Joel Birman: O corpo é um dos grandes cenários onde o mal-estar se expressa hoje

 

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Dentro da perspectiva atual de redução do Estado soberano e da lógica internacional dos mercados de capitais, através de processos descentralizados e da globalização, há um pensador brasileiro – Joel Birman – que investiga as novas formas de subjetivação num mundo marcado por rapidez e inconstância. Esta configuração de mundo tem um forte impacto nas dimensões de Estado, Soberania e Bem-Estar Social, uma vez que há um contínuo e rápido esvaziamento do poder político e das instituições mediadoras, além de um empobrecimento da linguagem.

Joel Birman é psiquiatra e psicoterapeuta, tendo se formado em medicina na década de 1970 e efetuado sua pós-graduação em São Paulo e Paris. Birman é autor de vários livros no Brasil e na França sobre psicanálise, tema do qual é proeminente militante. Atualmente ele é professor de Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto de Medicina Social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), este último com forte núcleo de pesquisa em psicanálise. Birman também está construindo, no Collège International de Philosophie, em Paris, uma linha de pesquisa interdisciplinar em psicanálise e filosofia em torno da questão das “Novas condições do mal-estar na civilização”, que norteou o tema de sua recente participação em programa promovido pela CPFL Cultura e transmitido pela TV Cultura (também disponível no site da CPFL e no Youtube).

De acordo com Birman, alguns autores alegam que, atualmente, a humanidade vive num mundo catastrófico e até mesmo apocalíptico. “Como se a gente estivesse numa espécie de fim de mundo, ou uma passagem para um novo mundo”, explica, para emendar que isso ocorre porque os genocídios estão por toda a parte e, sobretudo, porque eles se naturalizaram, num cenário onde impera uma espécie de “‘terra de ninguém’ que se coloca a todo o momento”. A questão levantada por Birman é: “como fica o sujeito neste mundo? Neste panorama onde o sofrimento ganha contornos de desalento?”. Ele diz que a psicanálise pode ajudar este sujeito a pensar na condição contemporânea, na medida em que este campo de saber e atuação – junto com diferentes ciências humanas e sociais – se interessa por essa problemática de condição de novidade do mundo contemporâneo. Para Birman, “a psicanálise e o sujeito andam de mãos ligadas, e talvez a eclipse do sujeito seja uma das nossas grandes questões contemporâneas”.

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De acordo com o psicanalista da UFRJ, no livro “Psicologia das massas e análise do eu” de Freud (1921), há uma afirmação importante deixada pelo pai da psicanálise, ao apontar que não existe separação entre psicologia individual e psicologia coletiva. “Parece-me que essa afirmativa é importante pelo fato de Freud localizar um problema-chave para a psicanálise, já que para esta não existe separação entre o estatuto do indivíduo e o estatuto da sociedade. Isto é: estes dois registros – indivíduo e sociedade – vão juntos, imbricados, de forma que a separação do indivíduo de sua sociedade pode se dar num discurso meramente da psicologia ou da psicopatologia, mas não cabe para as teses da psicanálise, sejam elas as teses do Freud ou de Jacques Lacan (1901-1981)”, sentencia Birman, ao lembrar que em decorrência disso Lacan lança um texto em 1953 denominado “Função e campo da fala e da linguagem na psicanálise”, onde abre a discussão em torno de uma formulação importante, ao dizer que o inconsciente é “transindividual”. Ou seja, “o inconsciente não está no registro do indivíduo ou de um eu psicológico. Ele está num determinado campo simbólico, de forma que o sujeito é delineado por aquilo que poderíamos chamar de genealogia, com implicações no espaço social e no campo histórico propriamente dito”, explica Joel Birman. O psicanalista prossegue sua linha de raciocínio ao dizer que a questão do que o Freud chama de “mal-estar na modernidade/civilização” é um aspecto constituinte da psicanálise. Isso porque esse conceito vai dar conta de alguma coisa que existe na sociedade moderna, em relação à sociedade antiga, que gera uma celeuma. “Esta dinâmica vai se tornar patente seja sobre a forma das perturbações psíquicas dos indivíduos, seja sobre a forma da violência e da criminalidade. Aquilo que no discurso sociológico se chama de patologias do social”, lembra Birman, que ancora sua ênfase a partir da teoria da sexualidade inicial, tendo por base o texto “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908), onde Freud cria uma fórmula para apontar que aquilo que é produtor de mal-estar “são as impossibilidades que os sujeitos têm de poder, de uma maneira expansiva, potencializarem a sua experiência erótica”.

