticismo extremado de um habitante urbano desacreditado dos porvires do meio em que vive. Este é sem dúvida um dos pontos mais ricos entre os dois maiores heróis dos quadrinhos, principalmente por representarem direta e objetivamente a vida nas grandes cidades, um sinal de nossos tempos. Quando voltamos nosso olhar para Dawn of Justice há uma distância entre o que foi mostrado na material promocional, principalmente nas imagens de divulgação das cidades e suas representações no filme.

Explica-se, há uma possiblidade riquíssima de antagonizar Gotham e Metrópoles pelos aspectos urbanos que as unem em suas diferenças, assim como na forma como tanto Clark como Bruce enxergam suas vidas nestes centros urbanos. Os Waynes representam as classes altas presente em centros urbanos decadentes pela criminalidade, desigualdade social e falta de horizonte de desenvolvimento para suas populações. Já os Kents, na figura de seu filho adotivo, veem na grande cidade àquela imagem eidética do mundo de possiblidades, o lugar ao qual o futuro espera quem lutar por ele, no velho arquétipo do imigrante do interior para o capital, da zona rural para a urbanidade.

Na versão estendida do filme é possível observar com maior clareza esta diferenciação dos heróis. Enquanto Bruce Wayne\Batman aparece em tela normalmente em ambientes noturnos e planos mais fechados, Clark Kent\Superman surge em planos mais abertos, faltando à direção de fotografia dar à estas cenas uma luminosidade mais condizente com a linguagem simbólica mais próxima do personagem, situação vista com maior vigor nos trailers, pôsteres e demais materiais de divulgação do filme, ótima ideia não aproveitadas no encontro destes titãs dos quadrinhos no cinema.

O (falso) deus?

Neste ponto, entramos no aspecto mais controverso e inquietante de Batman v Superman, ou seja, a representação do homem de aço no longa. A crueza e visceralidade desta adaptação de 2016 dificilmente será vista novamente, até mesmo pelas críticas abusivas ao filme, muitas vezes embasadas na aversão dos analistas do diretor da obra, mais do que sua criação em si.

Se uma tonalidade e panorama foram estabelecidos brilhantemente – ao menos até o porn destruction do terceiro ato, comum em filmes de heróis atualmente – em Man of Steel, ao final o mesmo soava incompleto pelas indecisões finais de Snyder. Três anos depois o diretor desperdiça uma oportunidade inigualável de superar o ciclo aberto em 2013. Esta perda de conclusão explica-se em um círculo narrativo clássico, mas eficaz: a tão estudada e desmembrada jornada do herói. Todos os passos de Clark Kent\Kal-El foram muito bem desenvolvidos no filme anterior, e cabia à esta continuação nos mostrar a maturação do ícone em que se tornou, mesmo que sem unanimidade.

Para facilitar o percurso mítico do Superman dos quadrinhos para o imaginário popular, como trabalhado por Reblin (2012) e Reynolds (1992), podemos traçar um breve retrospecto das “eras” do personagem ao longo do século XX e XXI, com auxílio de Silva (2010) nesta tarefa de síntese temporal. Começando então pelos anos dourados dos super-heróis temos o nascedouro de uma reificação titânica do kriptoniano em suas primeiras estórias, até mesmo com suas características humanais mais reduzidas:

Era de Ouro: O que importa não é como essa força se desenvolveu, mas a sua presença divinal na sociedade de agora. A própria faceta humana, a personalidade de Clark Kent, é mais apagada, pois sua utilidade na narrativa de aproximar a personagem divinal da humanidade tem menor importância. O Superman é quase um titã mitológico, uma força da natureza, que não reconhece as leis humanas nem o status quo social, tampouco se preocupa com gentilezas ou amabilidades. Ele é comprometido com a sua definição pessoal de justiça e não se prende a barreiras legais ou sociais. (SILVA, p. 27 – grifo meu).

