Maisa Carvalho: Consultório na Rua, Políticas Públicas e Cidadania

O conceito de cidadania é discutível em relação às pessoas em situação de Rua, pois, ter uma certidão de nascimento é dado como o ponto principal de cidadania. Quem não viu a propaganda que passava na TV “Eu tenho nome e quem não tem? Sem documentos eu não sou Ninguém, eu sou Maria, eu sou João, com certidão de nascimento, sou cidadão”?!. A falta de documentos pode ser um empecilho para o exercício da cidadania, acerca disso os profissionais do Consultório na Rua tem como objetivo a busca por Cidadania daqueles que estão em situação de rua. É importante diferenciar a cidadania do direito à dignidade, onde o MPDF (2018) menciona a Constituição Federal quanto ao dever de promoção do bem-estar de todos sem quaisquer tipos de preconceitos com foco na redução das desigualdades sociais.

Nesta entrevista para o (En)Cena, a Assistente Social Maisa Carvalho nos traz um conteúdo muito enriquecedor acerca do trabalho com as pessoas em situação de rua e a prática das políticas públicas na busca pela cidadania dessas pessoas. Ela é graduada pela Universidade Federal do Tocantins – UFT (2016), especialista em Gestão de Redes de Atenção à Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ (2018), especialista em Saúde Mental pelo Centro Universitário Luterano de Palmas e Fundação Escola de Saúde Pública, através do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental – ULBRA/FESP (2020), Responsável Técnica do Programa Piloto de Justiça Terapêutica do Tribunal de Justiça do Tocantins, atualmente atua na equipe de saúde Consultório na Rua e é pesquisadora nas temáticas voltadas para Saúde e Direitos Humanos: saúde mental, população em situação de rua e feminização de substâncias psicoativas.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En)Cena: A questão da cidadania em relação aos documentos, quando não há esse documento e às vezes é muito difícil correr atrás e o paciente precisa ser atendido em alguma unidade, é negado? Como funciona?

É atendido sim, até porque não conheço nenhum protocolo ou uma lei que impeça que a pessoa seja atendida na saúde se ela não tiver documento. No entanto, se ela for encaminhada para a atenção especializada, se for cirurgia, um exame específico, acredito que dificulta mais. Isso vai depender de quem atende, do protocolo do local, vai depender de qual que é o procedimento, porque o primeiro passo é ter o cartão do SUS. A pessoa tendo um cartão do SUS, ela vai ser atendida independente de ter documento ou não.

Até hoje não tivemos negativa nenhuma, quando tem uma situação assim a gente acompanha, procura explicar “olha é um paciente em situação de rua, ele é acompanhado pelo Consultório na Rua, que é um serviço que atende esse público, que faz parte da Rede, etc.” Porque tem pessoas que não conhecem o serviço e a gente tem que chegar nos lugares explicando o que fazemos, quem somos, para dar mais visibilidade também. O nosso serviço deveria ter literalmente portas abertas em todas as unidades, porque nós somos um ponto da Rede de Atenção Básica, as unidades de saúde elas o nosso apoio. Exemplo, se a gente precisa imprimir documentos, precisa pegar a medicação na farmácia, precisa de atendimento, inclusive de consulta, esse serviço não deveria ser burocratizado, porque a gente faz parte da rede, não somos um outro serviço de fora, mas em algumas unidades ainda não é tão facilitado esse acesso, no entanto isso vem melhorando muito. As unidades que já conhecem, são super abertas, tem atendimento rápido, dão prioridade para os pacientes.

É um serviço de formiguinha que dá essa abertura muito tranquilo, agora quanto a outros serviços realmente não tem acesso. Se você precisa de uma matrícula escolar você precisa de documento, se você precisa fazer um título de eleitor, fazer uma carteira de trabalho, de identidade, se você precisa acessar habitação, você precisa de documento, infelizmente não conseguimos dar prosseguimento sem documentação. E é onde os pacientes ficam de fora se eles não tiverem. Já encaminhei vários ofícios de solicitação de isenção de certidão de nascimento aos cartórios, somando aos enviados e aos documentos que já chegaram, somam-se uns 20 documentos.

O contexto das ruas é de vários tipos de exposição e um deles é a deterioração desses documentos ou até mesmo percas, furtos, eles estão ali alguém vai rouba essa pessoa, leva a carteira, alguma bolsa com dinheiro e leva tudo junto. A certidão de nascimento é um documento que não há necessidade de você andar com ele, você não apresenta em qualquer lugar, você apresenta o RG, que também é fácil para tirar de novo. O que é mais difícil é o registro nascimento, então a gente sugere deixar com uma pessoa confiável, um familiar, um amigo ou uma pessoa próxima, ou então a gente tem também um acordo com o CREAS que é o Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Caso a pessoa não tenha ninguém para deixar, nenhum local, deixamos o documento lá até que a pessoa em situação de rua volte para casa, ou se restabeleça, ou caso ela precise, tenta pegar quando é em último caso porque é um documento que você pode não conseguir de novo, para liberar uma vez o cartório libera, mas duas vezes pode ser que não, e aí já foge da nossa governabilidade.

