TRE, 09:30h AM, dia 10.
Estou entediada de você. Foi o que ela me disse. Eu não podia pensar em outra coisa naquela sala, acordando assuntos trabalhísticos com a cara de quem estava entendendo tudo. Jo tinha me deixado, pela primeira vez, num dissabor inesperado.
Alguma esquina com a Carlos Drumond, 08:15h AM, dia 01.
Penso nisso todo dia, é inevitável. Entrei, por livre e espontânea vontade numa barafunda e não entendo por que tenho permitido que as coisas contrárias aos meus conceitos e raízes tenham um espaço tão grande na minha vida, na minha mente. É difícil de dizer, mas não sei porque estou com ele. Alguém tão sujo e tão distante de mim. Distante da minha realidade, me provocando questionamentos, me causando dor e às vezes, muito casualmente, um pouco de alegria. Eu me perguntara isso diariamente e ainda assim, nada.
Apartamento Nº 24, 3º piso, dia 11.
Depois de tudo aquilo que aconteceu, eu imaginei que a última imagem que teria de mim seria de alguém que entediasse você. Não tem fundamento.
Barzinho na quinta avenida, dia 12.
Observei o teu olhar, disperso, fora de mim. Ao mesmo tempo, eu desejava estar naqueles braços e me envolver por aquele olhar. Cobicei. Deixei um espaço entre nós dois, o espaço pelo qual você deveria preencher, mas não preenche. Então eu corri, fui buscar um lugar onde tivesse colo.
…
Eu estava hipnoticamente olhando pra TV, pensando em nada, danificando meus olhos com a claridade das imagens que projetavam na parede sombras que dançavam ao meu redor. Algo ao fundo fazia um tinir, baixo, fino e estridente que gradualmente me trazia pra realidade. Era a campainha que, pelo o que eu contara, já tocava pela quarta vez. Era Jo, a suposta mulher da minha vida.
— Oi, precisamos conversar.
— É, eu acho que sim. Entra – Entrou e sentou no sofá com aquela postura de quem vai te contar que sua mãe morreu.
— E aí, tudo bem?- E na mesma hora foi se retratando, olhando de um jeito contrariado pro chão pra pergunta idiota que tinha feito – Ok… Acho que não muito bem, nem eu.
— Me conta o que tá acontecendo, vai – Jo fez que negativo, tentando olhar nos meus olhos e com um semblante resignado. Se recostou no sofá com um suspiro.
— Olha… Sei que a gente já passou por muita coisa junto e que durante esse tempo todo nunca pensei que uma coisa dessa pudesse acontecer logo comigo -“Logo comigo”? A gente nunca sabe o que se espera de alguém tão instável – Eu já me sentia muito cansada pelas coisas que vinham acontecendo, por você se mostrar sempre tão desinteressado nos meus questionamentos sobre o nosso futuro e sobre meu próprio futuro. Enfim – suspirou pesadamente – eu me sentia muito só.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que eu não consigo mais. Não consigo te olhar e enxergar o que eu enxergava antes, não consigo te ver como o homem da minha vida, não consigo imaginar o meu futuro com você. Eu… estou apaixonada por outra pessoa.
Eu sabia por quem era, não precisava perguntar.
Houve uma vez durante o sexo que Jo olhou pro teto e pareceu vagar, me senti desconfortável pra caralho, mas continuei. Gozei, deitei do lado dela e perguntei se estava tudo bem, se estava com dor ou algo do tipo e ela disse que não era nada, só teve um dia cheio. Então a gente foi dormir e não me lembro de ter sentido um abraço tão frio quanto o que ela me deu. Isso só podia significar que os mundos estavam se distanciando e uma angústia me tomou por estar vendo a pessoa que eu amava fugir das minhas mãos, assim como foge a água quando se tenta junta-la em concha nas palmas.
— Você não vai falar nada? – Não podia imaginar algo que poderia ser dito, se alguma coisa que dissesse pudesse apagar aquilo tudo, a imagem que já se instalara na minha mente. Era inútil. Percebi que toda a raiva e incompreensão com que eu tinha recebido Jo agora se transformara em um limbo na minha mente, eu não podia sequer organizar os pensamentos com ela ali na minha frente, sentindo seu cheiro doce próximo de mim. Olhei pro seu rosto de desalento e…
— Eu preciso ficar sozinho, Jo. Eu te ligo. Não consigo falar contigo agora.
— Tá bom – Se levantou, pegou sua bolsa de couro preto e hesitou ao fechar a porta. Imaginei que estivesse olhando pra mim com pena, como se visse um animal ferido e não pudesse ajudar.
Me lembrei de uma ocasião na minha infância em que estava no parque, com toda a minha dificuldade em fazer amizades e me aproximei de uns guris para alguma brincadeira. Acontece que a brincadeira funcionava de um jeito que tinha que ser em pares e eu era o quinto elemento. Eu não podia entrar, eles disseram, estragaria o jogo, não teria graça. Me ocorreu naquela sala, com o barulho de fundo do contar das horas do relógio, que talvez eu fosse o elemento ímpar na vida de Jo, aquilo que não casa, não junta, não soma. Mas pensei, que se foda, o errado não sou eu.
…
Não consegui dormir ontem à noite. Estava entre o alívio de saber que havia sido clara todo o tempo e entre o sentimento de sufoco. Chorei sozinha pra não ter que fazer isso na sua frente e mostrar fraqueza, fragilidade. Dependência. Estou no meio da pior das situações, nem lá nem cá. Afinal, não sabia como resolveria isso, se você pensaria sobre a grande mentira que foi esse tempo todo e como eu não precisava daquilo. Estar num relacionamento abusivo, não ter apoio, ficar com dúvida sobre o que realmente se quer, ser a objetificação do seu prazer. Alguém pra você foder. Entre a cruz e a espada. Ou eu ou você. A felicidade de quem realmente importava?
O celular vibra, aperto os olhos e tomo fôlego. “Estive lendo um texto que falava sobre o quanto a gente com o passar do tempo fica nulo num relacionamento e se isola nas próprias questões. Vem pra cá, não precisa dizer nada. Não precisa se isolar mais.” Podia sentir uma espécie de paz velada sobre a minha cabeça ao terminar de ler a mensagem, não saberia explicar.
Nem lá nem cá.
…
Toca Radiohead. O som reverberado penetra cada parte do meu corpo, me sobe um arrepio pelas pernas. Certa noite, Jo me disse que meu amor por ela era o perfeito a ser alcançado, o ideal. Estava estudando muito filosofia e vinha trazendo isso pro nosso relacionamento, o que pra mim era puro enchimento de linguiça, apesar de não dizer. A mulher da minha vida. Desconcertada pelo pensamento do mundo.
Do segundo andar sentia a umidade do ar entrando pela janela, tocando no meu rosto, no limiar absoluto do que se sente. A faixa muda e vagarosamente sinto o ardor na bochecha, descendo.
She looks like the real thing
She tastes like the real thing
My fake plastic love*
Eu nunca fiz aquela ligação.
…
— Não entendo o que as mulheres veem em outras mulheres — eu disse à dra. Nolan na consulta daquela tarde.
— O que uma mulher vê em outra que ela não vê num homem? A dra. Nolan ficou em silêncio, então disse: — Ternura.
Aquilo calou a minha boca.¹
…
*Ela parece ser real
Ela tem sabor do que é real
Meu amor artificial de plástico
Fake Plastic Trees, Radiohead.
¹ A redoma de vidro de Sylvia Plath.
Publicado originalmente em: https://medium.com/@gilstefany/ela-tem-sabor-do-que-%C3%A9-real-3ac321474433#.madjmiy0j