Em Palmas durante esta 1ª. Semana Acadêmica de Psicologia do Ceulp/Ulbra, a profa. Dra Ana Magnólia Mendes, da UNB, fez a palestra de abertura do evento na última segunda, 22, sobre o tema “Discurso e Sujeito na Psicanálise: dimensões éticas e políticas”. Ana Magnólia analisou as dinâmicas contemporâneas, e como os novos arranjos do trabalho e sociais têm impactado o sujeito pós-moderno.
Professora da Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho e Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações – PSTO, Ana tem Estágio Sênior no Freudian-Lacanian Institute Après-Coup Psychoanalytic Association em parceria com a School of Visual Arts, New York (EUA). Também tem Estágio Pós-Doutorado no Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), Paris. Doutorado em Psicologia pela UnB e sanduíche na Universidade de Bath, Inglaterra, mestrado e graduação em Psicologia.
Abaixo, confira entrevista da profa. Dra. Ana Magnólia ao curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra e ao Coletivo (En)Cena.
(En)Cena: A senhora veio a Palmas falar do “Discurso e Sujeito na Psicanálise: dimensões éticas e políticas”. Na Psicologia, há abordagens teóricas que negam essa dimensão do sujeito, que está mais restrita ao arcabouço psicanalítico. Como abordou este tema?
Dra. Ana Magnólia – Muitas pessoas ainda confundem Psicologia com Psicanálise. Esta última apresenta-se como um contraponto às ideias hegemônicas e apresenta outro paradigma de ciência. Desta forma, é importante destacar que a categoria sujeito não é algo que se estude na Psicologia, inclusive em muitos lugares no mundo a Psicanálise não está associada à Psicologia. Ela estaria associada à Filosofia, Literatura ou a Arte. O objeto da Psicologia é o comportamento observável, que pode ser avaliado, medido e mensurado. Ou seja, a Psicologia se preocupa com as questões do Ego e lida com um indivíduo, não com um sujeito. Ela foca na forma como o indivíduo vê o mundo, e como o mundo vê o indivíduo. Sem tratar o sujeito como categoria de análise. E ainda acrescentaria que é por causa da negação do sujeito que estamos experimentando tantas crises e dilemas éticos e políticos na contemporaneidade. Porque o que ocorre, hoje, é uma tentativa de ‘des-subjetivar’ e desumanizar as pessoas. Na palestra mesmo, por exemplo, eu falei muito do discurso do capitalista em Lacan, quando nós vemos a negação do sofrimento como categoria ontológica do ser, ou mesmo a negação do próprio trabalho como categoria ontológica.
A negação destas dimensões – o sofrimento e o trabalho – leva à produção de uma subjetividade, ou à produção de um sujeito da compulsão à repetição, ou seja, não é um sujeito que produz saber. Trata-se de um sujeito automatizado, compulsivo, numa compulsividade vinculada ao consumismo, onde este sujeito se enreda neste discurso em busca da promessa da plenitude e do sucesso. Com isso, ele se engaja para confrontar o seu próprio desamparo e essa sua dimensão de ser um ser sofrente, sendo capturado por um discurso hegemônico ultraliberal, tornando-se assim um sujeito da repetição. Trata-se de um sujeito que não elabora, que não pensa sobre si e sobre o mundo, e principalmente se transformando num sujeito que não se afeta, que não sofre, quase que criando uma patologia da indiferença. Neste contexto, “eu sou indiferente ao outro”, e “o outro é indiferente a mim”, e hoje há uma espécie de banalização da violência, da opressão, das injustiças e do próprio sofrimento, fazendo com que este sujeito – que não é o sujeito da alteridade, pelo contrário – se entrega a compulsão à repetição.
Com isso, vem a tensão entre a verdade e o saber, e a própria Psicanálise aparece como uma forma subversiva de acessar o saber, que implica no sujeito da incompletude, inacabado, sujeito da falta… O vazio é quem faz a construção deste saber. No caso da Psicanálise, é o inconsciente que exerce este papel. Desta forma, a Psicanálise se contrapõe às verdades das ciências psicológicas. Em suma, há uma busca de verdade – em parte da Psicologia – e uma pré-concepção de sujeito e de realidade.
(En)Cena: Alguns autores dizem que isto está diretamente ligado ao liberalismo humanista ou mesmo ao liberalismo econômico. Para o Birman, este fenômeno acaba por resultar no aumento nos índices de violência. Poderia falar um pouco mais sobre isso?