Na chamada “Era de Prata”, superando parte do trauma das grandes guerras mundiais, houve um grande aumentos dos superpoderes super-heróis, aproximando-os ainda mais das referências gregas. O ponto de inflexão deste período foi a influência da obra Seduction of the Inocent [1]publicada em 1954 por Max Collins e Fredric Wertham, condenando a “má-influência” dos personagens dos quadrinhos nos jovens, em resposta vários códigos de edição e elaboração foram efetuados pelas editoras, em resposta a este movimento criado em torno de seus personagens. Superman sintetizou bem esta época, na qual ganhou boa parte de seus poderes mais conhecidos como o voo e aumentando para si o arquétipo altruísta em sua composição de personalidade:

Ao Superman ainda cabe a criação de outro conceito importante nos comic books: o arquétipo do super-herói paragon (original). Essa atribuição é dada por dois motivos principais: primeiro, pois a personagem é o super-herói original, o primeiro, e, em segundo plano, porque Superman é um personagem único, sendo ele o último e o melhor dos kryptonianos. O paragon como conceito, além de se referir ao melhor exemplar de um povo, é, nos comic books, representado por um conjunto de poderes específicos como: super-força, invulnerabilidade e vôo, cuja origem é curiosamente atribuída aos estúdios de Max Fleischer. O poder do vôo foi um acréscimo necessário para os animadores, pois a concretização das cenas de movimentação do herói por saltos demandaria a produção de várias cenas de corrida de impulso. A solução mais simples foi fazer com que a personagem voasse. (SILVA, 2010, p. 45).

A Era de Bronze foi marcada pela revisão de vários parâmetros e conceitos dos super-heróis. Muitos heróis mais jovens e urbanos foram criados neste período, de modo a buscar uma aproximação com a sociedade em geral, a editora Marvel nos trouxe exemplos como Demolidor, Homem-Aranha e os X-Men, criados ainda na alvorada dos anos 60.

Na outra vertente, do Superman, há o aumento do simbolismo cristão entorno do homem de aço, efeito aumentado pelo sucesso dos filmes protagonizados por Christopher Reeve: “O Pai e o Filho são pares do mesmo ciclo e, assim como Deus envia seu único filho, que é parte de seu ser, para purgar os pecados da humanidade, Superman chega das estrelas em sua manjedoura celeste, enviado por Jor-El, para se tornar futuramente o salvador diário de Metrópolis e do mundo.” (SILVA, 2010, p. 53).

Esta sobrecarga sobre o último filho de Krypton acabará na Era Moderna dos quadrinhos, ou também chamada de fase de Ferro, com a sua morte em 1993. Durante mais de cinco décadas as camadas simbólicas do homem de aço abraçaram elementos como o sonho americano juntamente com belicismo imperialista, emulações explícitas com deuses e semideuses gregos e Jesus Cristo, além, é claro, da adoção da jornada do herói como padrão para os demais encapuzados criados a partir de sua concepção ainda na década de 30.

A morte do Superman representou a queda do último dos grande heróis contemporâneos, já com inscritos no imaginário coletivo, e ainda hoje buscam uma nova abordagem ao personagem para nosso cético século XXI. Todos estes elementos, juntos, contribuem para este afastamento dos autores em oferece novas e construtivas histórias sobre o primeiro super-herói. A dificuldade em se trabalhar com o Superman vem na esteira destes óbices, já que tratar de uma entidade praticamente divina envolta nas mais idealizadas visões morais e ideológicas de nossa sociedade, é algo difícil de se propor.

Este paradoxo criativo ganha ainda maior peso, pressão e rico quando há adaptações do personagem em mídias como cinema e televisão, sempre havendo um temor pela frustração nestas representações: “Se e algo marca tudo que ganha o “S” é a “frustração”, […] A ideia é a seguinte, a marca “Superman” é tão grande, tão forte, tão vendável que qualquer coisa que contenha seu nome produz de imediato uma expectativa imensa em qualquer um.” o editor de um dos mais respeitados portais de quadrinhos brasileiros completa ainda: “Não necessariamente uma expectativa boa ou ruim, mas sempre uma grande expectativa.” (PENHA, 2016, p. s\n)

Mas, a pergunta principal de Batman v Superman: Dawn of Justice reside na questão sobre a vinda e existência de um alienígena super-poderoso entre nós e, em maior profundidade, quais seriam nossas reações diante deste cenário fictício. Nos últimos anos apenas dois outros filmes trouxeram uma reflexão com este nível de complexidade: Corpo Fechado de e Poder Sem Limites lançados em 2000 e 2012, respectivamente, filmes nos quais a máxima das consequências perante os atos de indivíduos com habildiades especiais é levado a desdobramentos máximos diante de seus mundos.

