Em 2018 defendi minha tese de doutorado, cuja questão central era compreender a interveniência do Google no modo corrente (senso comum) para conceituar, diagnosticar e tratar o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) – diagnóstico cada vez mais comum em crianças em idade escolar. Tratei o Google como um Oráculo, o Oráculo contemporâneo para o qual lançamos todas as nossas perguntas e questões, inclusive aquelas relacionadas a diagnósticos. Quem nunca tentou se autodiagnosticar ou diagnosticar alguém por meio dessa ferramenta digital, que atire a primeira pedra.
Uma das coisas que aprendi na minha pesquisa, estudando os mecanismos do maior buscador da WEB, é que ele é um Oráculo bastante peculiar. Além de suas respostas não virem na forma de enigmas a serem decifrados, como era o caso dos Oráculos antigos, seu algoritmo é capaz de interferir na pergunta que faremos a ele. Ou seja, o Google sabe a resposta para a sua pergunta, mas também sabe bastante sobre a pergunta que você fará. Outra peculiaridade deste Oráculo é que ele é capaz de monetizar toda informação que possui; sobre o que você procura, e sobre você. Seu sistema altamente inteligente é capaz de, a partir da sua pergunta e do modo como você navega, te oferecer uma mercadoria, mas também, te oferecer como mercadoria para outrem. Para o supercomputador que coordena e organiza o maior buscador da WEB (a preferência pelo Google chega a 91%), todo ponto de conexão é um ponto para lucrar.
Meu percurso de tese foi seguir as orientações do buscador como se eu quisesse me informar sobre como diagnosticar ou tratar alguém com os sintomas do TDAH. Logo de início percebi que teria que burlar o algoritmo, para que ele não soubesse que era eu fazendo a pesquisa, porque isso influenciaria o tipo de resposta que ele me daria. Afinal, a internet já sabia sobre mim e a minha tese. Eu nem precisava pesquisar por novas publicações sobre TDAH, por exemplo, a Amazon já me atualizava sempre que um novo livro sobre o tema era lançado.
Assim, simulando uma pesquisa leiga e despretensiosa sobre certos sintomas compatíveis com o TDAH, me interessava saber para onde os 10 primeiros links de busca me levariam. Vale destacar que cerca de 52% dos internautas só verificam a primeira página (os primeiros 10 links de uma busca) e apenas 10% olham os resultados depois da terceira página.
Convido vocês a adivinharem o primeiro local para o qual o Google me levou…
O primeiro resultado da busca se apresentava apenas como um local de informações técnico-científicas e orientações sobre TDAH, com indicação de testes rápidos para que você mesmo fizesse um diagnóstico inicial e encontrasse as formas de tratamento mais indicadas. Mas, olhando com mais cuidado, percebi que se tratava de um site ligado à NOVARTIS, laboratório fabricante da Ritalina: o medicamento mais vendido para o tratamento de TDAH. Ou seja, um usuário comum de internet, fazendo uma pesquisa simples, indicando apenas alguns sintomas, sem nem mesmo saber da existência do TDAH, será conduzido a obter informações no site do laboratório que produz o medicamento para tal transtorno. Então, se você me perguntar se eu acho que o mecanismo de busca do Google é capaz de aumentar o percentual de diagnósticos de TDAH e de uso de Ritalina, eu diria que sim.
O TDAH surgiu (ou foi inventado) há cerca de 20 anos, na época com raríssima incidência. Atualmente, pode acometer até 5% das crianças em idade escolar. Segundo dados do Ministério da Saúde de 2016, o Brasil se tornou o segundo mercado mundial no consumo de metilfenidato (nome genérico da Ritalina), com um aumento de consumo de 775% nos últimos 10 anos.
O horror capitalista
Em 1997, Viviane Forrester publicou O Horror Econômico. A autora previa um novo holocausto provocado pelo capitalismo globalizado, que terminaria por excluir da sua dinâmica, uma imensa massa de trabalhadores. O capitalismo que ela anunciava, se sustentaria nas grandes rodas financeiras, prescindindo de nossa função como trabalhadores e produtores de riquezas. Para a autora, na fase final do capitalismo, consumir seria a nossa última utilidade. O que Viviane não previu é que, depois da função de consumidores, ainda restaria para nós o lugar de objetos a serem consumidos.
O documentário da Netflix, “Dilema das Redes” (parêntese para comentar que aquela novelinha tosca no meio do filme é totalmente desnecessária), trata exatamente disso que eu descrevi na minha pesquisa. “Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”, resume todo o dilema que aparece na minha tese, o mesmo que o documentário expõe. Mas o curioso é que o depoimento da elite dos especialistas, profissionais e criadores das grandes empresas da internet, mostra que eles não perceberam o verdadeiro dilema, mesmo com ele ali, escancarado diante dos seus olhos, o dilema estrutural que permite, propicia e até incentiva que Facebook, Google, Instagram, ou quaisquer outras redes similares adquiram o poder de manipulação que têm: o capitalismo.
Obviamente que essas empresas são responsáveis pela forma como manipulam seus usuários a fim de monetizá-los, mas é importante que se diga que elas só funcionam desse modo por estarem elas mesmas, assim como nós todos, regidas pela lógica do lucro e da mercadoria. Ou seja, acabamos com Facebook ou paramos de utilizar o Google e virá outra rede com a mesma lógica, talvez mais especializada, sutil e perversa. Também é ingênuo pensar que sair das redes ou criar mecanismos individuais para resistir aos seus algoritmos será suficiente. A Internet e suas redes – e é disso, a meu ver, que se trata o documentário da Netflix – apenas escancarou uma coisa que quem critica o modelo capitalista já sabe há muito tempo: quando é permitido que o capitalismo aja segundo sua própria natureza, ele tende a acumulação, a entropia e a autofagia. Nenhuma ética que privilegie o cuidado dos seres humanos, dos demais seres vivos e do nosso Planeta, pode sobreviver enquanto a acumulação de riqueza e o lucro forem os soberanos.
Resumindo: dilema a ser enfrentado não são as redes sociais, é a forma como permitimos que o capitalismo as organize, regule e sugue dela seus lucros.
No caso da minha pesquisa, por exemplo, seria ingênuo pensar que a solução seria apenas combater o TDAH, convencendo mães e pais, educadores ou profissionais de saúde a resistirem ao diagnóstico, sem intervir na lógica perversa que transforma o sintoma e o sofrimento das pessoas em mercadoria. Se não for o TDAH, será outro diagnóstico, outro transtorno a jogar nossas crianças e jovens na máquina de moer capitalista.
Não é por acaso que a todo momento, no documentário, a compulsão pelas redes seja comparada a outros tipo de compulsão, como a por drogas. O uso de drogas é tão comum quanto a própria existência do ser humano, mas é nas sociedades capitalistas modernas que elas assumiram o caráter de consumo e de compulsão. Ou seja, há implicações subjetivas e políticas quando se passa a consumir uma coisa ao invés de usá-la. Os povos andinos, por exemplo, utilizam a folha de coca das mais diversas formas há mais de 8 mil anos, sem grandes problemas ou riscos, outra coisa bem diferente é o que se tornou a cocaína, que é a coca transformada em mercadoria capitalista. Assim sendo, queimar plantações de coca é uma falsa solução para a questão da violência urbana, do tráfico ou da dependência por cocaína.
A Internet ou suas redes é um falso dilema, que apenas encobre o verdadeiro.
O verdadeiro dilema é como fazer para barrar, subverter e superar o capitalismo.