O poço, aspecto profundo e sombrio, simboliza todo esse caminho do Processo de Individuação, caminho este que é percorrido até o final da vida.
O longa espanhol, O Poço, que estreou na Netflix no dia 30 de março deste ano, ocorre em um futuro distópico. Este lugar representa uma prisão vertical na qual, mantém duas pessoas por andar, onde a cada mês as pessoas são trocadas de nível. A comida é distribuída em uma plataforma que vem de cima para baixo, sendo que ela só passa uma vez em cada andar. Assim, quem está acima come melhor, enquanto quem está embaixo fica com menos comida até chegar o ponto em que não sobra nada para os andares inferiores.
Alerta de spoiler!!!
O personagem principal, Goreng, escolhe por iniciativa própria ficar enclausurado no Poço por 6 meses, na garantia de obter um certificado ao final. Sua chegada foi com algumas surpresas e ao tentar estabelecer alguma relação com os demais, acaba percebendo regras individualistas que colocam as pessoas umas contra as outras. Este acordo “invisível’’ acaba despertando nos prisioneiros um lado mais primitivo. Este lado, podemos relacionar com o conceito de “sombra’’ no qual Franz (2002), uma teórica analítica, explica que é o arquétipo que representa situações e comportamentos que são reprimidos, ou seja, as questões inconscientes. Esse arquétipo entra em ação no filme, mostrando toda sua carga egoísta, individualista e a capacidade de matar dos personagens para garantir a sobrevivência.
É possível notar essas características quando as pessoas dos andares superiores comem de forma extravagante, além do necessário, às vezes até propositalmente para que os prisioneiros dos andares inferiores ficassem sem comida. Por exemplo, há diversas cenas onde, antes da plataforma descer ao próximo andar, Trimagasi cospe na comida depois que termina sua refeição e joga uma garrafa de vinho na mesa, simbolizando um ato de superioridade. Esse comportamento pode ser analisado pela tensão de ora ser privilegiado em um andar onde a comida ainda chega e ora ter que lutar pela mesma; é visível que há representações de papéis – de quem é superior e quem é inferior – que dependem do nível do poço em que o personagem se encontra.
No primeiro mês de convivência, Goreng tentou modificar os pensamentos tanto do seu colega quanto das pessoas nos andares superiores e inferiores mas não obteve sucesso algum. No início do segundo mês, os andares foram trocados e ele acorda amarrado e amordaçado na cama por Trimagasi, seu companheiro de andar que quase o come vivo. O choque desse momento o faz agir conforme tudo o que ele estava tentando negar. Freud (1969) fala sobre o comportamento das massas, onde a identidade do sujeito é diluída e ele se identifica com os seus participantes. Sendo assim, Goreng percebeu que naquele ambiente o que ajudava a sobreviver era a violência, egoísmo e individualismo.
Trimagasi acaba sendo morto e é substituído por Imoguiri, uma mulher que havia trabalhado na administração do poço durante muito tempo. Ela relatou que o poço era chamado de Centro Vertical de Autogestão pelo pessoal da administração. Acreditava também no que a administração dizia e até comenta sobre a possibilidade de mudança a partir da solidariedade espontânea, mas acaba se frustrando após descobrir que a administração mentiu sobre os andares. Essa chefia se preocupava apenas com a qualidade da comida, ignorando assim se a quantidade seria suficiente para todos os andares.
Nesse sentido, podemos comparar a gestão de recursos no nosso país, onde as camadas superiores acabam com uma parte maior. E a administração tanto do poço quanto a da nossa realidade, mantém essa aparência de que está prestando um serviço de qualidade, porém insuficiente para todos e privilegiando um determinado grupo. O que pode ser uma tentativa de “tapar o sol com a peneira”, culpando outros por um erro cometido, algo parecido com o que Freud (2014) define como negação, onde o sujeito não aceita entrar em contato com algum conteúdo, negando sua existência. Assim, a questão das aparências, como na parte em que um cozinheiro é mandado embora por ter deixado um fio de cabelo na comida, entra como uma afirmação de que estão desempenhando seu papel corretamente.
Em outro momento no filme vemos Goreng e Baharat (seu novo colega que substitui Imoguiri), embarcarem na missão de tentar racionar a comida para que ela chegue em andares mais inferiores. Baharat é como o último impulso que dá forças para que o nosso protagonista retome o que havia tentado no início do filme. E a medida que eles desciam o poço, encarando as duplas dos andares, podemos fazer um paralelo a nossa sociedade, onde todos sofrem de alguma forma, pois mesmo estando em um nível alto, logo ele acaba em outro no qual não sabe se irá sobreviver. Além isso, muitos não fazem esforço para mudar sua forma de ver a situação e outros seguem ignorando tudo como se nada estivesse acontecendo. Canetti (1995) aborda essa questão da massa afirmando que o sujeito em meio a multidão se sente mais poderoso dando vazão para atitudes paranoides e destrutivas, num processo que pode levar a uma indiferenciação egóicas, naquilo que Jung chama de participação mística.