A visão extremada e pessimista com relação ao kriptoniano ganha força nas falas de Lex Luthor Jr. (numa interpretação exagerada e, por vezes, sem direcionamento adequado de Eisenberg). Fazendo uso de referências no paradoxo de Epicuro o personagem nos apresenta suas visões: “See, what we call God depends upon our tribe, Clark Joe, ’cause God is tribal; God takes sides! No man in the sky intervened when I was a boy to deliver me from daddy’s fist and abominations.” E o bilionário reforça este questionamento sobre a divindidade do Superman quando afirma que: “I figured out way back if God is all-powerful, He cannot be all good. And if He is all good, then He cannot be all-powerful. And neither can you be.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

Esta questão do aspecto divino dos super-heróis é definido por Reblin (2012) quando o autor diz que a marca teológica é indelével e inescapável ao Superman, independente da versão que se tenha do personagem quase octogenário. E, novamente, a inerência do referencial divino é trazido por Lex Luthor no filme, seguindo estes parâmetros teóricos:

The problem of you on top of everything else. You above all. Ah. ‘Cause that’s what God is. Horus. Apollo. Jehovah. Kal-El. Clark Joseph Kent. See. What we call God depends upon our tribe, Clark Jo. Because God is tribal. God take sides. No man in the sky intervened when I was a boy to deliver me from Daddy’s fist and abominations. Mm mm. I’ve figured it out way back, if God is all powerful, he cannot be all good. And if he’s all good then he cannot be all powerful. And neither can you be. They need to see the fraud you are. With their eyes. The blood on your hands. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n)

No filme há uma contraposição clara entre estes extremos de visão sobre seres super-poderosos. O próprio Superman questiona sua posição diante da humanidade, lembrando da projeção feita por seu pai adotivo Jonathan Kent: “All this time I’ve been living my life the way my father saw it. Righting wrongs for a ghost, thinking I’m here to do good. Superman was never real. Just the dream of a farmer from Kansas. Superman: No one stays good in this world.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

Questionar-se sobre a presença ou auto-representação de falso heroísmo é um dos pontos levantados por Propp (1977) como passíveis de exploração nas etapas da jornada do herói, especialmente nos dias de hoje, em um campo tão mais cheio de camadas e possibilidades de interpretações a respeito de um fato ou fenômeno, como a chegada de um extraterrestre com super poderes ao nosso mundo:

Una cuestión que concierne a los esquemas típicos… los esquemas transmitidos de generación en generación como fórmulas ya dispuestas, capaces de animarse con un nuevo sentido, de hacer nacer nuevas formaciones? ‘La literatura narrativa contemporánea, con la complejidad de sus argumentos y su representación fotográfica de la realidad, parece descartar la posibilidad de esta cuestión; pero cuando se encuentre ante los ojos de las futuras generaciones, en una perspectiva tan lejana como para nosotros lo está la Edad Media, cuando la sínteses del tiempo, ese gran simplificador, haya pasado sobre la· complejidad de los fenómenos y los haya reducido al tamaño de um punto que se pierde en las profundidades, sus líneas se fundirán con aquellas que ahora descubriremos nosotros, cuando nos volvemos para contemplar esa lejana creación poética -y el esquematismo y la repetición se instalarán por todo el recarrido” (PROPP, 1977, p. 134).

Essa nova complexidade do heroísmo pode ser observado, no caso do Superman, tanto em Man of Steel como em Batman v Superman. No primeiro caso, as falas de Jonathan Kent, a respeito de como a sociedade reagiria ao saber da existência de um ser com poderes de um deus, entre nós. Já no filme de 2016, esse papel é deixado para a mãe adotiva de Clark, Martha – além de Bruce Wayne e Lex Luthor, em tons mais pessimistas, deixando ao filho o arbítrio do que ele queira ou não ser para o povo da Terra.