Dra. Ana Magnólia – Na palestra eu até abordei sobre as psicopatologias vinculadas ao trabalho. E uma das patologias que estamos identificando é a normopatia, além das sociopatias, bem como a patologia da sobrecarga, a patologia da indiferença e da solidão. Todas levam a uma degradação dos laços sociais, das relações entre as pessoas e um enfraquecimento da própria ética. Isso pode levar a uma barbárie, seja através da violência moral seja através da violência física, e urbana.
Como o Joel Birman fala, a função do pai encontra-se em xeque, hoje. Com isso, eclode o funcionamento desmedido e desenfreado desta lógica de consumo. Além disso, há um movimento ultraliberal que claramente se contrapõe àquela ideia de sujeito que é dependente, que quando nasce precisa receber cuidados e que, portanto, desde sempre já se apresenta como um ser político e social. O ultraliberalismo, assim, está associado ao consumismo de produtos e serviços mas, também, ao consumo de pessoas.
Há, portanto, um consumo simbólico, moral, um consumo de valores. A meu ver – e compartilhando das ideias do Birman – o ultraliberalismo traz a promessa de uma completude que afasta o sujeito do desamparo (desamparo como condição ontológica do ser), o sujeito passa a ser indivíduo, responsável sozinho por tudo que escolhe e acontece em sua vida, escravo de si mesmo. Com isso, à medida que há uma promessa de que o consumismo traz a plenitude para o sujeito, este se engata, se enreda neste discurso de completar-se pelo ter, e não pelo ser. Então este sujeito entra num processo de servidão voluntária, atendendo à demanda deste grande outro. A servidão voluntária se caracteriza pela sobrevivência, segurança e poder, e o sujeito então permite que este outro “o domine” e goze com isso. Neste aspecto, volto novamente ao Joel Birman, quando numa passagem de um livro ele diz ‘goze do meu corpo, mas não me deixe no desamparo’. Este é o laço que se estabelece entre o sujeito que se angustia no seu desamparo, que é ontológico, e que ao mesmo tempo faz dele um ser desejante, um ser de produção de saber. Neste sentido, é importante as pessoas descobrirem que a angústia é produtiva, é boa…
(En)Cena: E do ponto de vista das psicopatologias?
Dra. Ana Magnólia – Isso tudo (a negação da dimensão do sujeito) vai gerar uma série de patologias. Além da violência, que de alguma maneira é endêmica, temos hoje a questão do suicídio, que muito embora sempre tenha espreitado a humanidade, atualmente assumiu dimensões sociais claramente evidentes, especialmente vinculado as formas de organização do trabalho e seus efeitos para a estabilidade e desenvolvimento das carreiras e ofícios.
Esse sujeito se depara com promessas discursivas frustradas, fora da dimensão do real, já que neste último aspecto estamos falando da ordem do inesperado, que escapa a qualquer possibilidade de controle. Mas veja que interessante, é justamente neste vazio que se produz saber. Então o sujeito, para se apartar da angústia e do vazio existencial, ele se liga nessas narrativas liberais de completude, acreditando que ele está no comando das suas escolhas. Mas por se tratar de um discurso e de uma promessa, ele forja na realidade um sujeito extremamente autocentrado na ideia de autodesempenho, de autogestão e de excelência. E neste processo, o sujeito é o único responsável pelo seu sucesso ou pelo seu fracasso, e aí entra a contradição da própria negação do sujeito. Porque estamos falando de uma promessa e de um discurso que, no fundo, forja um sujeito de desejos que, na realidade, é uma negação do sujeito de saber. Então este sujeito forjado pelo ultraliberalismo é, assim, um indivíduo. E, uma hora, este sujeito forjado irá fracassar, e a nossa esperança é que neste momento ele se dê conta de que pode ser um sujeito de produção de saber. O problema é que, muitas vezes, quando cai a ficha deste sujeito ele já está adoecido.
(En)Cena: Sobre isso, o Pondé diz que, atualmente, já estamos experimentando um fenômeno de ressentimento generalizado. É isso mesmo?