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Joel Birman argumenta que Freud descobre a “sexualidade perverso polimórfica”, onde as pessoas são impactadas por uma moral sexual civilizada – através do modelo de família nuclear burguesa e dos imperativos da monogamia matrimonial. Este impacto cria um impasse para certos sujeitos, de maneira que a psicanálise se propõe “a desvendar este nó para possibilitar uma potencialização dessa experiência erótica”. Birman diz que, num segundo tempo, a partir de 1920, Freud vai fazer outra leitura do mal-estar. Não se trata mais apenas de uma questão de expansão erótica. Será, sobretudo, decorrente da presença no sujeito daquilo que ele chama de “pulsões de destruição”, de práticas de destruição, da marca de certa crueldade que habita as pessoas, no trato consigo próprio e no trato com o outro, seja através de práticas sádicas, seja através de práticas masoquistas. “Freud, então, começa a mudar o seu discurso sobre o mal-estar a partir da 1ª Guerra Mundial. Neste contexto de intensas disputas (ocasionadas pela Guerra), entra em cena o jovem Jacques Lacan, que ao ingressar para a psicanálise nos anos 30, aborda um tema altamente contemporâneo que é a questão da criminalidade, o estatuto da agressividade, o estatuto da violência – na mesma leitura da qual Freud fez a análise do mal-estar”, pontua Birman, ao enfatizar que Lacan vai associar o mal-estar àquilo que ele chama de “humilhação da figura do pai” (abordado também, na contemporaneidade, pelo filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek). “Trata-se, desta forma do mesmo espaço teórico onde o Freud fez a leitura sobre o mal-estar”. Birman lembra que no primeiro discurso de Lacan sobre o tema, num texto chamado “Os complexos familiares” (1938), ele articula o mal-estar com aquilo que ele chama de “humilhação da figura do pai”, na medida em que esta representação de pai perde a sua força, “em que ele perde a sua autoridade, em que ele não pode mais mediar os laços familiares e sociais”. A ausência desta mediação estaria na base da violência individual, coletiva e social que imperava nos anos 30. Posteriormente, a partir dos anos 50, lembra Birman, Lacan vai continuar insistindo no poder da mediação do pai, através de uma figura que ele vai chamar de “O Nome do Pai”, através do âmbito de mediação simbólica. Ou seja, “tanto no discurso de Freud quanto no discurso de Lacan há uma alusão ao pai. O pai, aí, existe em dois registros: ele é o pai no sentido de estrutura da família (chefe de família), e num sentido político que se remete à soberania”, destaca Joel Birman, ao frisar que Freud acreditava, na sua primeira leitura, que a figura do pai funcionaria como protetora do sujeito, enquanto que na segunda leitura Freud “vai nos afirmar que a figura do pai ou a figura do soberano não protege mais o sujeito”. Desta forma, o que aparece de novo no pensamento psicanalítico dos anos 20/30 é exatamente este sujeito lançado no mundo, sem a proteção do soberano ou sem a proteção do pai, “onde ele vai estar exposto a uma experiência essencialmente traumática”. Em síntese, há toda uma reflexão filosófica e política em torno da subjetividade que está presente tanto no pensamento de Freud quanto no pensamento de Lacan.