Tentando dar um suporte ao seu filho nesta crise existencial e de identidade, Martha Kent sentencia seu posicionamento, muito próximo ao do que foi visto no primeiro filme do herói neste universo: “People hate what they don’t understand. Be their hero, Clark, be their angel, be their monument, be anything they need you to be… or be none of it! You don’t owe this world a thing, you never did.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

A colocação da mãe do super-herói não contesta o julgamento público, mas adverte seu filho perante a nocividade de tais juízos sobre a relação que o mesmo terá com a humanidade, mesmo que haja um porta-voz nomeando-o como um demônio entre nós, e não um deus enviado dos elísios, como entoado por Luthor em outro momento do longa: “We know better now, don’t we? Devils don’t come from hell beneath us. They come from the sky.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

Esta crítica exacerbada vinda das falas de Luthor é refletida em momentos chave – poucos, infelizmente na versão dos cinemas do filme – em que vemos um Superman com profundos problemas em relação à sua identidade, em uma mistura do falso herói proposto por Propp (1977), a relação entre sua condição sublime ou monstruosa como trabalhada por Hugo (1990)[2] ou, até mesmo, enxengando em si mesmo um aspecto muito mais grotesco que divino, como suporia seu pai Jor-El ao enviar-lhe à Terra. Não há, por parte de Clark Kent uma indecisão à lá Hamlet entre o ser ou não ser o herói, mas sim, o porque de não haver a possibilidade de excluir este juízo, pois não há lugar para ele neste mundo, e sua terra natal sequer existe.

A inserção destes temas de maior camada sociológica e até mesmo filosófica são marcas das HQs nas quais o filme se embasa, principalmente em Cavaleiro das Trevas, A Morte do Superman e o Reino do Amanhã (esta última marcada por seu luto e reclusão perante os seres humanos), obras nas quais o Superman possuiu seu maiores abalos psicológicos até hoje, em conjunto com as otimistas histórias presentes em Superman: As Quatro Estações (de 1998) e Superman: Grandes Astros (de 2006).

Conclui-se que, por não ter o seu caminho de retorno exposto adequadamente em Man of Steel, a provação máxima existente no terceiro arto de Batman v Superman se mostra muito mais em potencial do que em execução profícua e eficiente, para a trama em geral, e ao Superman especificamente, por não haver uma construção empática suficiente para provocar o efeito emocional desejado, em sua morte, como ocorrido na banda desenhada em 1993:

Esse sacrifício é reforçado como o motivo da perda no próprio leitor, pela perda do herói da narrativa que fecha um ciclo narracional e estabelece um ponto final para a história. Esse final ultrapassa as características normais da narrativa quando pensada fora da diegese. Porque a morte do Superman se torna uma edição multimilionária, dado o caráter mítico que a personagem possui. A morte do mito industrial atraiu milhares de leitores e vendeu muitas cópias para aqueles que não acompanhavam a narrativa da personagem, relacionando a morte da personagem na narrativa como o fim da história desta e, dessa forma, o fim do ícone que ela representa. (SILVA, 2010, p. 64).

Na jornada do heroi de Vloger (2006) este passo final é representado pelo sacrifício, retorno e catarse do protagonista, trazendo consigo o amadurecimento, aceitação, ao menos da maioria, e um novo estágio de sua condição para com seus iguais. A opção de Batman v Superman: Dawn of Justice se dá pelo círculo original da caminhada, principalmente na referência ao salvador cristão, a partir do qual o enviado dos céus retornará em sua glória após o sacrifício pelos humanos:

 A Provação nos mitos significa a morte do ego. Agora o herói se torna, plenamente, uma parte do Cosmos, morrendo para a velha visão limitada das coisas e renascendo para uma nova consciência de conexões. Os antigos limites do “Eu” foram ultrapassados ou aniquilados. De certa maneira, o herói torna-se um deus, possuidor da capacidade divina de pairar acima dos limites normais da morte, e é alguém capaz de ter aquela visão mais ampla que revela como todas as coisas estão ligadas. Os gregos chamam esse momento de apoteose — um degrau acima do entusiasmo, quando meramente se tem o deus dentro de si. No estado de apoteose, somos o deus. Ter experimentado o gosto da morte permite que nos sentemos na cadeira de  Deus por algum tempo. O herói que enfrenta a Provação mudou-se do ego para o self, mudou-se para sua parte mais semelhante ao deus. Pode haver também um deslocamento do self para o grupo, na medida em que o herói aceitar maior responsabilidade, em vez de ficar apenas cuidando de si. Um herói arrisca sua vida individual por amor à vida coletiva maior e conquista o direito de ser chamado Herói. (VLOGER, 2006, p. 174).