Outro aspecto curioso é o direito que cada personagem tem de levar um objeto consigo para o poço. Estes objetos podem simbolizar características da personalidade de cada personagem. No decorrer do filme vemos objetos como: facas, espadas, corda, prancha de surf, piscina inflável, cachorro. Mas em contrapartida, o protagonista do filme, Goreng, levou o livro Dom Quixote, no qual no início do filme disse que não conseguia parar de ler. Essa escolha pode ser analisada, primeiro, pelo fato dele não saber o que realmente o esperava e que se talvez soubesse não teria escolhido este objeto, sua escolha, portanto, chegou a ser motivo de ironia por seu “parceiro’’ de cela, Trimagasi, e motivo de crítica mas também curiosidade da personagem Imoguiri.
Então, à medida em que a plataforma descia, ficava claro que a comida mesmo racionada, não chegaria a níveis tão profundos. Quando não existiam pessoas vivas no andar, ela continuava para o seguinte, até que parou no andar onde encontraram uma menina, a filha da Miharu, que era uma lenda no poço. A criança em filmes representa a esperança, a pureza, “o futuro da nação”, e ao final ele entende que a menina é a mensagem que ele quer passar para os outros que estão ali dentro.
O filme parece apenas uma simples ficção, mas é possível compararmos com a realidade, principalmente com o momento em que estamos vivendo, onde as pessoas estão se preocupando só com o dia de hoje, sem pensar no amanhã ou sem pensar no próximo. Consumindo mais do que precisam, sendo que somos vulneráveis de forma igual, um dia podemos estar por cima e em outro por baixo.
Uma visão Junguiana
Em uma leitura mais profunda, podemos colocar que Goreng está em um Processo de Individuação. A escolha do livro, por exemplo, traz uma relação simbólica muito interessante ao percurso do filme pois, Dom Quixote é um personagem que segundo Byrington (2003) representa o ideal de esperança, fé e o Processo de Individuação. Tal Processo corresponde ao que Jung (1991) denominou como o desenvolvimento da singularidade de cada ser, o que diferencia o indivíduo do coletivo. Assim, as pessoas que cruzam seu caminho podem representar personas, pois mesmo após a morte de Trimagasi ele continua o vendo.
Então analisando cada personagem que tem um contato mais próximo com o personagem principal, podemos colocar Trimagasi como a representação da sombra de Goreng e que no final, quando inicia o processo de individuação onde ocorre essa integração do lado sombrio como parte fundamental do processo de síntese. A personagem Miharu se encaixa no papel de anima que segundo Franz (2019) tem o papel de sintonizar a mente masculina com o inconsciente, abrindo caminho para um conhecimento interior mais profundo. Essa relação entre os dois se mostra em como ela o guia de forma indireta para que seu caminho se cruze com o da criança, que é supostamente filha dela.
O encontro de Baharat e Goreng, é a representação do desejo de ascender, sair do poço. Baharat leva consigo uma corda, o que explicita essa vontade e o momento que os dois se encontram é oportuno para alcançar tal objetivo. A este evento podemos relacionar com um movimento de sincronicidade que Stein (2000) explica como ocorridos aparentemente aleatórios, mas que, apresentam uma ordem significativa para que situações/desejos sejam realizados.
Sendo assim, o poço, aspecto profundo e sombrio, simboliza todo esse caminho do Processo de Individuação, caminho este que é percorrido até o final da vida. A descida à ele seria o mergulho nas questões mais profundas, ou seja, inconscientes da psique e a ascensão da criança, como um símbolo de pureza e integração do self, representa a elevação desses conteúdos ao consciente.
Ficha técnica
Título: El hoyo
Ano: 2019
Diretor: Galder Gaztelu-Urrutia
Roteiro: Aranzazu Calleja
País de origem: Espanha
Gênero: Ficção, Ficção científica
Elenco: Ivan Massagué (Goreng), Zorion Eguileor (Trimagasi), Alexandra Masangkay (Miharu), Antonia San Juan (Imoguiri), Emilio Buale (Baharat)
Referências
BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. O Enigma de D. Quixote e o Arquétipo da Esperança Um estudo da Psicologia Simbólica. Disponível em: http://www.carlosbyington.com.br/site/wp-content/themes/drcarlosbyington/PDF/pt/d_quixote_ilustrado.pdf. Acesso em: 24 mar. 2020.
CANETTI, E. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
FREUD, S. (1925). A negação. São Paulo: Cosac Naif, 2014.
JUNG, C. G. Tipos Psicológicos 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
STEIN, M. Jung o Mapa da Alma. São Paulo, Editora Cultrix, 2000.
VON FRANZ, M. L. O Processo de Individuação: Anima: o elemento femino. In: JUNG, Carl. O homem e seus símbolos. 3. ed. Rio de Janeiro: Harpen Collin, 2019.
VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.