Entrevista com o Tenente-coronel José Edir sobre o atendimento e cuidado em casos de desastres naturais

José Edir Paixão de Sousa é Tenente Coronel (TC) do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE), Mestre em Saúde Pública, Especialista em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Concluiu os cursos de comando e controle de crises e sistema de comando de incidentes (SCI) pela Guarda Costeira Americana na Virginia – EUA, Treinamento em Autopsia Psicológica, Curso de Primeiros Socorros Psicológicos pela Humanitas e pelo Coursera Internacional, Curso de Psicologia das Emergências (Senasp), Treinamento em Desenvolvimento Sustentável, Urbanismo e Sociologia (Programa Top China 2011) pela Universidade Imperial de Pequim. Docente nos Institutos Alipsme da Bolívia. Docente nos diplomados de Psicologia das Emergências da Universidade de Cuyo, da Associação Argentina de Saúde Mental AASM e de resolução de conflitos, mediação e negociação. Membro da Federação Internacional de Psicologia das Emergências e membro da IASP (International Association for Suicide Prevention)

En(Cena): Com sua vasta experiência e formação em saúde pública e psicologia das emergências, quais são os maiores desafios que o senhor encontrou ao lidar com desastres naturais?

Tenente-coronel José Edir: O maior desafio ao lidar com esse tipo de fenômeno, de acordo com nossas pesquisas, é a necessidade de sensibilização acerca da participação humana diante dos desastres. Em sua concepção atual, o desastre é um evento infeliz, uma desgraça, uma ocorrência que afeta a vidas das pessoas, o meio ambiente ou os dois ao mesmo tempo. A expressão desastre natural passa uma ideia de que houve um fenômeno natural que afetou uma região da terra, do mar ou do ar, ou as 03 regiões juntas e que geralmente causa dano, independente da vontade e ações humanas. A origem da palavra, entretanto, remonta à época greco-romana e tem a ver com a influência que a humanidade acreditava existir entre os astros (estrelas e outros corpos celestes) e os acontecimentos cotidianos. Um desastre, portanto, antigamente, seria um desalinhamento dos astros, um (des) favorecimento vindo de forças superiores que fugiam à nossa vontade ou a superavam. Aí é que está o cerne da questão, de acordo com os pesquisadores Zanella e Monteiro (2019), por exemplo, um termo mais apropriado seja “desastre socionatural” em vez de simplesmente natural, uma vez que a ação humana leva a reações da natureza que podem ser danosas, destrutivas à sociedade e ao mundo em que vivemos. Portanto, a meu ver, o termo desastre socionatural pode trazer mais consciência e sensibilidade de que somos nós, seres humanos, corresponsáveis sobre o que nos acontece no mundo em que vivemos. Nesse sentido, chuvas, inundações e até terremotos e tsunamis são considerados desastres naturais, mas é sabido que as influências das ações do homem na natureza produzem resultados, muitas vezes, maléficos e negativos. Diante disso, precisamos repensar nossa responsabilidade diante dos desastres e isso só poderá ser feito através de educação e da sensibilização para nossa responsabilidade de cuidar do planeta, das cidades, das pessoas, em todas as camadas possíveis de atuação, a fim de reduzir ao máximo possível os desastres que nos afetam.

 

En(Cena): Quais são os sinais mais comuns de estresse pós-traumático que os psicólogos devem observar nos sobreviventes de desastres naturais como inundações?

