Relato de experiência – A Multidão de Enlutados

Há quase um ano e meio ouvimos falar em pandemia, doença, internação, intubação, remédios que não funcionam, carência de UTI, medo e morte. Muita morte.

É triste a assustador quando os fatos se apresentam em número de mortos, já passam de 500 mil no Brasil atual, número de leitos, fila de espera para internação, percentual de desempregados, quantitativo de pessoas entrado em faixas de risco alimentar.

Tudo isso é muito ruim. Dá aquela sensação de impotência, fim dos tempos, um apocalipse bíblico impossível de ignorar até para aqueles que como eu, não são tão devotos.

Mas eu preciso admitir que na minha experiencia de sofrimento durante a pandemia, números e imagens estão longe de ser o real da catástrofe. Pois por mais que eu tenha vivenciado um amplo catálogo de sintomas de ansiedade e pânico decorrentes da significação dada pelo meu imaginário acerca do acontecimento que me eram constantemente apresentados, ainda assim, era linguagem. Eram ideias, imagens, conceitos.

Fonte: encurtador.com.br/mMWYZ

Contudo, houve um dia em que o real se apresentou. Ele morreu em 28 de março de 2021, por consequências da COVID. Era médico, rico, inteligente, muito amado e cheio de predicados incríveis que ainda assim não o livraram do padecimento descrito tão pormenorizadamente nos canais de comunicação e internet.

Ele era meu tio desde 1991. Casou-se com a minha tia quando eu ainda era criança e, de perto, acompanhou todas as fases da minha vida. Ele me deu conselhos sobre escolha profissional, me levou de carro para o meu casamento, ajudou a escolher o nome da minha filha. E olha, que eu nem era filha, que eu não participava com frequência dos almoços de domingo, que podíamos passar um mês sem nos vermos mesmo morando muito perto.

Doeu muito percorrer junto à minha tia e primos os passos de tristeza, revolta, barganha e talvez aceitação. Foi especialmente intenso acompanhar as missas online. Eram momentos de estreita relação com o Grande Outro ou o SELF, no qual nossos egos feridos pela impossibilidade de resolver o problema que nos afligia encontrava um espaço de catarse.

Em seguida, vieram as etapas de falecimento, reconhecimento do corpo, velório (um estranho privilégio em tempos de pandemia), cremação e distribuição das cinzas no paraíso natural que ele escolheu descansar.

Fonte: encurtador.com.br/deS28

Não havia um momento do dia em que eu não pensasse nele, na morte dele e na família dele. O real da pandemia havia me arrebatado. Eu não conseguia produzir a contento no trabalho e na faculdade, não podia cuidar da minha família, parei no tempo. Minha libido estava comprometida com o ocorrido e não era possível fazer mais nada.

Neste momento, a fim de suportar o real, eu passei a pensar na pandemia apresentada pela linguagem, voltei aos números e imagens mais distantes de mim.

Considerando que nos últimos dias de março o Brasil batia a marca de 3.000 mortes por dia, fiz a seguinte conta simples: o censo do IBGE de 2016 aponta que uma família tem em média de 4,3 pessoas. Deste modo, se levarmos em conta as 3.000 mortes diárias, teríamos quase 10 mil pessoas enlutadas por dia, considerando apenas os familiares diretos. Esse número se torna assustador se pensar que hoje temos mais de 1milhão e 5mil pessoas enlutadas no Brasil.

Se ponderarmos uma expectativa, hipotética e genérica, de que o luto e as mitigações de funcionalidade que ele pode trazer durem cerca de dois anos, sopesando, para tanto, as especificidades de cada sujeito, temos indícios de uma multidão de pessoas em intenso sofrimento e disfuncionalidade.

Fonte: encurtador.com.br/tORU2

O recuo seguro para a pandemia imaginária lida a partir da linguagem, me fez avaliar a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas e institucionais (nas organizações) a fim de psicoeducar para o luto. Não se trata, é claro de ensinar a sofrer, isso seria um absurdo! Mas de avisar aos outros, chefes, colegas de trabalho, professores, amigos, estranhos que receberam uma fechada no trânsito, que aquele um que hoje incomoda pode estar na estatística nefasta dos que sofrem. É preciso educar para a empatia.

 Nesse ponto, penso no quanto pode ser rica a contribuição do conselho de psicologia, das faculdades de psicologia, das escolas e formação em psicanálise a fim de usar as mídias sociais (a linguagem) para fomentar a imaginação acerca do real da pandemia, não somente na perspectiva de reforçar os medos e as angústias necessárias à sobrevivência, mas também de colaborar, na medida do possível, para preparar a sociedade para receber e apoiar a multidão de enlutados.

Fonte: encurtador.com.br/dsMTV