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Sociedade de risco

Joel Birman prossegue dizendo que a decomposição do estado de bem-estar social vai desaguar numa sociedade de risco, “onde nenhum de nós conta mais com nenhum tipo de proteção do Estado, onde nós estamos lançados ao ‘Deus dará’, e onde efetivamente todo problema das subjetividades” vai ser associado a esta problemática. “Um autor como Michel Foucault (1926-1984) vai dizer que a nossa modernidade já é constituída em torno de uma sociedade de risco. O que ocorre nas últimas décadas é simplesmente uma radicalização da dimensão de risco que caracteriza a sociedade contemporânea”, destaca Birman, para lembrar que num dos famosos cursos de Foucault sobre os anormais – com ênfase em segurança, território e população –, ficou evidenciado de forma clara como a sociedade moderna é uma sociedade de risco, e que este modelo é fundado em duas mãos, sendo que por um lado ela é uma sociedade gerida biopoliticamente (há toda uma gestão populacional que passa pela economia política), cuja preocupação central é a “manutenção” da espécie. “Daí aquilo que vai caracterizar aquela modernidade, aquele mal-estar inicial de que Freud nos fala, que é a questão da medicalização do espaço social, o lugar importantíssimo que a medicina ocupa nos últimos 200 anos”, sentencia Birman. Por outro lado, prossegue o psicanalista e professor da USP, “a nossa sociedade é uma sociedade disciplinar, onde existe uma anatomo-política do corpo, que é adestrado num conjunto de práticas para manter/regular esta sociedade de risco. É neste mundo da sociedade do risco onde a gente assiste ao surgimento de alguns tipos de práticas novas, ou algumas formas novas de demandas ou de queixas que vale a pena ficarmos atento para elas”, conclui Birman, ao dizer que aquilo que atualmente se caracteriza como assédio moral – que não é apenas uma questão de assédio sexual – toma corpo, exatamente, nesta sociedade de risco. O assédio se transforma numa queixa e mesmo numa forma de sofrimento, “num mundo onde não temos mais instâncias de mediação seguras a quem a gente pode claramente reclamar as nossas demandas”.

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Aliado a tudo isso, prossegue Birman, há tipos de práticas que são bastantes fundamentais na sociedade brasileira, com a desconstrução do estado social e o surgimento de uma sociedade de risco. São as chamadas “práticas de favor”. Isto é, “num mundo em que eu não posso mais contar com a proteção do Estado, eu devo demandar apoio/ajuda aos ricos e poderosos para que eles possam me dar algum tipo de guarita, dentro deste mundo do ‘salve-se quem puder’”, destaca. Com isso, Birman diz que a questão não é fazer uma defesa ou um ataque ao estado, mas simplesmente mostrar como na passagem para um mundo globalizado houve a produção de uma descontinuidade histórica, em que se perdeu uma referência a-política e caiu-se no mundo dos “experts” e da governança (esta última, um grande problema, para Birman). “Eu não estou com isso criticando a figura do pai, mas creio que a figura do pai mudou de lugar. Freud dizia numa frase que eu acho muito interessante no ‘Mal-estar da civilização’, que ‘os neuróticos sofrem de nostalgia do pai’. Isto é, os neuróticos querem pais que protejam”, elucida, para completar que o que Freud propunha era uma saída psicanalítica para as demandas. Diante disso, “nós devemos aprender a viver de uma forma desamparada, no mundo, sem contarmos com a proteção do pai. No sentido de que isso nos custa certa submissão e certa obediência. Se para ter a proteção do pai implicar nesta obediência e nesta submissão, toda a psicopatologia freudiana nos mostra quais são os efeitos disso, tal como nos aparece num famoso fantasma que Freud descreve, que é o fantasma ‘bate-se numa criança’” (uma das teorias do austríaco). O que é que se coloca aí?, questiona Birman. “Primeiro, é que o pai perdeu a autoridade simbólica, por conta de que ele para manter o filho no lugar tem que usar a força física. Isto é, o pai que se utiliza da violência já perdeu a autoridade simbólica porque está usando a força. Segundo, o filho que olha a cena pensa assim: ‘o meu pai me ama porque bate nele (em outro irmão) e não bate em mim’. Já o filho que apanha pensa em outra coisa: ‘ah, se o meu pai toca no meu corpo mesmo sob a forma de violência, é a mim que ele ama”’ Isto quer dizer que este mundo onde a obediência/submissão ao pai se coloca, é um mundo que perdeu a referência simbólica do pai por um lado, e segundo é um mundo que alimenta aquilo que houve de mais corrosivo na modernidade, que é a disputa dos irmãos”, argumenta Joel Birman, para quem este (a disputa de irmãos) é o motivo simbólico que minou aquilo que se chama de sociedade democrática, que é uma sociedade de irmãos. “Nós criamos uma sociedade democrática não só em torno da liberdade e da igualdade, mas em torno da ideia de fraternidade. E os irmãos disputam de quem o pai ama mais. Então nós temos de sair desta relação vertical de obediência e criarmos novos tipos de laços sociais – inclusive acho que é isso que pode ser produtivamente instituído com a globalização –, sem a relação vertical de autoridade, sem a obediência, traçando outros tipos de laços, baseado naquilo que o Derrida (1930-2004) chamou de uma ‘ética da amizade’, que fuja deste modelo da fraternidade, tal como aparece no modelo do ‘fantasma bate-se numa criança’. Eu acho que a ética que a psicanálise poderia contribuir passaria por aí”, destaca Birman.

