Psicologia hospitalar frente à terminalidade da vida

Sobre a atuação da Psicologia Hospitalar Simonetti (2004, p. 15), caracteriza como “um campo de entendimento e tratamento dos aspectos psicológicos em torno do adoecimento”.

Este relato tem como objetivo descrever a vivência de estágio curricular em Psicologia no campo hospitalar durante o período de agosto de 2019 a março de 2020, do curso de graduação promovido pelo CEULP/ULBRA. O estágio foi realizado na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do Hospital Geral de Palmas-TO (HGP), supervisionado pelas Psicólogas Izabela Querido e Muriel Rodrigues. As vivências das estagiárias (Diane Karen, Karla Roberta e Thais Raianny) possibilitaram um olhar voltado aos processos de adoecimento e terminalidade bem como favorecer desdobramentos e conexões com a teoria vigente sobre o assunto. O livro central em discussão foi concebido pela autora Claudia Arantes (2016) denominado “A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver”.

Sobre a atuação da Psicologia Hospitalar Simonetti (2004, p. 15), caracteriza como “um campo de entendimento e tratamento dos aspectos psicológicos em torno do adoecimento”. Desse modo, o conteúdo surge a partir do momento em que o sujeito se esbarra com a doença. Circunstância que se manifesta carregada de particularidades, que incorporam o paciente, a família e a equipe de saúde.  No que se refere à duração dos atendimentos neste espaço a psicologia hospitalar configura-se por sua natureza breve, voltada ao aqui-agora onde emergem as demandas de caráter imediato. Devido a imprevisibilidade a permanência do paciente, óbito ou alta, troca de plantões, há necessidade de certa flexibilidade e estratégia. Por vezes a oportunidade de contato com paciente chega a ser um atendimento único. Sendo assim deve ser objetivo, ter início, meio e fim (SIMONETTI, 2004).

Meu primeiro dia de estágio começou em uma manhã de quinta-feira, um dia ensolarado, cheio de expectativas. Cheguei na portaria do hospital cumprimentando todos com um largo sorriso no rosto, vesti meu jaleco e me dirigi para a UCI com entusiasmo, nada escapava do meu olhar curioso naquele curto trajeto da portaria do hospital até a UCI. Assim que entrei na unidade, a Psicóloga Izabela Querido, dispondo de toda sua simpatia e carisma me cumprimentou e logo em seguida comunicou sobre o óbito ocorrido nas primeiras horas daquela manhã, e que iríamos realizar nossa primeira tarefa do dia “suporte a notícia de óbito”.

Fonte: encurtador.com.br/yCDK5

Nesse momento fiquei paralisada por segundos. Segundos esses em que vivenciei sensações ansiogênicas, estava visivelmente nervosa com o novo desafio, meus pensamentos foram tomados por dúvidas e incertezas, “o que falar para uma pessoa que acabou de perder seu ente?”, “e se eu errar?”. Enquanto eu esperava os familiares chegarem, fui até o leito onde o paciente se encontrava, ali o enfermeiro responsável prestava os seus últimos atendimento por aquele paciente já sem vida.

Foi só nesse momento, com o contato com a morte e o morrer que refleti sobre o desafio que é falar da vida por esse caminho. A morte é um tabu na nossa sociedade, Arantes (2016, p. 17) diz que no curso de medicina se aprende sobre muitas coisas, menos sobre mortalidade.  “Na faculdade não se fala sobre a morte, sobre como é morrer. Não se discute como cuidar de uma pessoa na fase final de doença grave e incurável”. Nesse sentido falta espaço de reflexão para discutir a finitude da vida não só nos cursos de graduação, como também nos espaços sociais que envolva toda comunidade.

Kübler-Ross (2017) diz que ao estudar o enfrentamento da morte entre povos e culturas arcaicas se tem a impressão que o fenômeno sempre foi rejeitado e até mesmo abominada. A psiquiatria explica a morte do ponto de vista que é negado pelo inconsciente, ou seja, o inconsciente nega o fim da vida quando se trata da própria finitude, e se o morrer for aceito, será remetida a algo ruim. Portanto, desde os tempos antigos a morte é ligada a fenômenos malignos, a um acontecimento detestável.

