Desde 1940 há registros de massacres nas escolas americanas. Segundo o jornal britânico “The guardian”, entre os anos de 1970 e 2013 houve 3.400 ataques em instituições escolares em 110 países, sendo mais frequente no Paquistão, Tailândia, Iraque e Afeganistão. Destaca-se que devido a quantidade de mortes em um curto espaço de tempo nestes fenômenos possuem a potência de marcar muitas famílias, cidades e países. Além disto, estes fatos impulsionam novos eventos, como apontado por Vieira, Mendes e Guimarães (2009).
Apesar dos massacres escolares serem um fenômeno recente no Brasil, há casos em São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Estas situações ocorridas impulsionaram a aprovação da legislação que prevê a oferta de serviços psicológicos nas escolas que estavam na Câmara dos deputados federais desde 2007. A Lei nº 13.935, aprovada em 11 de dezembro de 2019, pretende qualificar o processo ensino-aprendizagem, auxiliar na formação de professores, enfrentar as violências e entre outros. O filme “Precisamos falar sobre Kevin” retrata os massacres escolares, desta forma, este texto pretende-se analisar este fenômeno e os seus efeitos expressos na narrativa fílmica.
O filme “Precisamos falar sobre o Kevin”, lançado em 2012, baseado no livro de Lionel Shriver com o mesmo nome, conta a história de um adolescente que comete um massacre a partir da perspectiva de Eva, mãe de Kevin. Neste sentido, o enredo é relatado através de flashbacks do desenvolvimento infanto-juvenil do Kevin e da relação mãe-filho, o que evidencia a centralidade do massacre escolar e explica por meio dos flashbacks os fatores intervenientes, bem como, as consequências.
Outro fator a ser destacado na obra cinematográfica são as cores. A história foi gravada com alta presença da tonalidade vermelha com o intuito de gerar angústia no telespectador. O vermelho, é uma cor quente e aparenta ser utilizada como alerta de algo perigoso que está prestes a acontecer, como o massacre. Nota-se que as modulações do vermelho são expressas em três tipos de sentido. O filme inicia com o festival “La Tomantina”, que é uma festa tradicional da Espanha promovida por meio de uma guerra de tomates. Esta cena manifesta um sentido de vitalidade, o momento que Eva poderia desfrutar dos prazeres da vida, poder se divertir, viajar. Há um outro período expresso nos conflitos familiares que apresentam o vermelho como um despertar às situações influenciadoras do massacre. Em um terceiro momento, o vermelho é mostrado nas prateleiras de extratos de tomates, na tinta jogada na nova casa de Eva. Este período simboliza os efeitos das mortes dos jovens e como a mãe foi responsabilizada por este evento. Há uma cena em que a tinta vermelha fica nas mãos de Eva e ela tenta tirar de maneira agressiva podendo simbolizar o sangue dos jovens assassinados por Kevin e que não se dissociam mais de sua mãe.
Vieira, Mendes e Guimarães (2009) analisam eventos de massacres escolares e consideram alguns fatores que possam ter influenciado nestas situações, tais como: relação familiar, interações com a mídia, escola e outros aspectos sociais. Seguindo este modelo, neste texto será discutido a partir da relação mãe- filho, o processo de identificação do adolescente e os efeitos do massacre na cidade com a finalidade de evidenciar o antes, durante e depois do fenômeno.
