Identidade e ciborguização: para além do corpo biológico

A cultura é o que define a forma como age um determinado grupo de pessoas. Ao nascermos, temos nosso corpo biológico como mediador do contato com o que é externo e que, por sua vez, faz relação com o mundo privado. Os padrões a serem seguidos estão em constante mutação, mesmo aqueles ditos como normatizados e hegemônicos, devido ao intenso processo de evolução social em áreas como a política, economia, ciências humanas e o advento da tecnologia avançada. Desta forma, se faz presente um dinâmico processo de releitura das estruturas basilares nas quais se assenta o Modus Operandi de nós seres humanos que, outrora sólidas, passam por reajustes os quais alteram nossa percepção da realidade e nos conduz aos desafios do mundo contemporâneo.

Dentro desta proposta, Lima (2009) trás conceitos como os de hipertexto, adaptação tecnológica do corpo, cibernética, nanotecnologia, ciberespaço e o impacto direto dos dispositivos tecnológicos sobre nossa subjetividade e a ideia do que vem a ser inerente, exclusivamente, à condição humana. Na perda progressiva do concreto, oriunda do atual mundo cibercontextualizado, nós, enquanto indivíduos, inconscientemente, acabamos optando por um superinvestimento do único objeto que realmente temos de concreto: o corpo.

Sobre isto, Quevedo (2003) aponta que a mente dissociou-se do corpo que, a partir de então, passou a não ser mais regido pela vontade do próprio indivíduo, mas, sim, pela mídia, assentado na visão mercadológica por meio da qual os meios de comunicação e controle em massa se utilizam para passar suas mensagens, padrões inatingíveis os quais vem em forma de cápsulas, cremes, e toda uma extensa linha de produtos e aparatos que prometem um resultado que se adeque aos ideais de saúde e beleza regentes. O avanço tecnológico e sua contribuição para as ciências naturais, humanas e exatas configura um ápice do progresso intelectual da humanidade vigente que contribuiu para a transição da noção de sociedade de produção para a de consumo.

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Tais fatores remodelaram a forma como o homem da modernidade lida com sua autoimagem, saúde e bem estar. A organização mundial da saúde (OMS), ao expandir o conceito de saúde para além da ausência de doença, aponta para áreas do campo humano até então não muito exploradas. Com o surgimento da psicologia moderna, a ideia do ser biopsicossocial veio apontar para a saúde como fruto de um tríplice aspecto do social, biológico e psicológico. Tais fatores, somados aos imperativos da modernidade líquida [1], conceito trazido por Bauman (2003), colocam o corpo como protagonista do espetáculo moderno. Um roteiro no qual nossa máquina biológica é a nossa principal fonte de prazer e frustração, expectativa e consumo, abuso e salvação à mercê de um mundo moderno onde reina o individualismo, imediatismo e competitividade.

Em meio a este grande cenário, a ideia de corpo ciborgue nasce e ganha força desmedida, sendo este, um mero produto de um contexto maior, que é esta cultura ciborgue. Sobre o corpo na modernidade, Bucci e Kehl afirmam que:

Na modalidade de concorrência predatória, sociedades capitalistas dominadas pela indústria da comunicação e da imagem, são mais opressivas do que a que explorava a força braçal, o esforço, a dedicação ou a competência dos trabalhadores. A sexualidade juntamente com a beleza (reduzida a um simples material de signos que se intercambia) é que orienta hoje por toda a parte a redescoberta e o consumo do corpo. No corpo erotizado o que predomina é a função de permuta. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 172)

Ou seja, trazendo o corpo para o contexto de uma máquina utilizada segundo nossas necessidades, este perpassou tempos históricos nos quais foi instrumento de construção, desde a arquitetura e aspectos físicos objetivos até os morais. Porém, agora nesta era pós-moderna, perde seu protagonismo e se transforma num expectador passível o qual desfruta dos avanços da tecnologia, período histórico que serve de bojo para os conceitos emergentes da cultura ciborgue.

Lima (2009) cita três abalos fronteiriços trazidos por Dona Haraway [2], que serviram de pano de fundo para o surgimento do “personagem” ciborgue. As fronteiras entre humano/animal, orgânico/maquínico e o físico/não físico. Ambos os autores apontam como sendo ciborgue toda e qualquer pessoa que tenha em si a junção do orgânico com o maquínico. Porém, deixa claro que esta visão não se restringe apenas a acoplação/inserção de estruturas artificiais ao corpo biológico, mas desde isto até o usufruto de qualquer tipo de recursos oferecidos para mudar, alterar o funcionamento normal do organismo, seja para manutenção da saúde ou por meros fins estéticos.