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Mais à frente, durante sua explanação, Birman diz que se se comparar um modelo clássico da psicanálise, o que estava em jogo – sendo que este sofrimento era um conflito entre impulsos e interditos, onde a regulação dos interditos estava muito bem estabelecida – era que o sujeito era aquele que sofria na sua interioridade. Já a condição do sofrimento contemporâneo não se passa neste contexto. “Esta equação entre o sujeito e interdito, onde o analista tentava polir os interditos para tentar deixar o sujeito se expandir um pouco, é uma fórmula que deixou de ter uma vigência na nossa contemporaneidade. Talvez aí tenhamos o grande divisor de águas do ponto de vista da experiência subjetiva, daquilo que seria um mundo moderno e um mundo pós-moderno ou modernidade avançada e globalização”, pontua.

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Birman diz que se esse sujeito do conflito (impulsos, desejos x interditos) sai de cena, e se for examinar o que aparece hoje como forma pela qual o mal-estar se apresenta, diferentemente da época do Freud, “vamos ver que certas categorias ou formas de pensamento chamam a atenção. Então o ‘corpo’, ‘ação’ e o ‘sentimento’ compõem uma cartografia que fala de uma série de mal-estares”. Aliado a isso, por outro lado, “vamos encontrar certa ausência, de forma negativa, de duas faculdades nobres do ponto de vista antropológico do sujeito, quais sejam, as categorias do pensamento e da linguagem. Estas faculdades vão aparecer negativizadas”, pontua.

Para Birman o corpo é um dos grandes cenários onde o mal-estar se expressa hoje. “Nós estamos sempre aquém da nossa sanidade física, nós estamos sempre devendo alguma coisa em relação a certo modelo de bem-estar físico. Nós estamos sempre correndo atrás de melhorar a nossa performance corporal… todos nós corremos ou andamos 1 hora por dia, todos nós tomamos antioxidantes, todos nós pulamos corda e andamos de bicicleta. Ou seja, nós vivemos com um temor permanente da morte, e um cuidado corporal acentuado. Isto quer dizer que a saúde, hoje, se transformou naquilo que a gente poderia chamar – parafraseando Aristóteles – de nosso ‘bem supremo’. Nosso bem supremo hoje é a saúde”, destaca Birman, ao reforçar que “nós estamos muito longe de acreditar que o cultivo da alma seja o nosso bem supremo. Nosso bem supremo, atualmente, é o corpo”. E é em função deste corpo, desta condição de cultivo do corpo, que todo o mal-estar contemporâneo vai exercer forte pressão.