 Este é o estágio final e derradeiro, necessário para a completude do ciclo do herói em sua jornada: “Os heróis precisam passar por uma purgação final, uma purificação, antes de ingressar de volta no Mundo Comum. Mais uma vez, devem mudar. O truque do escritor, nessa ocasião, deve ser explicitar a mudança em seus personagens, no comportamento e na aparência, e não apenas falar sobre ela.” (VLOGER, 2006, p. 195).

Este é ponto de maior destaque para Umberto Eco (1984) em relação ao Superman, que é a melhor maneira, e muitas vezes a mais complexa, de trazê-lo para nossa era, com toda suas nuanças morais, políticas e culturais, já que a égide social na qual o personagem nasceu, diluiu-se há muitos anos, transformando esta transmutação ainda mais difícil para os nossos dias:

Es curioso observar cómo, entregándose al bien, Superman dedica enormes energías a organizar espectáculos benéficos, donde se recaudan fondos destinados a huérfanos e indigentes. El paradójico despliegue de medios (ta misma energía podría ser empleada en producir directamente riqueza o en modificar radicalmente situaciones más vastas), no deja de asombrar al lector, que ve a Superman perennemente dedicado al montaje de espectáculos de tipo parroquial. Si el mal asume el único aspecto de atentado a la propiedad privada, el bien se configura únicamente como caridad (25). Esta simple equivalencia bastaría para caracterizar el mundo moral de Superman. Pero, en realidad, nos damos cuenta de que Superman se ve obligado a mantener sus operaciones dentro del ámbito de las mínimas e infinitesimales modificaciones de su actuación, por los mismos motivos mencionados a propósito de la estaticidad de su trama: cualquier modificación general empujaría al mundo, y al propio Superman, hacia la consumación. Por otra parte, sería inexacto afirmar que la juiciosa y dosificada virtud de Superman depende, únicamente, de la estructura de la trama, y con ello de la exigencia de no hacer derivar de ella excesivos e irrecuperables desarrollos. Lo contrario es también cierto: que la metafísica inmóvilista contenida en esta concepción de la trama es la directa, y no deseada, consecuencia de un mecanismo estructural complejo, el cual se nos aparece como el único idóneo para comunicar, a través de una temática individualizada, una determinada enseñanza. La trama debe ser estática y eludir cualquier clase de desarrollo, porque Superman debe hacer consistir la virtud en varios actos parciales, nunca en una toma de conciencia total. Y la virtud, por su parte, debe de estar caracterizada por el cumplimiento de actos únicamente parciales, para que la trama resulte estática. Una vez más, el relato depende, no de la voluntad de los autores, sino de su posibilidad de adaptarse a un concepto del “orden” que insinúa el modelo cultural en que viven, y del cual fabrican, a escala reducida, maquetas “análogas”, con funciones de representación. (ECO, 1984, p. 294-295)

Esta dificuldade mencionada por Eco é suscitada em dado momento por Perry White em Batman v Superman, questionando os posionamentos de Kent, sobre a figura do justiceiro da Gotham City. A questão posta é justamente em que tempo e lugar não apenas o Superman, mas também o Batman, conseguirão se adaptar aos novos tempos, os conflitos desse movimento se tornam tanto inevitáveis quanto maiores, a medida que o caminho dos dois personagens começam a se cruzar no filme de 2016 e em quaisquer obras que venham a trabalhar com esta temática do embate de ideias e posturas que fundam seus pensamentos e ações.