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 O corpo, como modo de linguagem, expressão e subjetividade, ganha variadas tônicas e, assim como todos os outros aspectos inerentes ao ser humano, é um processo. Desta forma, se pode afirmar que boa parte da população moderna é um ciborgue:

As diferentes formas de se modificar e se marcar fazem com que os corpos humanos estejam em constante transformação e manipulação: as marcas com fogo, as penetrações (do piercing às tatoos), as escarificações e implantes metamorfoseiam o corpo em pergaminho ou objeto de arte. (MACHADO, 2011; MUSSÉS DE MARSEILLE, 1994)

O processo de construção dos quesitos que correspondem ao que é ser ser humano: linguagem, costumes, moral, ética, crenças e religiosidade. Tais aspectos se encontram, na contemporaneidade, plásticos e os mesmos se extravasam devido à diminuição das fronteiras, consequentemente causada pela cibernética [3] e o ciberespaço [4].

A grande aldeia global na qual o mundo tem se tornado naturalmente faz com que haja o surgimento de novas formas híbridas de existência que se metamorfoseiam e fazem nascerem novas formas de ser e estar no mundo. Um mundo pós-gênero, abstrato, maquínico, simbólico. É dentro desde grande quadro moderno que os estudiosos em geral, linguistas, sociólogos, antropólogos, dentre os demais teóricos da área humana, se debruçam para tentar visualizar o prognóstico da humanidade enquanto a drástica mudança e/ou perca de seus aspectos tidos como genuinamente humanos.

A onipresença atual das máquinas e sua tecnologia permeiam a vida humana transformando-a em variados aspectos. Facilita, media, acelera e altera os processos antes administrados pelo puro labor humano. Norbet Weiner (1970, apud. COUTO, 2009) exemplifica esta temática ao evidenciar sobre como a cibernética transformou os processos antes tipicamente humanos e analógicos, culminando em diversas teorias como as da eletronificação da informação, automação do trabalho e mecanização da guerra. Tais fatores apontam para quão vivo se encontra, na história humana, a transformação e constituição da nossa realidade por meio do avanço tecnológico.

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A despeito disso, Lima (2009) se utiliza de uma pergunta chave para nos despertar no que tange ao calcanhar de Aquiles proveniente do constante progresso tecnológico. Quem somos nós?  Ao lançar esta provocação, o autor se refere à linha tênue que separa o ser humano da máquina. É colocado em cheque o sentido de humanidade o qual é perdido nesta era pós-humana. O ideal capitalista que reina na sociedade hipermoderna, prega a ideologia do progresso ininterrupto.O homem hipermoderno, segundo Lipovetsky (2005, apud. GONÇALVES, 2011), surge no século XXI como um indivíduo gozando de total liberdade, livre para ser e se assumir como bem quiser na sociedade sem se preocupar com padrões disciplinares já previamente estruturados. Ou seja, vivendo o presente sobre a perspectiva do aqui agora, sem se preocupar com sua raiz histórica ou tradições.

Com isso, há o hiperinvestimento na vida privada, delineando o narcisismo e individualismo originários do mundo hipermoderno. Mas até que ponto é permitido a nós, enquanto sociedade, manter a incessante marcha do progresso tecnológico sem nos deixar virar reféns da crise de subjetividade vinda deste ápice do progresso que, apesar de alcançado, em contraponto, faz a humanidade padecer de um vazio existencial? O entendimento do velho como sendo ultrapassado, e a necessidade do novo, o consumismo desenfreado e o ideal de superação reproduzido e reforçado no psiquismo do homem moderno faz com que o ser humano se perca no meio de suas próprias criações, vivendo unicamente para si e perdendo o contato com o outro.

Presos às redes sociais, aos smartphones, servindo ao capitalismo para seguirem uma ascensão econômica, buscando atingir um padrão de vida preconizado pela mídia e fazendo com que tenha cada vez menos tempo para se reconhecer, tendo sua subjetividade roubada. É detectável, ao projetar este quadro atual para o futuro, a evidente persistência do viés tecnológico por meio de tudo o que foi exposto. A eterna busca pelos avanços tecnológicos continua instaurando a era da “Alta Performance” para satisfazer as necessidades do ego humano. O uso de próteses continua a ganhar força enquanto traz um desempenho que muitas vezes supera o do corpo biológico, estreitando cada vez mais a barreira que diferencia o artificial do natural.

O resultado é o corpo ganhando uma identidade tecnológica progressiva. Por fim, tendo como base a construção sociocultural apresentada aqui, se considera que tal questão continua em um paulatino processo o qual ainda não se encerrou. O ser humano está e provavelmente continuará inserido nas questões do progresso tecnológico, migrando entre os aspectos do ser que cria e o ser que se beneficia de suas criações. Uma eterna busca da melhoria, da perfeição e do alto desempenho, enquanto, paralelamente, aprende a lidar com o poder libertador e aprisionador de suas próprias obras, configurando um processo o qual tende a se manter até quando o planeta ainda conseguir promover esta ininterrupta marcha do progresso á custa seus finitos recursos.

