Perdido em Marte: há limites para a expansão humana?

Com sete indicações ao OSCAR:

Filme, Ator (Matt Damon), Roteiro Adaptado, Design de Produção, Efeitos Visuais,
Mixagem de Som e Edição de Som

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“Perdido em Marte” (The Martian) acaba de estrear nos cinemas, sob a direção de Ridley Scott (Prometheus – 2012) e baseado no livro homônimo de Andy Weir. No longa de 120 minutos, o astronauta Mark Watney (Matt Damon) é uma das primeiras pessoas a caminhar em Marte. Devido a complicações causadas por uma tempestade de poeira, Mark é deixado para trás por sua tripulação e pode se tornar a primeira pessoa a morrer no planeta. Com apenas poucos suprimentos, Mark conta com sua criatividade e inteligência, e embora as possibilidades e probabilidades estejam todas contra ele, Mark luta para sobreviver.

O filme foi lançado poucos dias depois de a NASA (a Agência Espacial Americana) anunciar que há água corrente em Marte, o que causou furor nas comunidades científica e política, e no público em geral, num movimento de redespertar do “encanto” pelo tema da colonização do planeta vermelho, cujo último ápice (de tal idealização) ocorreu no final dos anos 70.

A estória se desenrola a partir de uma corrida contra o tempo, na Terra e em Marte, para salvar a vida do astronauta. No arcabouço das discussões, encontra-se a interação entre o homem e a técnica, a política como mediadora de conflitos, o homem como ser que está em constante projeção para além das fronteiras (vontade de transcender?) e o trabalho como propulsor da criatividade. Pouco provável, portanto, assistir “Perdido em Marte” sem que não se estabeleça conexões com a obra “A condição humana”, da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975).

Desta forma, e levando-se por base parte do conceito teísta de que o homem não é um ser meramente natural, mas que se reveste de naturalidade para atuar nas interações fenomênicas, a tentativa de colonizar Marte e de, em alguma medida, “conquistar” o espaço (pelo desenvolvimento e domínio da técnica) é, assim, uma alternativa real para “libertar o homem de sua prisão na Terra”.A Terra, desta forma, é a própria expressão da natureza, e caberia ao homem superar esta dependência e firmar-se como um ser em constante autopoiese, devendo à técnica e ao trabalho (aspectos racionais) os frutos de sua evolução. Neste sentido, como se faz ver já desde o Iluminismo, a natureza (que, pelo viés do Mito e levando-se em conta a disputa de gênero, é comparada ao aspecto feminino) deve ser entendida e conquistada.

A Terra, então, antes mesmo de ser classificada como o “vale de lágrimas” (na concepção cristã que povoa o inconsciente), passa a ser vista como “prisão para o corpo do homem” a ser superada. Assim, em “A condição humana”, Hannah Arendt chega a comparar este “desejo” de fugir da“prisão” terrena com o objetivo de “cortar o último laço que faz do homem um filho da natureza”. Portanto, haveria também na Ciência uma forma de espiritualidade, por mais que parte de seus expoentes não admita.
Política

Algo interessante no filme é a mediação política presente na esteira da técnica e do avanço científico. A chegada a Marte, neste sentido, antes mesmo de ser uma conquista tecnológica se configura, também, como um progresso das trocas políticas (no filme, a NASA tem que utilizar-se de política para obter o apoio da opinião pública e, mais do que isso, para consolidar o até então inesperado apoio da agência espacial chinesa).

E não se pode falar em política sem falar em Ética e ponderação. Ou seja, “as certezas científicas” também podem ruir e, neste ínterim, é necessário saber o que se quer para o futuro da humanidade. É aí onde entra a questão central de “A condição humana”, cuja pergunta gira em torno de “o que é ser humano?”. No fundo e em alguma medida, “Perdido em Marte” também busca responder a esta questão.

Observa-se que ao perguntar “quem sou?”, Arendt não restringe a questão à “natureza” humana, mas à sua essência. Assim, a resposta à esta indagação é simplesmente: “és um homem – seja isso o que for”. Desta forma, segundo Arendt, somos seres humanos seja lá qual for a resposta sobre qual seja a nossa essência. Como costuma defender o professor de Filosofia Rainri Back, “a pergunta ‘quem somos?’ parece ser mais uma pergunta sobre ‘as condições da existência humana’”.

