O Estrangeiro, escrito por Albert Camus, foi lançado em 1942 e configura-se como um dos livros que traça a ‘tríade do absurdo’, além de seu outro romance O mito de Sísifo (1941) e a peça de teatro Calígula (1944).
O absurdismo é uma filosofia fundamentada por Albert Camus que vê na vida a impossibilidade de um sentido. Assim, o mundo é absurdo uma vez que o significado das coisas é humanamente inacessível. Quando admitimos esse vazio, reconhecemos a liberdade que nos é dada por não estarmos presos a um sentido (ARAÚJO; SOUZA; RUFINO, 2018).
O indivíduo que se revolta, tendo para si a noção do absurdo da vida, pode então reconhecer que não existe uma resposta verdadeira (CAMUS, 2017) e seguir um caminho de liberdade sem procurar respostas em algo transcendental. A revolta, nesse sentido, corresponde ao agir frente à indiferença do mundo, num sentimento que “nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível” (CAMUS, 1999, p. 21). Já que apenas o sentimento do absurdo, “esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e o cenário” (CAMUS, 2017, p. 21), não promove transformações, é necessário que o indivíduo revolte-se e aja. Seu sofrimento pelo absurdo que antes era individual passa a ser coletivo, pela consciência de que o distanciamento de si mesmo e do mundo é um sentimento partilhado por todos (CAMUS, 1999).
É do sentimento de absurdo e da revolta que trata o livro O Estrangeiro, que conta a história de Meursault, um funcionário que leva uma vida sem ambições e que, certo dia, recebe um telegrama informando sobre a morte de sua mãe. Desde o primeiro momento, o narrador-personagem parece estar indiferente à tudo, observando os fatos se desenrolarem como se dele nada tivesse que ver. Além do distanciamento afetivo de tudo ao seu redor, parece estar confuso, sem poder dizer ao menos em que dia sua mãe morreu e que idade tinha ela até então.
Meursault vai até o asilo que sua mãe residia e passa o funeral e o enterro sem muito dialogar com quem lhe dirigia a palavra, conduzindo todo o momento com uma indiferença ímpar que parece incomodar quem lhe observa. Voltando à Argélia, descansa por horas e ao se levantar observa as pessoas na rua buscando suas motivações e destinos sem deles nada opinar, quando o crepúsculo o relembra que no dia seguinte a rotina voltará. Para isso, apenas aponta que “passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho e que, afinal, nada mudara.” (CAMUS, 2001, p. 27).
Meursault trata os assuntos da própria vida e das pessoas ao seu redor como coisas sem importância, ao que tudo responde que não espera absolutamente nada, que tudo tanto faz e que nada tem importância alguma. Tem, além disso, a ideia de que nunca se muda de vida e desde que não haja infelicidade, não existem motivos para que se almeje mudança. O sentir estagnado de Meursault aparenta que ele observa sua vida de fora, como se fosse um estrangeiro para si mesmo. Sua tentativa de reverter a opinião das pessoas a seu respeito logo é minada pela preguiça, o que mais uma vez demonstra sua apatia. Nesse sentido, é elogiável a narrativa escrita por Camus, nos fazendo adentrar tanto na realidade do personagem que também sentimos sua apatia.
Certa vez, seu vizinho Raymond o convida para passar um domingo na casa de praia de um amigo, ao que Meursault aceita e leva também sua companheira, Marie. O casal os recebem e tudo parece correr bem, até que em uma caminhada pela beira da praia, Raymond reconhece um homem do qual tem desavenças acompanhado de outro indivíduo, que parecem ter seguido eles até lá. O combinado era de que se houvesse briga, Meursault ficasse responsável para o caso de surgir outro, mas não contavam com o fato de um dos árabes estar munido de faca, que acerta Raymond antes que ele pudesse se defender. Depois do socorro prestado, Raymond insiste em voltar à praia e lá encontra novamente os árabes. Por dissuasão de Meursault, Raymond nada faz e os dois retornam à casa.
Durante todo esse período e o momento seguinte que mudaria a vida de Meursault, a presença impetuosa do sol e o vento que corria quente o deixava inquieto.
Todo este calor me apertava, opondo-se a meus passos. E cada vez que sentia o seu grande sopro quente no meu rosto, trincava os dentes, fechava os punhos nos bolsos das calças, retesava-me todo para triunfar sobre o sol e essa embriaguez opaca que ele despejava sobre mim. A cada espada de luz que jorrava da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um caco de vidro, meus maxilares se crispavam. Andei durante muito tempo. (CAMUS, 2001, p. 61)
Surge-lhe o desejo de ir ao encontro da fonte onde há pouco estivera com Raymond e estando lá reencontra o árabe. Meursault identifica a intensidade do sol com a mesma que fazia no enterro de sua mãe e, sem poder dizer porque motivo o fizera, além do “mar [que] trouxe um sopro espesso e ardente” (CAMUS, 2001, p. 63, adição nossa), aperta o gatilho da arma que trazia e mata o árabe. A partir de então, surge na narrativa uma sutil mudança na forma com que o personagem percebe as coisas, expresso pelo seu súbito identificar de ter destruído o equilíbrio do dia.