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Fonte: http://migre.me/vpo9m

O artigo Cyborg e IA: a fusão programada entre o homem e a máquina, trata estas duas áreas que são utilizadas em obras de ficção científicas, são áreas difíceis de ser definidas, pois elas estão presentes em diversas áreas de conhecimentos,muitas vezes não são de acesso ao público.A ficção científica transparece a ideia de imagem ao que chamamos de “cyborg”, máquina dotada de uma “inteligência” tão sofisticada, que pode superar o ser humano.

Mas a tendência é as duas áreas se aproximarem,entre a “mecanização” do homem e a “humanização” das máquinas, tanto fisicamente quanto “espiritualmente”. O ciborgue: a fronteira entre o homem e a máquina.Chamamos de “cyborg” todo ser vivo que é “reforçado” por adicionamento de mecânica em seu corpo. Pesquisadores refletem sobre o conceito de ser humano “evoluído” que pudesse sobreviver nas esferas extraterrestres.

No século XIX nos livros de Edgar Allan Poe,o autor descreveu um homem com próteses mecânicas em “The Man That Was Used UP” (O Homem Que Foi Refeito), publicado em 1839. Desde então os cyborgs e robôs tornaram-se muito populares com obras e personagens como Terminator, Robocop, O homem de seis milhões de dólares, Os Cibermen Dr. Who, Robot. Esses filmes e séries levantaram questões sobre os limites humanos. Hoje fala-se cada vez mais de cyborg não em termos de ficção científica,mas em evoluções científicas. Com os avanços tendem a diminuir os tamanhos das tecnologias, diminuir também o peso, próteses cada vez mais discretas e eficientes, capazes de substituir ou superar membros perdidos ou a falência de um órgão.

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Fonte: http://migre.me/vpopp

O transumanismo é um movimento que consiste em diminuir as “fraquezas” do homem (recursos físicos, doenças, invalidez, velhice, morte). O progresso tecnológico e os enxertos mecânicos tornam o homem mais “poderoso”. Homens de capacidade física ou mental que dependam de máquinas. Falar de ciborgue é apenas um passo. Nós já somos “Ciborgues”? Vai depender do ponto de vista. Se um ciborgue é um homem que teve sua capacidade aumentada por descobertas científicas que ganharam novas dimensões, então parte da humanidade pode ser definida como ciborgue. Pesquisadores afirmam que já entramos na era dos ciborgues, com o aumento de aparelhos eletrônicos, que adentram nossas vidas tornando-se indispensáveis. Televisores, telefones, satélites, internet, permitem interação com o mundo e interagem com nossas ações e ideias.

REFERÊNCIAS: 

COUTO Edvaldo Souza (Org.); GOELLNER, Silvana Vilodre (Org.). Corpos mutantes: ensaios sobre novas (d)eficiências corporais. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 258p.g

KIM, Joon Ho. Cibernética, ciborgues e ciberespaço: notas sobre as origens da cibernética e sua reinvenção cultural. Horiz. antropol.,  Porto Alegre ,  v. 10, n. 21, p. 199-219,  June  2004.  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832004000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  02 de Setembro.  2016.

MACHADO, Afonso Antônio; CALLEGARI, Marcelo; MOIOLI, Altair. O corpo, o desenvolvimento humano e as tecnologias. Motriz: rev. educ. fis.,  Rio Claro ,  v. 17, n. 4, p. 728-737,  Dec.  2011 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1980-65742011000400018&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 02  de Setembro.  2016.

Campos, Ivanir Glória de. A influência da mídia sobre o ser humano na relação como corpo e autoimagem de adolescentes. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/884-4.pdf>. Acesso em: 03 de Setembro. 2016

Gonçalves, Marco Antonio. Indivíduo hipermoderno e o consumo. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. 2011. Disponível em: < http://www.ufscar.br/~semppgfil/wp-content/uploads/2012/05/marcogoncalves.pdf>. Acesso em: 3 de Setembro. 2016.

[1] Termo usado para caracterizar uma sociedade contemporânea na qual as estruturas antigamente sólidas são deixadas para trás, dando espaço para a liquidez e fugacidade nas relações humanas, obedecendo à lógica capitalista. Ênfase no narcisismo, superinvestimento da vida privada com enfoque em aspectos como: consumo exacerbado, imediatismo, individualismo e competitividade.

[2] Bióloga, filósofa, escritora e professora emérita estadunidense. É autora de diversos livros e artigos que trazem questões como a ciência e o feminismo, tendo como uma de suas obras mais famosas: A Cyborg Manifesto (1985).

[3] Ciência nascida em 1942 e foi impulsionada inicialmente por Nobert Wiener e Arturo Rosenblueth Stearns e tem como objetivo “o controle e comunicação no animal e na máquina” ou “desenvolver uma linguagem e técnicas que nos permitam abordar o problema do controlo e a comunicação em geral”.

[4] Um espaço existente no mundo de comunicação em que não é necessária a presença física do homem para constituir a comunicação como fonte de relacionamento, dando ênfase ao ato da imaginação, necessária para a criação de uma imagem anônima.