Fonte: encurtador.com.br/nCDHX

(En) Cena: Como funciona a questão do custo desses documentos? O governo arca com isso?

Depois que eu entrei no serviço, construí juntamente com a equipe um fluxo com os cartórios para acessar a segunda via de registro de nascimento, porque para tirar a certidão de nascimento a gente precisa entrar em contato com os cartórios, onde essa pessoa foi registrada e fazer a solicitação. Para que o cartório seja ressarcido desse valor, é necessário que seja encaminhado um ofício e uma declaração de hipossuficiência assinada pelo usuário.Com esse documento, a gente traz todo o histórico da pessoa, que ela mora em situação de rua, quanto tempo, qual é o problema dela, que é acompanhado pelo Consultório na Rua e faço uma breve contextualização do que é esse serviço, trago também algumas partes da lei, onde garante que ela tenha acesso a esse documento, se ela não tiver como pagar, no entanto, ela não consegue chegar lá e simplesmente dizer “então eu preciso da certidão, me ajudem, eu não tenho dinheiro”. Ela não vai conseguir, a gente sabe que não é assim, mas ela tem esse direito. Faço este ofício, o mesmo é enviado para a secretaria de saúde e é assinando é o secretário de saúde, eu faço o documento, ele assina e encaminha para o cartório via Correios juntamente com a declaração. Recebendo, lá eles protocolam e mandam o documento pelo mesmo endereço que a gente encaminha, sendo paga essa ida e a volta do documento. Então, a cidade consegue gratuitamente, não tem nenhum problema, é só mandar um ofício com essa declaração de onde a pessoa declara que não tem condição de pagar que o cartório é ressarcido posteriormente.

Quanto à carteira de identidade que já é um outro processo em outro local que é o Instituto de Identificação aqui em Palmas, as vezes conseguimos, as vezes não, então a gente tenta na conversa “Olha fulano precisa para fazer tal coisa, ele foi contemplado com a unidade habitacional, com algum outro serviço que possa trazer benefício, se não conseguir documento ele não vai conseguir ter acesso a esse benefício.” Tentando sensibilizar quanto a essa necessidade, às vezes liberam, às vezes não. E aí, quando não liberam há uma taxa de 25 reais, mais as fotos que é em torno de 20 reais, vai dar 45 reais no total para ter acesso a identidade. Então, quando eu já peço o documento ou a certidão eu deixo claro “Olha procura se organiza, procura tirar a parte do auxílio que você recebe, para custear a identidade”, porque para poder tirar tem esse custo que é de 25 reais, muitas vezes eles conseguem, porque sabem o preço que é, da certidão, já teve valor próximo de   300 reais, devido ser de outro estado, de longe, que realmente é caro. Então, eu falo “olha, a gente conseguiu um documento de 120,200…e só precisa de 25 para conseguir outro”. É mais na base da conversa, quando a pessoa não tem documento aqui no Estado, e nunca tirou, é de graça, não precisa pagar. Mas, se já tirou a primeira via aqui no Estado, a segunda via precisa pagar. É difícil conseguir de graça, consegue, mas nem sempre, é um trabalho que a gente faz, o “não” a gente já tem, corremos atrás do “sim”, mas é isso, a gente trabalha priorizando o acesso.

(En)Cena: Sendo Palmas a capital, vocês têm acesso a dados do Estado, há uma ligação com os outros municípios no Estado? As políticas públicas que se aplicam aqui em Palmas, se aplicam em Araguaína ou em Gurupi? Como funciona?

O Consultório na Rua só existe em Palmas. Ele não tem em outro lugar (do Tocantins), devido a questão populacional mesmo. Para ter o Consultório na Rua depende do número mínimo de pessoas na cidade, também de investimento da prefeitura. Até onde eu sei só tem em Palmas, quanto aos números de pessoas em situação de rua é impossível saber precisamente, mas em Palmas, passa de 100 pessoas. Não me recordo precisamente. Mas esse número pode ser maior, mas, para ser incluído como um usuário, acompanhado pelo Consultório na Rua, tem que estar cerca de 3 meses em Palmas, é preciso estar acompanhando ele durante 3 meses, porque ele pode estar aqui e ir para outro lugar no mês que vem, ele pode estar em Araguaína, em São Paulo, em outro lugar. Então, não tem como incluir essa pessoa dentro do nosso cadastro de atendimento, por isso não temos um número exato. No entanto, essa pessoa não deixa de ser atendida, ela vai ser atendida normalmente.