Tenente-coronel José Edir: Essa pergunta merece cuidado e atenção especial em relação à forma como lidamos com o pós desastre.  Existe a fase de intervenção em desastres durante o acontecimento, chuvas e inundações, por exemplo, que, como no Rio Grande do Sul, duram mais de um mês. Muitos psicólogos estão trabalhando durante todos esses dias atendendo as vítimas. Existe o pós desastre quando o desastre já se encerrou e isso veremos, nesse caso citado, depois que as chuvas pararem e os níveis de água baixarem aos números normais anteriores. Haverá uma fase de reconstrução e reestruturação dos ambientes afetados e as pessoas sobrevivente estarão enlutadas pelas perdas de vítimas e também por outros tipos de perdas e sofrimentos que ocorreram advindas do desastre. Vale ressaltar que o luto ocorre não somente pela morte de um ente querido, mas também pela morte de um animal de estimação amado, pela mudança drástica de ambiente, pela perda de sua residências e pertences, entre outros eventos adversos. Nesse sentido, precisamos diferenciar comportamentos normais diante do sofrimento e comportamentos que se perpetuam no tempo caracterizando um adoecimento mental e, entre esses, o transtorno do estresse pós-traumático que necessita de tempo e acompanhamento de profissional de saúde mental para seu diagnóstico. Assim, perder uma residência destruída pelas chuvas pode causar desejo de se evitar visitar o local da casa destruída, mas esse desejo durante ou imediatamente após o desastre é algo normal do comportamento humano e não uma patologia. Assim, é necessário “despatologizar” muitos tipos de comportamentos que são reações naturais, normais e esperadas (porém desconhecidas) da maioria das pessoas e até de profissionais que não tem experiência com situações de desastres. Assim, para o diagnóstico é necessário analisar as reações da pessoa por um mês ou mais. Alguns desses sinais são  sentimentos de esquiva, evitar o que se relacione com o evento traumático, perturbações do sono e de alimentação para mais ou para menos, pesadelos, relembrar fatos do evento traumático sem estímulos, esses pensamentos traumáticos vem de forma intrusiva e inesperada.   Irritabilidade, comportamento disfuncional entre outros.  

En(Cena): Existem recursos ou treinamentos específicos que o senhor recomendaria para esses profissionais?

Tenente-coronel José Edir: Nesse cenário de desastres, recomendo curso de psicologia das emergências e dos desastres, curso de primeiros socorros psicológicos e cursos para identificação e manejo do comportamento suicida, como o curso guardiões da vida, uma vez que existem vários ramos da psicológica e, no caso dos desastres, o número de vítimas é gigantesco, tornando inviável a quantidade de profissionais especialistas em saúde mental de carreira, fazendo com que haja necessidade de capacitação específica nessas áreas usando métodos que não são privativos de psicólogos e psiquiatras, por exemplo, como os supracitados, mas que tem alto poder de mitigar dor, sofrimento psíquico agudo, estresse agudo e até de evitar adoecimento mental caso nada tivesse sido feito no acolhimento dessas vítimas. Vale lembrar que o treinamento Guardiões da Vida, por exemplo, prevê o suporte entre pares, pois os socorristas e pessoal de intervenção e resposta em desastres sofrem muito e podem também ficar doentes pelo exercício dessa atividade de resgate e resposta.   

En(Cena): Existe alguma técnica específica que o senhor tem visto ser particularmente eficaz em ajudar as pessoas a lidarem com o estresse e a ansiedade após uma inundação?

Tenente-coronel José Edir: Como citado anteriormente, existem métodos específicos que usam uma ou mais técnicas de ajuda a pessoas a lidarem com estresse e ansiedade. Em todas elas, aprendemos forma e estratégias de atuação, mas posso citar algumas especificamente aqui. Nos PSP (primeiros socorros psicológicos) aprendemos que nem todo mundo precisa de cuidado extra após desastre, são pessoas que têm formas de lidar (também chamado de coping) naturais inatas ou que foram desenvolvidas de forma individual ao longo da vida da pessoa, portanto, realizar triagem de quem precisa ou não de cuidado extra é muito necessário para evitar infantilizar pessoas, desrespeitá-las e perder tempo em vez de focalizar esforços para ajudar quem precisa. Diante disso, vamos citar alguns exemplos, escuta em geral, escuta reflexiva e escuta ativa, são 03 tipos de técnicas que ajudam as pessoas a lidar com o estresse e a ansiedade. A reconexão da vítima com parentes e amigos aumenta a sua rede de apoio e normalmente alivia estresse e ansiedade. Orientação explanatória capacita a vítima com conhecimento sobre o que está acontecendo e muitas delas conseguem aliviar seu estresse e sua ansiedade depois de racionalizar o que está ocorrendo. Orientação antecipatória principalmente alivia ansiedade ao capacitar uma vítima sobre o que poderá ocorrer de adverso e que isso não significa que ela estará ficando doente, mas que é reação normal depois do desastre. Respiração diafragmática, respiração em caixa, respiração quatro, por quatro e por quatro (4x4x4) são exemplos de técnicas de respiração que aliviam estresse e ansiedade. Atividades de terapia ocupacional como desenhos para crianças também tem esse poder. Existem, portanto, inúmeras formas de ajuda, mas “qualquer ajuda não ajuda” é preciso se capacitar primeiro para depois querer e poder ajudar de forma correta.  