Eva era uma mulher livre que não queria engravidar, no entanto, ao casar-se acabou cedendo às vontades e tentativas do marido em ter filhos. Kevin é o primeiro filho desta relação. Cabe aqui informar que os direitos sexuais são garantidos desde a IV Conferência Internacional da Mulher, em 1995, em Beijing, na China e reconhece que as mulheres podem decidir pela geração de filhos (Leite, 2012). Apesar disto, Zanello (2018) recorda que desde o início dos tempos, a maternidade é colocada como aptidão natural de toda mulher. Passando por uma construção social, houve a configuração do amor materno, e a partir do século XVIII a mulher é colocada na posição de procriar e amar seu filho espontaneamente acima de tudo, inclusive de si mesmo. A autora Valeska Zanello (2018) acredita que este processo histórico- social postula o termo “dispositivo materno” se referindo à capacidade da naturalização do cuidar nas mulheres, sendo direcionado às figuras masculinas. No filme expressa este cuidado ao cumprir com as expectativas do esposo em ter filhos e se esforça em cumprir o papel materno, ainda que se irrite com as atitudes do filho. Neste contexto, a maternidade de Eva demonstra a dificuldade das mulheres terem seus direitos garantidos e como isto interfere no relacionamento parental.
Na primeira infância de Kevin foi marcada pela mãe tentar se vincular e estimular o desenvolvimento do filho, no entanto, conseguia relaxar quando não escutava o som do choro da criança e se irritava a tal ponto de quebrar o braço do filho. Além disto, a mãe não trabalhava nos primeiros anos de vida do filho e não apresentava nenhum outro ambiente de apoio à família. Em resposta a esse contexto, o desenvolvimento do Kevin demonstrava estar atrasado e o pedido de maior atenção da mãe. Desta maneira, a mãe sentia-se frustrada em não conseguir ser quem esperava ser e nem cumprir com as expectativas direcionadas a ela. Em contrapartida, o filho sentia a necessidade de receber atenção positiva.
Na fase da adolescência de Kevin, a mãe havia voltado a trabalhar e lidava com os conflitos conjugais e o filho ficava mais isolado no quarto. Na nova condição da mãe, há duas cenas em que Eva tenta sair sozinha com o filho, sendo expressa a tentativa de criar intimidade com o filho, porém, Kevin expressava não mais precisar da mãe. A atitude expressa pelo adolescente demonstra um comportamento frequente nesta fase, que é a diferenciação dos pais, necessária para construção de identidade. Nos dois períodos do desenvolvimento citados evidenciam a falta de intimidade entre mãe e filho, sendo assim, a vinculação entre os dois são frágeis.
A mãe poderia ter falhado no desenvolvimento do amor materno, contudo, Eva cumpriu com o sentimento de culpa inerente à maternidade. Após a situação do massacre escolar, a mãe foi punida pela sociedade como a responsável pela tragédia. Desta maneira, Eva perdeu o seu emprego, tentava se esconder das mães das vítimas no supermercado, a sua casa foi pintada de vermelho como um ato de retaliação. Como afirma Zanello (2018), a culpa é o sintoma de que o dispositivo materno está funcionando e o ideal de maternidade foi introjetado. No caso de Eva, a maternidade foi internalizada pela relação com a sociedade.
Vieira, Mendes e Guimarães (2009) sinalizam que os pais dos adolescentes autores destes massacres são culpabilizados pela rigidez ou afrouxamento das regras, limites presentes na criação destes sujeitos. Os autores explicam as relações familiares como um dos fatores intervenientes, no entanto, não é o único determinante deste evento.
No período da infância, geralmente, as crianças se identificam com personagens fantasiosos. Kevin realiza este processo com o super-herói Robin Hood. Em uma cena do filme é possível ver a mãe tentando se aproximar de Kevin com a leitura da história “Robin Hood” mantendo-se este o único livro de sua estante. Kevin cresceu envolvido nessa história, e em sua adolescência ganha um arco e flecha do pai, onde pratica sua mira até se tornar um exímio arqueiro. O adolescente faz investimentos durante a vida com o intuito de reproduzir a história deste personagem.