Tem a população em situação de rua que é flutuante, ela pode ir para a rua somente quando ela está alcoolizada, somente quando tem uma briga com a família, ela fica 2 ou 3 dias, ela não é uma pessoa considerada moradora de rua, ela tem uma casa, ela tem um vínculo, só que por algum motivo ela está na rua. Já os andarilhos são pessoas que também estão em situação de rua, mas eles estão aqui, daqui a pouco podem não estar mais. Há uma oferta de atendimento também. No entanto, eles não entram no cadastro por isso, porque é um número que vai ficar flutuando muito, muitas vezes estão mesmo de passagem pois estão sempre andando, mas também fazem parte do nosso público.

Quanto ao contato, fazemos também, as vezes os serviços de outros municípios entram em contato pedindo informações de pacientes, há essa troca sim.

Fonte: encurtador.com.br/ajCM2

(En) Cena: Você entrou em 2019 no consultório na rua, sendo que o mesmo foi implementado em Palmas somente em 2016, de forma mais tardia, por assim dizer. Nesse Período, o que você percebeu de mudanças significativas? Houve aspectos positivos e negativos com essas pessoas em situação de rua?

No trabalho da saúde mental, o Consultório na Rua é um dos pontos da Rede de Atenção Psicossocial, é um trabalho de formiguinha, talvez o que eu falar como evolução, seja visto pelas pessoas como “só isso?” Mas que na realidade podem ser grandes evoluções, para nós e para quem se beneficia dessas mudanças, é um trabalho que não é somente a pessoa parar de usar álcool, ou ela ficar organizada mentalmente, a gente trabalha muito com a redução de danos, existe uma política que rege toda a nossa atuação em cima disso. Então, por exemplo, se a pessoa está em uso durante a vida toda ou passou esse ano todo fazendo uso de álcool e outras drogas sem pausa, ela já está bem emagrecida, a pessoa já tem alguns problemas de saúde em decorrência do uso dessas substâncias, ela já não trabalha mais, ela já não tem vínculo familiar mais, ela está literalmente prejudicada por causa desse uso de substâncias, se a gente consegue com que essa pessoa diminua esse uso já é um avanço muito grande, se a gente consegue que a pessoa, mesmo usando a droga, ela consiga se cuidar, ela consiga por exemplo, buscar uma unidade de saúde, ela consiga se hidratar, se alimentar, ela consiga talvez tomar um banho, já é um avanço muito grande. Agora avanços significativos de mudanças radicais de vida, temos também vários, poderia ter mais?! Poderia! Mas esse contexto de uso de álcool e outras drogas não é bem o contexto do que as pessoas esperam, uma pessoa sair daqui contente da rua, morar numa casa, passar a trabalhar, ter uma vida “bonitinha”, ser uma pessoa aceita. Então assim, esse padrão aí pode ser que não seja alcançado sempre. A gente trabalha com pequenas coisas, com pequenos passos, mas sim nós temos pacientes que moravam de baixo de árvore, por exemplo, que hoje têm acesso a moradia, passaram a ter essa vivência do que é pagar uma água, pagar uma luz, desses compromissos de morar numa casa, e por mais que ela passa a morar numa casa a gente atende até hoje, porque o nosso público não é quem mora em casa, nós trabalhamos com moradores de rua, pessoas em situação de rua, no entanto essa transição é uma fase também de difícil adaptação, e a equipe participa disso.

Tem um casal no qual eles ganharam uma casa, não foi uma conquista de quando eu estava no Consultório na Rua, mas eu já estava como residente, eu pude acompanhar o processo de adaptação e quando eles moravam na rua também eu já era residente. Então eu tive esse acompanhamento, não como profissional da equipe, mas como residente. Eles moravam em uma casa de papelão, quando chovia caia tudo, estavam no relento, e quando eles passaram a ter a casa tiveram dificuldades, por exemplo, de fazer comida, dificuldade de tomar banho, dificuldade de dormir numa cama, porque não é o contexto deles, parece algo tão natural, dormir na cama, usufruir de tudo. Mas a gente as vezes chegava lá eles estavam cozinhando sebo de fazer, por exemplo, porquê era a realidade que eles tinham lá fora, de comer qualquer coisa, de comer qualquer hora, de não ter essa responsabilidade de pagar água, luz, parcela da casa, por que não é 100% dada para as pessoas, ela tem um valor pequeno, geralmente uns 80 reais. Tem os apartamentos que são 100% de graça, mas que para eles não era o ideal, tudo isso foi avaliado em discussões de caso, inclusive com outros serviços, então o melhor seria uma casa, um espaço mais tranquilo e reservado.