Dra. Ana Magnólia – No nosso projeto de Práticas e Clínicas no Trabalho no CAEP, clínica escola de psicologia na UnB, o que mais temos recebido são trabalhadores que adoeceram porque acreditaram nesta promessa (ultraliberal), forjaram desejos, se constituíram como sujeitos da compulsão à repetição, que é o padrão de exigência destes modelos de gestão. E como é uma promessa que nunca será atendida, este modelo assume um lugar da perversão. Então, neste panorama, é claro que vai eclodir o ressentimento. Até porque são poucos os que detém o dinheiro, e a promessa de que o sucesso da empresa é o sucesso do empregado, que ele tem que dar a vida pela empresa é, no fundo, uma promessa impossível de ser realizada.
O discurso atual do capitalista, do senhor, é vinculado ao consumo e, como eu já disse, forja um sujeito de desejos, porque produz o desejo de consumir, mas não produz a ética do desejo. É aí onde está o ponto central. É quando o sujeito, enfraquecido politicamente, entra na condição de indivíduo, que é inclusive o lugar que a psicologia coloca este sujeito. Então há uma individualização, uma responsabilização, uma vitimização, onde este sujeito fica fraco, frágil, facilmente combatível.
(En)Cena: Então há um risco de a Psicologia se alinhar a esta lógica?
Dra. Ana Magnólia – Eu sou psicóloga, mas desde sempre tenho um pé na Psicanálise. Mas até a Psicanálise, que é subversiva, tem que ficar atenta para não se ver fisgada, capturada por esse discurso hegemônico que busca o ajustamento, a acomodação e a funcionalidade. Hoje, o enfoque dos cuidados com a saúde é o que é feito de forma mais barata e em menor tempo. Então você vê psicólogos atendendo 40 pacientes em 16h, por convênio. Neste exemplo, o psicólogo pode até ainda não ter sido capturado para ser o sujeito da compulsão à repetição, mas ele já está sendo “empurrado” para se tornar este sujeito.
(En)Cena: E dentro de suas pesquisas ou atuações, qual a dimensão do assédio moral no ambiente de trabalho? Ele ficou mais rebuscado?
Dra. Ana Magnólia – Praticamente todos os pacientes que nós atendemos no serviço de Clínica do Trabalho foram vítimas de assédio moral. Nós lidamos, hoje, com modelos de gestão que são opressores. Então, evidentemente, muito do que existe como forma de ‘pressão para melhorar a performance’ no trabalho pode ser caracterizado como assédio. É importante destacar, também, que a forma como a psicologia clínica pode se estabelecer – na negação do sujeito e exaltação do indivíduo –, não considera o trabalho na escuta clínica. O trabalho tem que ser visto como uma categoria social fundamental, ontológica do ser, que vai expressar as dinâmicas ultraliberais vigentes que desencadeiam boa parte das angústias do sujeito. Então a psicologia clínica, a psicologia do trabalho, e um tipo da psicanálise, não reconhece o trabalho como categoria ontológica do sujeito. E o trabalho não pode ser retirado da constituição do sujeito.
Muitos pacientes que vão buscar o serviço da Clínica do Trabalho da UNB têm um bom salário, trabalham em órgãos do Judiciário e do Executivo, e procuram o serviço pela especialização em escuta do sofrimento no trabalho, ou seja, o trabalho é um significante fundamental para esses pacientes. As pessoas dizem: ‘aqui vocês estão entendendo o que eu estou vivendo em meu trabalho’. Então como psicóloga do trabalho, articulando psicanálise e crítica social, eu fico satisfeita com o trabalho que estamos fazendo lá em Brasília, não abro mão de criar diálogos com a psicanálise, a antropologia, a filosofia… Voltando ao exemplo que citei anteriormente, há muitos pacientes que chegam à Clínica do Trabalho se queixando de psicólogos que não conseguem escutar o assédio moral sofrido por seus pacientes. Geralmente usam argumentos como ‘faz parte da dinâmica do trabalho, você tem que se ajustar’. Então há toda uma normatização, uma tentativa de se ensinar a resiliência.
O foco, portanto, é sempre na tentativa de que o sujeito se adapte à situação. E, na verdade, o que as pessoas querem é serem minimamente respeitadas em seus direitos, querem ser protegidos desta captura desenfreada. Isso não é pedir demais. Então há todo um discurso dos gestores, dos próprios psicólogos que o tempo inteiro legitima o ultraliberalismo. Como consequência, temos um processo de desumanização, que não leva em conta o sujeito da incompletude, falibilidade, do vazio, da falta… E ainda por cima temos a dimensão da morte, algo que ainda não foi resolvido pela ciência, pelo paradigma da verdade e do saber absoluto.