En(Cena): Muitos psicólogos do Tocantins têm atendido voluntariamente pessoas afetadas pelas inundações de forma online. Quais são as principais recomendações para oferecer um suporte efetivo nessas circunstâncias?

Tenente-coronel José Edir: Primeiro, como falado anteriormente, é a capacitação para lidar com situações dessa natureza, contudo, pelo fato de serem psicólogos de formação, todo o voluntário já tem formação e competência básica para lidar com o sofrimento psíquico, contudo, a especialização nesses casos é sempre muito bem-vinda, mas o tempo é escasso e diante da impossibilidade de capacitação a leitura de guias e manuais para atendimento desse tipo de vítima irá ajudar bastante aos já formados psicólogos. Vale também dizer o que pode ser óbvio para esses profissionais, mas que pode ser negligenciado, eles precisam de válvula de escape, precisam também, por sua vez, fazer psicoterapia e atividades de autocuidado para estarem bem para atuar. Fadiga por compaixão, contratransferência e trauma vicário são nomes de fenômenos adversos que podem ocorrer com profissionais que lidam com a dor humana em alta escala. Por fim, peço que atentem para a quantidade de tempo e o número de pessoas que vão atender, pois além da complexidade de cada vítima a quantidade de pessoas, horas trabalhadas e outras características especificas desse cenário de atuação podem afetar negativamente nossos profissionais. 

En(Cena): Como a comunidade pode ser mais bem preparada, do ponto de vista psicológico, para enfrentar desastres naturais?

Tenente-coronel José Edir: A comunidade deve procurar participar de ações sociais que visem a orientação para essas circunstâncias e, se puderem, devem se capacitar também, participar de simulados, pedir que as escolas, hospitais, órgãos de segurança possam realizar simulados operacionais, como vemos no Japão, por exemplo. Um simples exercício de evacuação tem um poder incrível de salvar vidas. A desterritorialização traz imensas dores a muitas dessas vítimas, mas o treinamento poderá certamente ajudar para que no dia em que formos vítimas possamos agir da melhor forma a evitar a morte ou danos mais graves para nós, para nossa família e para nossa comunidade.  

Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATIONAno de publicação: 2013Título: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5th Edition.

MONTEIRO, J. B.; ZANELLA, M. E. DESNATURALIZANDO O DESASTRE: AS DIFERENTES CONCEPÇÕES TEÓRICAS QUE ENVOLVEM O CONCEITO DE DESASTRE NATURAL. Revista da Casa da Geografia de Sobral (RCGS)[S. l.], v. 21, n. 1, p. 40–54, 2019. DOI: 10.35701/rcgs.v21n1.437. Disponível em: //rcgs.uvanet.br/index.php/RCGS/article/view/437. Acesso em: 26 maio. 2024.

EVERLY Jr. George S.; LATING, Jeffrey M. The Johns Hopkins Guide to Psychological First Aid. Baltimore, Maryland, Johns Hopkins University Press, 2017. 

NUÑEZ, Diego Oscar. Primeros Auxílios Psicológicos y Emocionales. Material de uso para bomberos ante situaciones de: emergencias, crisis, pánico y catástrofes. Licenciado Diego Oscar Nuñez.  Buenos Aires, 2005. 

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS), War Trauma Foundation e Visão Global internacional (2015). Primeiros Cuidados Psicológicos: guia para trabalhadores de campo. OMS: Genebra.

SOUSA, José Edir Paixão de, PAIXAO, Evna América de Aquino Leitão. Saúde e Trabalho na Segurança Pública: reflexões cientificas e experiências práticas. Fortaleza, Inesp, 2022.