 Então eles passaram a ter alguns compromissos e isso foi muito engraçado porque a equipe viabilizou o acesso da casa, entrar com processo para receber Benefício de Prestação Continuada (não recebem ainda), mas tiveram acesso ao auxílio emergencial, e assim que eles receberam o dinheiro ficaram sem saber o que fazer, e aí a gente orientou “olha você precisa pagar esse valor aqui que é da água, você precisa pagar essa energia, você precisa pagar esse valor que é da prestação da casa” e tudo isso para eles era muito estranho, e se a gente não participasse desse processo, correria o risco deles voltarem para a rua novamente, mesmo tendo a casa.

Fonte: encurtador.com.br/fFVW5

O trabalho não é muito fechado, não é somente trabalho in loco, ali com a pessoa na rua. A gente vai além disso. Além desses, tiveram outros casos que foram beneficiados com unidade habitacional com o apoio da equipe, porquê tem que montar todo um dossiê, tem que ter relatório, tem que ter tudo isso. A gente apoia, acompanha os pacientes nesse processo, quando sai por exemplo nome deles na lista eles não tem acesso à internet, telefone, como é que vão saber?! A gente que acompanha também, se sair o nome pra gente ajudar com a documentação e ir atrás.

Temos pacientes que voltaram para casa, às vezes estavam em situação de rua por uma desorganização mental, em surto, e a gente entra em contato, muitas vezes com familiar de outro Estado, caso seja preciso a pessoa ser internada no HGP, também com a gente articulando, é um avanço muito grande, talvez estava na rua somente por um surto psicótico. Às vezes deu uma desorganizada, está sem usar medicação e acabou indo para a rua.

Acesso ao trabalho, com paciente que voltou a ter essa vida ativa no trabalho, às vezes não é um trabalho formal, mas uma venda de picolé, trabalho artesanal, um trabalho de garçom. Infelizmente não são muitas opções ofertadas para essas pessoas. Para as pessoas com formação, já é difícil, imagina quem não tem estudo, informação ou vive nessas condições?  os trabalhos deles são quase sempre subempregos, é uma verdade, trabalhos informais, mas que são trabalhos, que antes as pessoas não tinham, então a gente tem que incentivar isso também. E, tem pessoas que já estão nesse processo do mercado de trabalho, seja autônoma ou seja inserido mesmo com carteira assinada.

A gente tem um paciente que morou muitos anos na rua, que foi acolhido pelo “Palmas que te acolhe” que era um projeto que tinha aqui na cidade, mas que já finalizou, o qual que acolhia a população de rua em um espaço, com dormida, com incentivo a emprego e renda etc. Era uma equipe multidisciplinar que dava esse suporte aos pacientes em situação de rua. Na época, ele foi acolhido por esse serviço e também acompanhado pelo Consultório na Rua. Logo depois, ele foi contratado pela prefeitura, e até hoje ele continua. Ou seja, um paciente que saiu da rua, do consumo abusivo de álcool e mora numa casa, consegue pagar aluguel, se alimentar melhor, ele saiu desse contexto de uso abusivo de álcool, porque a gente sabe que o uso em si as vezes é decorrente de outros problemas.

Por quê que a gente trabalha tentando resolver algumas questões e não em cima do parar de usar drogas, da abstinência? Porque talvez possibilitando o acesso aos direitos sociais básicos, ao reestabelecimento dos laços, ofertando cuidados em saúde em geral, a pessoa pode parar de usar por si só. Não é uma regra, trabalhamos com possibilidades.  Se a gente consegue restaurar o vínculo familiar, se a gente consegue ter acesso a moradia, acesso ao trabalho, já são conquistas que contribuem para a reinserção social. Essa pessoa pode diminuir o uso e o prejuízo sem a gente fazer “nada” especificamente sobre o uso. O mais difícil é essa questão trabalho e renda, porque são casos bem específicos, ainda mais agora que estamos em um contexto de desemprego com níveis talvez nunca antes vistos, tem o contexto de pandemia, contexto social e econômico que o país vive. Para eles não é diferente, para eles é até pior essa questão do acesso ao trabalho, realmente é um desafio que a gente tem muito grande. Mas tem pessoas que estão no mercado de trabalho ou que estão com trabalho autônomo, por isso é importante o acesso a moradia, educação, até mesmo a redução em si do uso de álcool e outras drogas, redução de danos.

REFERÊNCIA

MPDFT – Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Direitos Das Pessoas Em Situação De Rua. Brasília-DF, julho de 2018. 1ª Edição. 2018.