Robin Hood é conhecido como herói dos pobres, pois em um dado momento, onde morava passou a explorar os vulneráveis através da cobrança de altos impostos. Desta maneira, o super-herói começou a cobrar impostos dos que passavam pela floresta, adquirindo ouro dos mais ricos e devolvendo parte a população, assim, salvava o seu povo. Em paralelo a isto, Kevin estudava em uma escola que estimulava o orgulho em ser os melhores. Isto é expresso em um dos cartazes, na porta do ginásio. Birman (2010) aponta que as sociedades capitalistas têm a autoestima regida pelo sucesso de serem sempre vencedores e os melhores em tudo o que fazem. A perseguição por esta conquista tem gerado diversos quadros de ansiedade. Kevin parecia desejar “salvar” os colegas de um mundo que se subjetiva a partir deste aspecto, como pode ser demonstrado na entrevista concedida pelo protagonista após o massacre no filme. Observa-se aqui uma concepção distorcida do heroísmo e da justiça.
Além disto, a identificação com o personagem de Robin Hood possibilitou que Kevin pudesse planejar o fenômeno. O adolescente escolhe a mesma arma utilizada pelo herói em suas façanhas. Ao término da chacina, Kevin agradece ao público como se fosse uma apresentação teatral. É importante apontar que o Robin Hood não pode ser responsabilizado por estes comportamentos violentos, mas esta identificação atua na vida do sujeito como uma expressão do sistema de crenças do adolescente. Logo, o autor do massacre não possuía relações interpessoais importantes e acreditava que através deste fato seria uma forma de marcar a sociedade.
Após o acontecimento do massacre escolar em uma cidade pequena, nota-se que a vivência desta situação não teve fim, após a prisão do adolescente. Os demais munícipes tiveram filhos mortos ou mutilados, ou seja, vivenciaram o que é denominado como luto coletivo. A citada experiência impacta a sociedade com um tudo (Torre, 2020). As consequências apontadas anteriormente refletem as fases do luto, em especial a fase da raiva. Segundo Torre (2020), nesta etapa as pessoas que sofrem o luto tendem a deslocar a raiva sob uma pessoa como responsável pelo ocorrido, neste caso, a mãe Eva. Por este motivo, é imprescindível a atuação da psicóloga escolar trabalhar os efeitos deste evento com a finalidade de interromper o ciclo da violência.
O filme “Precisamos falar sobre Kevin” destaca uma realidade crescente nas escolas brasileiras, demonstrando a importância da atuação de uma equipe interdisciplinar no ambiente escolar. Além disso, evidencia a importância de compreender este fenômeno a partir da multifatorialidade.
FICHA TÉCNICA DO FILME
Nome original: We Need Talk About Kevin..
Direção: Lynne Ramsay.
Elenco: Tilda Swinton, Ezra Miller, John C. Reilly Siobhan Fallon, Ursula Parker, Jasper Newell, Rock Duer, Ashley Gerasimovich, Erin Maya Darke, Lauren Fox.
Produção: Jennifer Fox, Luc Roeg, Robert Salerno.
Roteiro: Lynne Ramsay, Rory Kinnear.
Origem: Reino Unido/EUA.
Ano de produção: 2011.
Gênero: Drama.
Fotografia: Seamus McGarvey.
Trilha Sonora: Jonny Greenwood.
Duração: 110min.
Distribuidora: Paris Filmes.
Classificação: Livre.
Referências:
BRASÍLIA, LEI Nº 13.935, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2019.
BIRMAN, J. Muitas felicidades?! O imperativo de ser feliz na contemporaneidade. In: FREIRE FILHO, J. (Org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010, p. 27 – 47.
LEITE, Vanessa. A sexualidade adolescente a partir de percepções de formuladores de políticas públicas: refletindo o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos. Psicologia Clínica, vol. 24, n.1. Rio de Janeiro: 2012. p. 89 – 103
VIEIRA, Timoteo M; MENDES, Francisco C; GUIMARÃES, Leonardo C. De Columbine à Virgínia Tech: Reflexões com Base Empírica sobre um Fenômeno em Expansão. 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79722009000300021.
TORRE, Bianca Andrade Paz de la.O luto e a família.Vassouras: Universidade de Vassouras, 2020.
ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris. 2018.