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Estresse como palavra-chave

E tudo isto quer dizer o quê? Que o estresse virou a palavra-chave, já que todo mundo está estressado. “Todos nós devemos lutar contra o estresse, porque o estresse vai corromper a nossa saúde física, ele vai nos matar, e nós devemos muito bem cuidar dos níveis que atingem a nossa pressão arterial, senão nós morreremos logo. E isto vai se expressar em todo um crescimento gigantesco que se dá hoje às ditas ‘patologias psicossomáticas’”, observa Birman, para quem os especialistas em psicossomática estão em voga, exatamente porque tudo passa por esta medicina do estresse e da psicossomática, onde a gestão do corpo saudável tornou-se algo fundamental.

Isto vai fazer aparecer, no primeiro plano, certas enfermidades centradas no corpo, do qual a mais célebre delas, de acordo com Birman, é “Síndrome do Pânico”. “Trata-se de uma doença corporal por excelência, do mundo da globalização, onde nós podemos a qualquer momento sermos pegos com uma iminência de morte… então a Síndrome do Pânico, dentre várias outras perturbações psicossomáticas, se apresenta de forma primadona deste mal-estar contemporâneo”, sentencia, para logo em seguida afirmar que, em relação à ação, “se a gente for ver o que caracteriza as discrições sobre a ação, hoje, são relatos sistemáticos sobre agressividade, violência e criminalidade”. Há, portanto, um aumento imenso destas formas de violência, acompanhadas de maior grau de crueldade, que passa a ocupar o imaginário social contemporâneo. além disso, “nós temos um segundo capítulo das ações, que é aquilo que eu chamo das ‘ações fracassadas’, mas que são assim mesmo são formas de perturbações do mal-estar, que é aquilo que nós chamamos de compulsões. As compulsões são a segunda grande primadona da nossa contemporaneidade. Seja a compulsão por drogas, comida, seja a compulsão ao consumo, estas coisas representam um crescimento importantíssimo, onde se descrevem cada vez mais novas maneiras de compulsão”, observa. Em síntese, para Birman, há atualmente formas ostensivas de ação (que transcende, inclusive, o campo de atuação do sujeito, no modelo arendtiano) pela violência, pela agressividade e pela criminalidade. Na esteira disso, há o enorme crescimento das compulsões repertoriadas tanto pelos psicanalistas quanto pelos psiquiatras.

Um terceiro eixo que se apresenta é sob a forma dos sentimentos, “onde nós temos desde as distimias – as variações de humor -, até as famosas depressões. Tudo isso caracteriza um mapeamento sistemático das nossas formas de sofrimento contemporâneo”. Birman lembra que a Organização Mundial de Saúde diz que as depressões são, hoje, a segunda maior doença do ponto de vista epidemiológico do mundo.

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Intensidades sem mediação e controle

Na outra ponta, Birman defende que há atualmente um enorme empobrecimento do campo do pensamento e da linguagem. “A nossa linguagem hoje é altamente atravessada por metáforas ligadas à ação. Se por um lado a ação, o corpo e os sentimentos afloram nesta dinâmica, por outro lado houve um gradativo empobrecimento da linguagem e do pensamento”, defende Birman, ao acrescentar que com a fragmentação pós-moderna, e as perdas dos potenciais de unificação e simbolização que isso criou do ponto de vista político – numa total ausência de mediadores – fez com que as pessoas ficassem entregues ao jogo de suas próprias intensidades (intensidades sem controle). “É como se nós fôssemos possuídos por intensidades, sem que os nossos mediadores de simbolização pudessem regular esta produção intensiva. Então, se nós somos tomados por intensidades e por excitações corpóreas, e não podemos dar a isso um destino no campo do pensar e no campo do falar, a nossa única possibilidade de lidar com isso é descarregar mesmo – seja para o corpo, seja para a ação”, observa. Birman lembra que, evidentemente, o sujeito prefere explodir pela ação a implodir o seu corpo, “já que isso é uma questão narcísica”. Mas ele nem sempre pode escolher.

Na medida em que o sujeito é tomado por intensidades, e que essas intensidades o ultrapassam – e onde ele não pode regular estas identidades – “passamos então a viver naquela situação chamada de ‘despossessão de si’. Ou seja, vivemos numa sensação de que nós perdemos certo domínio mínimo de nós mesmos. Parece que as ditas depressões são o resultado desta ‘despossessão de si’. Portanto, há aí um processo de desvitalização do sujeito”, explica Joel Birman.