(En)Cena: Sobre este assunto, alguns teóricos da pós-modernidade, como o Bauman, diz que na dinâmica liberal o que na verdade se busca é fazer comprimir a eternidade como utopia, que passa a ser desejada numa única vida, esta vida… Então, se antes as igrejas ofereciam a promessa de eternidade após a morte, hoje o mercado e o consumo tentam comprimir esta dinâmica, fazendo com que as pessoas queiram viver a eternidade em um dia, ou numa vida. O que a senhora pensa sobre isso?
Dra. Ana Magnólia – Isso é a vida fast food. Só que esta é mais uma promessa impossível de ser realizada. Hoje nós temos outra relação com o tempo – como bem pontua a Maria Rita Kehl no livro ‘O tempo e o cão’. Então temos uma aceleração generalizada, hoje, onde tudo é para ontem, tudo é para antes de ontem… E as pessoas estão cada vez mais sem tempo. No fundo, o que há é esta promessa de que você, nesta vida (nem sabemos se tem outra ou não), tem que fazer tudo rápido e muito, e descartar na mesma proporção, porque senão estará ‘perdendo tempo’. Isso é uma dinâmica cruel.
(En)Cena: Neste panorama, como fica a dimensão ética?
Dra. Ana Magnólia – A questão da ética e da política é problemática, é uma tensão. Política como sujeito em ação. Sobre a ética, o Lacan fala sobre o desejo. E neste caso, como é que o sujeito vai manter a ética do desejo? É uma questão complicada… Quando dizemos ‘não posso, não quero, não vou fazer determinada coisa’, as implicações disso – se considerarmos a ética do desejo no sentido de que ‘tenho limitações, agora não dá, não é possível – no ambiente de trabalho, em relação à discriminação, é algo do tipo: ‘você está fazendo corpo mole’, ‘você não está engajado’, ‘você não vestiu a camisa da empresa e não está comprometido’… Então, muitas vezes, o sujeito vai sendo forjado no seu desejo, nesta relação ultraliberal. Aí temos um enfraquecimento da ética. O sujeito da produção do saber dar lugar ao sujeito da compulsão à repetição. Nesse deslocamento a castração não opera, é o que o Joel Birman fala, opera o fracasso da função do pai, a derrocada da lei, e aí eclodem as patologias como a violência e o assédio moral.
(En)Cena: Como você acredita que vem sendo feita a formação dos profissionais de psicologia, hoje, no país?
Dra. Ana Magnólia – Tem cursos de Psicologia que já estão levando em conta todas estes paradigmas que acabei de falar. Eu acho que há muita diversidade da psicologia no Brasil. Claro que a psicologia americana, anglo-saxônica é hegemônica e é trazida para cá de forma mais intensa. As escolas francofônicas também influenciam a psicologia no Brasil. Temos então estas duas bases definindo, influenciando a forma de pensar.
Aqui no Brasil, em função dos investimentos em pós-graduação nos anos 60 e 70, os psicólogos pesquisadores alinhados à visão anglo-saxônica acabaram ganhando mais espaço. Mas também houve pesquisadores que beberam da fonte francofônica. Por isso a psicologia no Brasil enfrenta uma tensão muito grande, e acho que isso é ótimo. Não sei quem vai vencer a guerra (risos). Então, temos esta particularidade no Brasil, muita produção de saber e uma perspectiva sócio-histórica muito forte, uma psicologia política forte, e uma psicologia comportamental, da cognição e positiva também muito forte. Então em relação ao currículo, vai variar muito de universidade para universidade. Mas é importante destacar que a invasão do ultraliberalismo está sendo tão intensa, que os meus colegas da França, por exemplo, estão a dizer que a psicologia – e aí, como eles são psicanalistas, psicologia significa toda esta ideia positiva de homem e de ciência – tem invadido os currículos.
Eu diria que, hoje, temos uma espécie de retorno do Jedi, como outros retornos que estamos tendo no Brasil, que no meu ponto de vista são retrocessos. Pois estamos diante de um fortalecimento de discursos que negam o sujeito, que legitimam o indivíduo, isso tudo em detrimento de um debate em torno da ética e da política. Então eu diria que há uma crise na psicologia, que precisa de mais filosofia, de mais pesquisadores e psicólogos sujeitos da ação e produtor de saber do que compulsivos à repetição…