Fonte: encurtador.com.br/doyz5

Em seguida os familiares do paciente chegam a UCI, e com ela toda dor e sofrimento de encarar a morte. Participar e dá apoio ao comunicado de óbito é sempre uma tarefa difícil, necessita de um grande dispêndio de energia. A difícil tarefa de comunicado a notícias difíceis é papel do médico(a) responsável pelo paciente. Entretanto a função primordial para o profissional de saúde é preservar a vida, não estando preparados para lidar com a morte. Não é raro ouvir relatos que o profissional médico perdeu sua sensibilidade diante da morte por ser muito técnico, chegando a ter uma postura frio. Na UCI do Hospital Geral de Palmas observamos que a equipe médica, assim como os demais profissionais que ali trabalham exercem uma conduta acolhedora quando se fala de terminalidade da vida.

Arantes (2016, p. 38) relata que estar com uma pessoa em estado terminal “não é viver pela pessoa o que ela tem para viver”. Destaca dois sentimentos que nos difere das demais espécies, a empatia e a compaixão. Empatia é a capacidade psicológica de sentir o que o outro está sentindo se caso estivesse vivenciando a mesma situação que ela. O que pode ser um risco para o profissional de saúde, pois corre o risco de assumir a incapacidade de cuidar. A compaixão é diferente da empatia, ela permite entender o sofrimento do outro é buscar meios para o alívio da dor, é um estado emocional de piedade. “A empatia pode acabar, mas compaixão nunca tem fim. Na empatia, às vezes cega de si mesma, podemos ir em direção ao sofrimento do outro e nos esquecermos de nós. Na compaixão, para irmos ao encontro do outro, temos que saber quem somos e do que somos capazes”. O que Arantes transpassa é a importância de se ter compaixão e o risco de se colocar no lugar de sofrimento dos pacientes.

A(O) Psicóloga(o) no seu papel de suporte a notícia de óbito (comunicado de má notícia) é de facilitador entre a comunicação da equipe de saúde e os familiares do paciente, é sobretudo se fazer presente, compreender os fenômenos psicológicos, acolher, demonstrar interesse e respeito, fazer uso quando necessário de estratégias de intervenção em crise. “A(O) psicóloga(o) atuando junto à equipe deverá intervir sempre que identificar demandas emocionais de sofrimento e desadaptações, sem esperar ser solicitado […]” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019, p. 71)

Fonte: encurtador.com.br/cHJOY

A UCI é uma ala que recebe muitos pacientes em estado terminal, a maior parte dos pacientes são idosos acometidos por câncer, acidente vascular encefálico, traumatismo cranioencefálico, doenças pulmonares, cardiovasculares e degenerativas ou por alguma condição crônica de saúde. Me recordo quando um paciente recebia alta hospitalar, toda equipe banhava-se de felicidade, mas quando o mesmo paciente retornava dias depois, a equipe junto com os familiares expressava tristeza. Tristeza por ver todo o sofrimento e dor daquele mesmo paciente que dias antes estava estável, tristeza por estar acompanhando o fim do ciclo da vida, mas tendo a certeza que todos os esforços e recursos estão sendo aplicados para o paciente viver com qualidade de vida.

O ambiente hospitalar é ligado a tristeza, dor e sofrimento. A dor é uma experiência sensorial e/ou emocional vivenciada de forma única por cada sujeito, passando por mecanismos exclusivos de percepção, expressão e comportamento. O sofrimento é descrito como um estado de aflição que ameaça à integridade física, sendo absoluto e único para cada pessoa. Nessa perspectiva temos os Cuidados Paliativos que consiste em um conjunto de práticas de assistência de uma equipe multidisciplinar, que objetiva a qualidade de vida do paciente incurável e de seus familiares, diminuindo assim seu sofrimento (ARANTES, 2016).

A criação dessa especialidade médica titulada “Cuidados Paliativos” se deu pela busca da humanização para o atendimento em equipe de pacientes que se encontram sem possibilidade terapêutica de cura de uma determinada doença. Os Cuidados Paliativos no contexto da Psicologia se trata de uma modalidade na qual a(o) profissional dessa área, trabalha com o objetivo de propiciar uma melhor compreensão do paciente acerca da sua condição atual de vida, visando oferecer conforto para suas aflições e consequentemente aliviar as dores emocionais, dessa forma respeitando o seu tempo diante da finitude de seu ciclo vital (REZENDE; GOMES; MACHADO, 2014).