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O teórico da UFRJ diz que as cidades e organizações urbanas atuais – seja através das favelas, dos sem-teto ou dos campos de refugiados – constituem um universo de exceção, onde a vida nua (próxima das condições de atendimentos meramente biológicos e, portanto, oposta à vida qualificada) se expressa a olho nu. Ou seja, a questão da sobrevivência e do sobrevivente se mostra de forma explícita. “Isto é, nós incorporamos a partir do Nazismo o modelo do campo de concentração como o modelo da nossa sociabilidade”. Partindo deste pressuposto, para finalizar sua palestra, Birman diz que há duas formas de respostas que estão altamente disseminadas na mentalidade contemporânea. Primeiro, para tentar conter a expansão gigantesca do mal-estar cria-se um estado policial e judicial. “Nós vivemos assustados, e pedimos com isso a presença de sistemas de controle e vigilância”. E uma segunda resposta que aparece em relação a isso é a expansão dos fundamentalismos. “Hoje, assistimos a um retorno assustador dos fundamentalismos religiosos (a exemplo do fundamentalismo islâmico, protestante, católico e judaico). Em todas as religiões monoteístas, há um retorno ao discurso fundamentalista, onde há uma alusão clara a uma espécie de estado teológico-político, numa espécie de regressão ao mundo pré-moderno”, constata.

Joel Birman diz que, por outro lado, do ponto de vista da política da subjetividade, duas alternativas se colocam. A primeira alternativa é caracterizada pela Psiquiatria Biológica, que promete manter a todos rastejantes no plano da vida nua. Há, portanto, uma promessa de controlar as intensidades, tornando os sujeitos autômatos produtivos, “para que possamos nos chafurdarmos mais na nossa condição animal, perdendo as nossas condições de vida qualificada”. Birman diz que esta proposição é a que está na moda, uma medicalização naturalizante que supostamente custa mais barato. A segunda alternativa para isso é a psicanálise. Por que a psicanálise é uma alternativa? “Porque enquanto um sistema supõe a eliminação da questão do sujeito, a eliminação da questão do desejo, a eliminação da questão da fantasia, aquilo que aparece a partir da psicanálise é um convite a uma restauração subjetiva”, defende Birman, ao acrescentar que a psicanálise “nos promete a construção de uma subjetividade possível. Isto é, ela nos promete – retomando a sugestão do filósofo Aganbem (1942) – a proposta de uma vida qualificada, onde se possa sair do campo da vida nua”.

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Sob este ponto de vista a psicanálise, então, possibilita a reconstrução da subjetividade e de uma vida qualificada. Birman diz que “isso ocorre através de uma prática de cuidados, que pode se dar no nível individual ou no nível de certas instâncias coletivas a ser inventadas, para assim dar uma resposta a este mal-estar que está colocado aí, e que ganha cada vez mais ênfase, através dos fundamentalismos, através da sociedade centrada na polícia e na judiciação da vida, e através da psiquiatria biológica, um movimento de apagar qualquer dimensão desejante, qualquer estatuto do sujeito”. Ou seja, a psicanálise se apresenta como uma alternativa efetiva para se contrapor a esta vida nua, a ao estado de exceção que a supostamente a sociedade contemporânea se delineia hoje. “Por mais que a psiquiatria biológica prometa esse controle das intensidades e dos desejos através dos remédios/psicofármacos, esse controle acaba por provocar milhares de efeitos, sendo que muitos deles são paradoxais, sobretudo os ligados a esta ameaça de morte do sujeito ou da subjetividade”, finaliza Birman.

 

REFERÊNCIAS

BIRMAN, Joel. Novas formas de subjetivações. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=ov9CKqKiAeE >. Acesso em 21 de abril de 2016.

Palestrante: Joel Birman. Disponível em <http://www.institutocpfl.org.br/cultura/palestrante/joel-birman/ >. Acesso em 21 de abril de 2016.

 

 

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.