Histórias Cruzadas: uma reflexão acerca das relações familiares

Histórias Cruzadas, originalmente “The Help”, estreou no ano de 2012 sob direção de Tate Taylor. O filme se passa na cidade de Jackson no estado norte-americano do Mississipi, por volta da década de 1960 e ilustra a realidade das empregadas domésticas negras que trabalhavam para famílias brancas, em meio ao cenário de intensa segregação racial e luta por direitos civis da época. As profundas raízes do preconceito oriundas do passado escravista no sul dos EUA (que afetam essa sociedade até os dias atuais) são retratadas na trama por meio das relações entre as empregadas domésticas e seus trabalhos para casas e famílias de mulheres da alta sociedade, permeadas por abusos e humilhações.

Skeeter (Emma Stone) é uma jovem que sonha em ser escritora. Recém formada, consegue um emprego em um jornal local escrevendo uma coluna sobre conselhos de limpeza. Mesmo tendo crescido em Jackson e pertencendo a alta sociedade, Skeeter difere das mulheres de sua idade, não demonstrando interesse em casar ou ter filhos e principalmente porque tem uma sensibilidade para com a realidade de segregação, desigualdade e preconceito à qual se encontra. Para escrever a coluna, Skeeter pede ajuda a Aibileen (Viola Davis), a empregada doméstica de sua amiga, que é uma das protagonistas do filme e enriquece a narrativa com seu ponto de vista.

Contudo, novamente em contato com a realidade de sua cidade, a jovem se sente incomodada com a realidade dessas mulheres, e decide tentar escrever sobre suas histórias, frente a uma realidade onde mulheres negras literalmente criam filhos que não são seus, limpam, passam e cozinham, por salários baixíssimos e tendo sua liberdade e honra desconsideradas. Essas mulheres nunca haviam sido respeitadas por pessoas brancas, muito menos ouvidas. Devido ao contato das empregadas domésticas com a criação das crianças nas famílias para as quais trabalham, um ponto muito importante nessa película são as relações familiares nessa sociedade. As mulheres negras, tratadas como objetos, trabalhavam na criação das crianças enquanto os pais se ocupavam em outras tarefas. Essa contradição aflige quem assiste ao filme, pois apesar do repúdio pelos funcionários, a conveniência em não se ocupar com as crianças fala mais alto, mesmo à custa do amor dos filhos.

Porém, Skeeter encontra dificuldades em seu novo projeto, uma vez que a realidade de opressão às pessoas negras se intensifica com a luta pelos Direitos Civis e a Liderança de Martin Luther King, que cresceram consideravelmente a partir do ano de 1957 (PURDY, 2011). Devido ao medo as mulheres se recusam a falar, e Skeeter se vê intimidada pela sua família e amigos. Segundo Sarti (2015), as experiências vividas e simbolizadas nas famílias têm como referência definições que são socialmente instituídas por diversos dispositivos disciplinares, e por isso são particularmente difíceis. A sociedade fortemente dividida entre pessoas brancas e negras, também engloba aspectos políticos, econômicos e culturais, tornando até o contato entre as personagens um motivo de estranheza.

Na esperança de mudança e justiça motivada pela sua fé, Aibileen decide contar suas histórias a Skeeter. Agigantada pela atuação de Viola Davis, Aibileen é uma das personagens mais complexas dessa trama. Em um estado depressivo após a morte de seu único filho, a personagem emociona em todas as cenas em que descreve o que viveu, além de demonstrar sua bondade com as crianças que criou. Para Sarti (2015), as mudanças familiares têm sentidos e incidências diferentes em cada família, devido ao acesso desigual a recursos na sociedade de classes. Aibileene possuía uma ligação afetiva com seu filho diferente do modelo familiar das pessoas para as quais trabalhava, por exemplo.

Segundo Sarti (2015), em famílias pobres, a noção de família se baseia em um eixo moral, que tem fronteiras traçadas segundo o princípio que lhe dá fundamento (obrigações), estruturando suas relações. Desse modo, na relação que Aibileene teve com seu filho, ela encontra a coragem para se tornar o tão esperado “escritor” da família. Após a prisão de uma empregada doméstica mãe de família, ocorre uma mobilização geral e Skeeter finalmente consegue todos os depoimentos para seu livro intitulado “The Help” (A Ajuda), que é publicado e causa revolta geral nas patroas da cidade. De acordo com Sarti (2015), os meios de comunicação constituem um veículo fundamental para a instituição dos discursos dos dispositivos disciplinares, que delimitam os modelos de como deve ser a família e sociedade. O livro se torna, portanto, a voz de suas escritoras contra a opressão social.

Devido à polarização racial, modelos éticos também eram difundidos entre as camadas sociais. O modelo familiar em que Skeeter foi criada, que no filme é representado por personagens como Hilly e Elizabeth, é baseado em estruturas sociais mais rígidas, que na idealização daquela comunidade, deveriam ser mantidas. Essa situação pode ser ilustrada no Conselho formado por mulheres da alta sociedade e também na pressão para que Skeeter encontre um marido.

O discurso social a seu respeito, como um espelho, reflete nas famílias, passando por uma tradução de acordo com as experiências vividas, onde esses discursos externos são internalizados (SARTI, 2015). A influência desses discursos sociais de origem familiar culminam no cruzamento de histórias, como o próprio nome do filme delata. Skeeter contraria e modifica a visão de sua família; Hilly não suporta ser exposta por quem considera inferior, manipulando suas amigas; e Aibileene e Minny encontram a força para lutar e ganhar voz para mudar suas realidades.

Dessa maneira, Histórias Cruzadas é um filme emocionante, que eleva os desejos de justiça e igualdade de quem assiste. Assim como em “12 Anos de Escravidão” (2014), “Django Livre” (2012), “Mississipi em Chamas” (1988) e recentemente “Estrelas Além do Tempo” (2017), a trama retrata as barbáries cometidas com base em discursos sobre a cor da pele de alguém. Por meio do filme pode-se perceber como os discursos sociais são construídos e concretizados pelas famílias em diferentes concepções e modelos, engrandecendo a visão sobre influências desse âmbito da vida social, através de um panorama histórico.

Com uma sensibilidade incomum, Histórias Cruzadas demonstra como atos de coragem podem mudar a realidade em que se vive por mais desesperançosa que seja. A trama honra a memória de tantas mulheres, negras e empregadas domésticas, que nunca puderam falar, e inspira os espectadores a lutar contra a desigualdade e o preconceito.

 REFERÊNCIAS:

PURDY, Sean. Direitos civis e contracultura nos EUA – Apresentação. ANPHLAC- Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas, São Paulo, 2011. Disponível em: <http://anphlac.fflch.usp.br/direitos-civis-eua-apresentacao>.  Acesso em: 05 de Mai. 2017.

SARTI, Cynthia A. Famílias enredadas. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, Maria A. F. (Org.). Família: Redes, Laços e Políticas Públicas. . 6. ed. São Paulo: PUC SP CEPEDE, Cortez Editora, 2015, p. 31-44

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Diretor: Tate Taylor
Elenco: Emma Stone, Jessica Chastain, Viola Davis, Bryce Dallas;
País: EUA, India e Emirados Árabes Unidos
Ano: 2011
Classificação: 12

Psicóloga egressa do CEULP/ULBRA, especialista em Saúde da Família e Comunidade pela FESP.