E dentro desta condição humana, onde Arendt apresenta a tríade “labor, obra e ação”, é o “labor [que] assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. O trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano”. Já a ação, “na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança” (história). Desta forma, há o reforço de que o labor, o trabalho e a ação tem “raízes na natalidade”, uma vez que “sua tarefa é produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados”.

Para Arendt, das três atividades, “a ação é a mais intimamente relacionada a condição humana da natalidade”, porque o recém-nascido “possui a capacidade de iniciar algo novo, de agir”. Assim, o homem é um fim em si mesmo. E, ao mesmo tempo, é um ser que constantemente se projeta para o futuro. No filme, o “recém-nascido” é o impulso constante pela perpetuação da própria vida e da vida da espécie.

No entanto, Arendt diz que “a natureza e o movimento cíclico que ela imprime, à força, a todas as coisas vivas, desconhecem o nascimento e a morte tais como a compreendemos. O nascimento e a morte de seres humanos não são ocorrências simples e naturais, mas referem-se a um mundo ao qual vêm e do qual partem indivíduos únicos, entidade singulares, impermutáveis e irrepetíveis”.Além disso, o “nascimento e a morte pressupõem um mundo que não está em constante movimento, mas cuja durabilidade e relativa permanência tornam possível o aparecimento e o desaparecimento”. São justamente estes dois últimos pontos (aparecimento e desaparecimento) que, (consciente ou inconscientemente) o homem procura superar.

Outro aspecto interessante do filme e que encontra eco em Arendt é que “a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens”. Isso depende de iniciativa, e não só disso, de uma “iniciativa que nenhum ser humano pode abster-se”. É desta forma que o astronauta Mark Watney consegue perpetuar a própria vida e ainda mantém o sonho de expansão da ação humana.

Para sobreviver, portanto, Mark deixa para trás uma série de coisas (materiais), mas não pode abrir mão do discurso e da ação. Sem estes aspectos, [a vida] “deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens”. Assim, por mais que a atuação do astronauta pareça algo isolado, “desplugado”, trata-se de uma ação que é socialmente plural porque, para ser efetivada, é necessário que se fale dela, no ato mesmo em que ela é executada, do contrário não haveria diferença entre os homens e os robôs (por isso que Mark, diligentemente, grava o seu diário de bordo). Destarte, “desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter revelador como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito”.

Por fim, antes mesmo de configurar-se como um filme de ação, aventura e ficção científica, como aponta o gênero, “Perdido em Marte” é uma obra essencialmente política. Ele demonstra uma faceta que está intrinsecamente ligada à espécie humana, que a diferencia e projeta-a, num movimento em que o particular (individual) é sempre sobrepujado pelo social, tendo como pano de fundo a superação das limitações naturais e a pulsão (de vida?) em lançar-se para a eternidade.“Perdido em Marte”, mesmo que não pareça, é também um filme que fala de espiritualidade, pois aborda o desejo humano pela transcendência. Nesta seara, parece que não há limites à expansão humana.

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016

CURIOSIDADES:

1 – Perdido em Marte é baseado no livro homônimo de Andy Weir.

2 – O escritor levou três anos para desenvolver a história no qual o filme é baseado. Segundo ele, a ideia surgiu quando passou a imaginar como seria uma missão tripulada a Marte e considerou todas as formas possíveis de tudo dar errado e como a tripulação agiria.

3 – Em 2013, a 20th Century Fox comprou os direitos para levar Perdido em Marte aos cinemas.

4 – O último filme de ficção científica dirigido por Ridley Scott foi Prometheus (2012).

5 – A atriz Jessica Chastain e o ator Matt Damon também atuaram juntos no filme de ficção científica Interestelar (2014), de Christopher Nolan. (Fonte: cinema10)

REFERÊNCIAS: 

ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense Universitária, 2014;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014;

Sinopse de “Perdido em Marte  – Acesso em 04/10/2015.

FICHA TÉCNICA

PERDIDO EM MARTE

Titulo original: The Martian
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Andy Weir, Drew Goddard

Estreia: 01/10/2015
Gênero: Aventura, Ação, Ficção Científica
Duração: 120 min.
Origem: Estados Unidos
Distribuidor: Fox Film do Brasil
Classificação: 12 anos
Ano: 2015

 

 

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.