Uma das experiências marcantes no estágio diante da terminalidade, foi com a filha de uma paciente da UCI (chamaremos a paciente internada de Liz), que estava vivenciando seus momentos finais de vida. A equipe do hospital solicitou a realização de uma conferência a fim de obter assentimento do familiar responsável sobre a nova modalidade de cuidados (os paliativos). Visando também com essa ação estabelecer a confiança e uma parceria com a filha (que chamaremos aqui de Glória). Contudo ela se recusou, pois acreditava muito no reestabelecimento das condições vitais da mãe. Glória sempre quando a visitava, estimulava reações físicas, contato, comunicação com a paciente, ainda que estivesse sedada ou inconsciente. E da maneira dela, de forma surpreendente foi capaz de estabelecer uma comunicação com a mãe. O que motivava Gloria a acreditar em uma recuperação.

No entanto, apesar das tentativas de restabelecimento, o intenso cuidado depositado pela filha, e de toda equipe da UCI, Liz já não tinha mais perspectiva de cura para sua doença. E as medidas até então adotadas eram invasivas e apenas aumentavam sua dor. Assim foi solicitado uma conferência familiar com Gloria, para que autorizasse a inclusão de Liz na perceptiva de cuidados paliativos, pois muito ainda podia se fazer pela paciente, na perspectiva de oferecer uma maior qualidade de vida. O que mais uma vez foi recusado pela filha de Liz, possivelmente pelas crenças sobre o tipo de cuidado. Desse modo a Psicologia entrou não para confronto, apontando sua negação a morte, menos ainda para convencimento do melhor tipo de cuidado, mas como parceira. Afinal, a familiar compreendia bem o que estava acontecendo, entretanto escolheu enfrentar daquela forma. E a decisão foi respeitada até o momento em que sua mãe veio a falecer.

O dia-a-dia de cuidados na UCI é cansativa. Diariamente são realizados inúmeros procedimentos junto ao paciente, além de atividade administrativas e preenchimento de protocolos. Muito se pensa que o ambiente hospitalar é silencioso e tranquilo, entretanto a realidade é o oposto. A UCI é um ambiente estressor tanto para os profissionais quanto para os pacientes. O local é ruidoso devido o funcionamento dos equipamentos; o clima é gelado 24 horas; não há janelas, com isso os pacientes não conseguem se orientar quanto ao tempo, não sabendo se é dia ou noite; as visitas são controladas, sendo realizadas em horário pré-determinado com duração de uma hora, muitas vezes é necessário conceder visita estendida e autorizar um número maior de visitantes. Portanto a UCI é um local ansiogênico, onde a dor, o medo e a morte estão sempre presentes.

A experiencia de atuar no campo da Psicologia Hospitalar nos proporcionou vivenciar momentos de alegria, tristeza, medo, afeto, empatia, compaixão, surpresa e até mesmo momentos inusitados, onde tivemos que muitas vezes mediar conflitos entre equipe e familiar do paciente, ouvir palavras desagradáveis ao comunicar uma má notícia. Contudo, estabelecemos um vínculo afetivo com os pacientes, familiares e principalmente com a equipe de profissionais que nos acolheu como parte da família UCI.

E assim finalizamos nosso ciclo de estágio com o sentimento de pertencimento a ciência de codinome Psicologia, levando o desejo de atuar profissionalmente no campo hospitalar.

 

REFERÊNCIAS

ARANTES, Ana Cláudia. A morte é um dia que vale a pena viver. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2016.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (Brasil). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) nos serviços hospitalares do SUS. Conselho Federal de Psicologia, Conselhos Regionais de Psicologia e Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas .1. ed. Brasília-DF : CFP, 2019.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: O que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes. WWF Martins Fontes, 2017.

PESSINI, Léo. Humanização da dor e sofrimento humanos no contexto hospitalar. Bioética, Brasília, v. 10, n. 2, p. 51-72, 2002.

REZENDE, Laura Cristina Silva; GOMES, Cristina Sansoni; MACHADO, Maria Eugênia da Costa. A finitude da vida e o papel do psicólogo: perspectivas em cuidados paliativos. Revista Psicologia e Saúde, 2014.

REZENDE, Laura Cristina Silva; GOMES, Cristina Sansoni; MACHADO, Maria Eugênia da Costa. A finitude da vida e o papel do psicólogo: perspectivas em cuidados paliativos. Revista Psicologia e Saúde, 2014.