No tribunal, a acusação utilizava as situações mais triviais para imbuir frieza e premeditação ao crime de Meursault, como o fato dele não saber a idade da mãe ou ter ido ao cinema depois de sua morte. Para isso, outro sinal de ter-se atinado, o personagem diz: “Tudo de desenrolava sem a minha intervenção. Acertavam o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando, tinha vontade de interromper todo mundo e dizer: “Mas afinal quem é o acusado? É importante ser o acusado.” (CAMUS, 2001, p. 102). É importante ser alguém e Meursault parece trilhar os primeiros caminhos para reconhecer o absurdo, além de toda aquela acusação fundamentada não no crime em si, mas em coisas secundárias, para depois o absurdo atingir o mundo. Diante de todos os argumentos utilizados e da decisão do júri, Meursault deveria ser degolado em praça pública.
Preso e aguardando o resultado de seu recurso, o personagem começa a identificar a injustiça pela qual fora sentenciado e nas circunstâncias que tornavam ilegítimas sua acusação. Além do absurdismo trazer ao indivíduo um questionamento sobre as condições injustas a que está submetido, traz também a noção de que a vida vale a pena ser vivida. Meursault, durante a prisão, tenta racionalizar que, afinal, todos nós morreremos e que não fazia diferença a que tempo. Contudo, começa a se angustiar pelo tempo que não teria, um tempo interrompido por uma condição injusta que fora-lhe posta.
Na filosofia do absurdo, quando tomamos conta da impossibilidade de um sentido na vida, também nossa noção de morte é modificada, uma vez que não se agarra à conceitos transcendentais que nos tragam algum tipo de segurança, fazendo com que aceitemos a vida em seu absurdo, decidindo-nos por assim mesmo viver. É o “atingir o sentido na vida sem buscar esse sentido.” (SILVA, 2016). À respeito da natureza da morte, única certeza para todos, Meursault aponta que “achava isso normal, assim como compreendia muito bem que as pessoas me esquecessem depois da minha morte. Já não tinham nada a fazer comigo. Nem sequer podia dizer que me era penoso pensar nisso.” (CAMUS, 2001, p. 119). Isto é, o personagem dá-se conta do absurdo a que estava sendo submetido, visualiza a única certeza que tem em sua vida e ainda assim, apesar dessa consciência clara à respeito da morte, tem a esperança, febril e avassaladora, de que seu recurso seja aceito, de que seja ele um homem livre. Suas tentativas de racionalizar tudo para que não sofresse eram logo minadas por ele próprio em suas declarações de que “não se pode ser sempre racional.” (CAMUS, 2001, p. 114).
O momento da revolta de Meursault se dá numa conversa com um padre que periodicamente vai à sua cela e insiste que ele se arrependa, desejando a todo custo manter uma conversação com ele. Existe um momento em que o personagem já não consegue ouvir tudo aquilo com apatia e então explode, descrevendo o que sente como “qualquer coisa se partiu dentro de mim.” (CAMUS, 2001, p. 124).
Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia. (CAMUS, 2001, p. 124)
Estando ciente do absurdo da vida, Meursault tem o entendimento de nosso privilégio: o de estarmos vivos, independente de quem somos ou do que fazemos. Para isso, entende que sua nova consciência da morte permite que ele esteja apto a viver toda sua vida e que morrer, nesse sentido, é reviver.
Camus elabora nesse livro fundamentos básicos de sua filosofia do absurdo e com o passar da narrativa faz com que cresçamos com o personagem, passando de uma aparente apatia para o desespero pela chance de permanecer vivo. Quando Camus elaborou esses conceitos, apontou que só existia um problema filosófico realmente sério: “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida” (CAMUS, 2017, p.19). Apesar de todo processo para entender o absurdo da vida e independente do que aconteceu à Meursault no final, podemos dizer que ele soube a resposta para essa pergunta.
FICHA TÉCNICA
Nome do livro: O Estrangeiro
Editora: Record
Gênero: Romance
Autor: Albert Camus
Ano de lançamento: 1942
Idioma: Português
Ano: 2001
Páginas: 128
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Larissa Silva de; SOUZA, Vinicius Morais de; RUFINO, Emmanoel de Almeida. A poesia de Carlos Drummond de Andrade à luz do absurdismo de Albert Camus. Disponível em: <https://www.editorarealize.com.br/revistas/joinbr/trabalhos/TRABALHO_EV081_MD1_SA63_ID103_15092017201522.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2018.