A imagem ultrarrealista de Alex Ross parece colocar o próprio personagem no dilema de sua criação e falta de ajuste temporal ao nosso mundo contemporâneo. É difícil trazer um personagem criado a quase um século para nosso tempos sem que o mesmo não pareça anacrônico ou deslocado da realidade. Outros exemplos deste cenário são vistos em outros ícones do início da cruzada super-heróica como Zorro, Conan, Tarzan, Fantasma, Spirit, e John Carter, todos com sofríveis adaptações cinematográficas.

No caso do Superman o que surpreende é o completo subaproveitamento do personagem, mesmo como aporte crítico de traços sociais em que vivemos. Há poucas, mas ótimas incursões de arcos em que o personagem se sai bem, ironicamente quando seus poderes ficam em segundo plano, dando lugar aos seus dramas existências, psicológicos e questionamentos de seu lugar em nosso mundo, ou não.

A fala do homem de aço no clássico Reino do Amanhã aparece, ao mesmo tempo, como um apelo e pedido ao povo de toda a Terra, pois já que não o deixaram descansar em paz após sua morte – artifício utilizado para salvar o próprio mercado de histórias em quadrinhos, diga-se de passagem – que ao menos reconheçam sua relevância numa possível união de contrários entre o que se quer como herói e o personagem tem a oferecer àqueles que o criaram:

Quero esquecer os erros do passado. Quero que pensemos no amanhã… juntos. Os problemas ainda existem. Nós não vamos resolvê-los pra vocês… vamos resolvê-los com vocês. Não governando acima da humanidade… mas vivendo entre ela. Não iremos mais impor nosso poder… vamos conquistar sua confiança usando a sabedoria que um homem nos deixou. Eu lhe pedi que escolhesse entre os humanos e os super-humanos, mas ele sabia que essa era uma divisão falsa, e fez a única escolha que realmente importa, a vida. Para que o seu mundo e o nosso pudessem ser um só novamente. (WAID; ROSS, 2010, p. 59).

E, com essa fala do próprio personagem, reside o ponto de maior debate, e críticas, a este filme de Zack Snyder – mesmo com a coragem narrativa, política e estética apresentada – já que, novamente, o ciclo do Superman não é fechado, algo semelhante ao ocorrido em seu filme de origem de 2013, do mesmo diretor e, ao que tudo indica, dificilmente será finalizado adequadamente neste universo cinematográfico vigente, já que uma continuação de Man of Steel não parece estar no horizonte próximo de prioridades dos estúdios Warner Bros.

O peso da primogenia e alcance do ícone criado por Siegel e Shuster é a sua maior riqueza e fardo, afinal de contas caso assim não fosse o mesmo não teria resistido por tanto tempo no pico do panteão super-heróico. Esta ressalva sobre a importância deste signo inegável da cultura pop é importante por sua marca na jornada do herói, mesmo quando não aceita, e não uma subversão de sua existência numa jornada do vilão, caminho trilhado até pelo universo cinematográfico da DC comics.

O ídolo crepuscular

Figura: cenas de Batman v Superman: Dawn of Justice

Há quase 80 anos um mito moderno foi criado, uma síntese simbólica, social e ideológica de uma era que hoje se mostra tão distante quanto apartada demais de nosso mundo contemporâneo. Não chegamos, ainda, aos cenários pós-apocalípticos entoados por livros e filmes das últimas décadas, mas é evidente que um portento moral e cívico, fundamentos basais da criação do Superman, estremeceriam ou simplesmente ruiriam diante de nossos extremos céticos, alienistas ou niilistas.

Estamos em um cenário muito mais complexo e cheio de camadas interpretativas e representativas do que foi visualizado por Wertham em seu A sedução dos inocentes de 1954, não sendo mais possível utilizarmos visões unilaterais ou social e culturalmente apartadas a respeito da nona arte e seus derivados, como é o caso dos filmes inspirados nestas obras.

Quando Diego Penha elucida sua rica visão do ciclo sisífico inerente às adaptações de Kal-El podemos compreender o seu debate proposto, temos referências a mitos greco-ocidentais como Prometeu, Atlas e Hérculos, traduzidos nos feitos fantásticos do homem de aço. O peso carregado pelo personagem ficou maior à medida que suas cores escureciam, seus incessantes reboots ocorriam ou sua atemporalidade incomodava àqueles cuja a invenção de um nêmesis qualquer (como ocorrido em 1993) resolvesse a incompreensão de sua existência em nossa era apenas torturando-o e matando-o.

Infelizmente, esta última alternativa foi utilizada em Batman v Superman: Dawn of Justice de diferentes maneiras. Mesmo que haja o conflito, incompreensão ou não-aceitação da existência de um alienígena superpoderoso entre nós, é preciso que sejam respeitadas suas características canônicas, neste caso, o otimismo, esperança e brilho inerentes a concepção do ícone que se tornou o alter ego de Clark Kent. No fundo temos um, juntando as duas peças fílmicas de 2013 e 2016, o ciclo que não se fecha, prometendo um ápice dramático jamais alcançado, em uma escalada cada vez maior de espessura entre os protagonistas envolvidos, alcance da narrativa e peso dos símbolos que carrega nos heróis que entremeiam seu desenvolvimento.

No entanto, como dito na abertura desta conclusão, mesmo não intencionalmente, o Superman se tornou uma síntese de nossa era, e assim o será até que, o modo de produção estabelecido se mantenha como tal, que seus contrapontos super-heroicos persistam ou simplesmente corajosas e inesperadas estórias a seu respeito continuem sendo contadas, apesar de tudo, tais como Superman Grandes Astros, Identidade Secreta, ou o mais recente e elogiado Alienígena Americano. A força de um mito persiste mesmo quando a razão de sua existência resida, ainda, na negação de sua concepção ou encaixe nos parâmetros espaço-temporal que o circundam, assim continuará sendo com a história de Kal-El\Superman.

Referências

BATMAN V SUPERMAN: DAWN OF JUSTICE. (Ultimate Edtion) Zack Snyder (Direção), David Goyer, Chris Terrio (Roteiro) Warner Bros. 181 min. 2016.

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COMPARATO, Doc. Da Criação ao Roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. Trad. Celia Berretini. São Paulo: Perspectiva, 1990.

JURGENS, Dan. A Morte do Superman. (Edição Definitiva). São Paulo: Panini, 2016.

KOTHE, Flávio. O Herói. São Paulo: Ática, 1985.

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MORCELLI, Felipe. De Odisseu a Batman. In: <http://www.terrazero.com.br/2013/06/de-odisseu-ate-batman/>Acesso: 28\05\2017.

PENHA, Diego. O Frustrante Superman Crítica In: < https://pipocaenanquim.com.br/cinema/ofrustrantesupermancritica/> Acesso: 20.06.2016.

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RAMA, Maria Angela Gomez. A representação do espaço nas histórias em quadrinhos do gênero super-herois: a metrópole        nas aventuras de Batman. Dissertação de Mestrado em Geografia Humana. São Paulo: USP, 2006.

REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua potencialidade teológica. Tese de Doutorado em Teologia. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2012.

REYNOLDS, Richard. Superheroes: a modern mythology. University Press of Mississippi, 1992.

SILVA, Guilherme Mariano Martins da. A descentralização do conceito de superherói paladino e a crise de identidade pós-moderna. Dissertação de Mestrado em Letras pelo UNESP campus de São José do Rio Preto. São José do Rio Preto: IBILCE, 2010.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. Ana Maria Machado. – 2.ed. -Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006

WAID, Mark; ROSS, Alex. O Reino do Amanhã. São Paulo: Panini, 2010.

[1] Nesta obra uma das preocupações do autor era a da incitação das histórias em quadrinhos à subversão dos jovens à ordem e costumes. A relação entre Batman e Robin, por exemplo, é atacada como sugestão à orientação homosexual.

[2] Há, com grande esforço e alguns deslizes, essa discussão no âmbito do filme, focando na figura do Superman, já que por um detalhe do arbítrio ao qual Clark Lente está sujeito, o mesmo ser visto em seus trajes super-heroicos como um enviado dos céus ou nêmesis da humanidade.

FICHA TÉCNICA

BATMAN V SUPERMAN: A ORIGEM DA JUSTIÇA

Diretor: Zack Snyder 
Elenco: Henry Cavill, Amy Adams, Ben Affleck, Diane Lane, Jesse Eisenberg, Jeremy Irons, Holly Hunter, Laurence Fishburne
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 12