Saúde mental da população negra e educação infantil: (En)Cena entrevista a psicóloga Talita Lima

Durante o período de 15 de agosto a 15 de setembro de 2020, o curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra será parte das instituições que prestam apoio à campanha “Saúde Mental da População Negra Importa!”, promovida pela Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadoras (es) (ANPSINEP). Mobilizado pelas demandas que envolvem a saúde mental e integridade da população negra na educação infantil, o portal (En)Cena entrevista a psicóloga Talita dos Anjos Lima.

Talita é graduada em Psicologia (Ceulp/Ulbra), pós-graduanda em Neuropsicologia, e atua como psicóloga educacional na Secretaria Municipal de Educação em Porto Nacional (TO), Defensora Popular e integrante da Articulação Nacional de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadores (ANPSINEP). Confira a entrevista a seguir.

Fonte: encurtador.com.br/lEKZ1

(En)Cena- Você considera que as políticas públicas abordam de maneira satisfatória o racismo no ambiente escolar? Em que perspectivas?

Talita Lima – No contexto atual, acredito não ser possível afirmar que temos políticas públicas que abordem de maneira satisfatória o racismo nos ambientes escolares. Tivemos alguns avanços, certamente, como a Lei 10.639/03 que estabelece a obrigatoriedade de se ensinar História e Cultura Afro-Brasileira, além de ter estabelecido o dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, e que foi, com certeza, um grande marco para a luta antirracista… depois a gente teve a Lei 11.645/08 que alterou a 10.639/03 porque acrescentou também a questão da cultura indígena. Essas legislações instituíram que as culturas indígenas e africanas devem constar no conteúdo programático, especialmente em Educação Artística, Literatura e História.

São avanços significativos, sem dúvida, mas para que eles se efetivem na prática, precisamos ter profissionais que reconheçam a importância e trabalhem isso de forma transversal, não apenas em eventos isolados no dia 20 de novembro, por exemplo. Porque, infelizmente, é isso que acontece, na maioria das vezes a questão é tratada de forma isolada, com ações do tipo: “Vamos agora falar sobre Povos Negros” ou “Vamos fazer um desfile de Beleza Negra no dia 20 de novembro”. E se a gente entende o racismo como estrutural, a gente compreende que ações assim espaçadas e aleatórias, não ser efetivas na luta contra o racismo.

E o racismo na escola se manifesta de forma óbvia, como por exemplo: as pessoas que hoje representam o fenômeno do “fracasso escolar” são os alunos negros. Meninos negros, mais especificamente falando. São eles que tem pior desempenho, são eles que mais abandonam a escola, eles são o estereótipo do “aluno-problema”. E encarar isso de forma individualista é um erro. Esse fenômeno fala de uma estrutura.  Então, a gente tem políticas que se propõem a combater o racismo no conteúdo programático, mas a gente ainda tem muito a fazer, tanto para que elas sejam colocadas em prática de forma legítima, quanto na construção de políticas que combatam o racismo nas relações que se estabelecem dento da escola.

Fonte: encurtador.com.br/afHZ0

(En)Cena – De que maneira você distingue que os psicólogos podem articular serviços e movimentos para promoção da saúde mental da população negra no contexto da educação infantil?

Talita Lima – Parto do pressuposto que psicologia não se faz isolada, então a gente sempre deve trabalhar numa perspectiva de coletividade e em rede. Quando se está trabalhando na educação pública, por exemplo, o contato com a rede de atenção básica à saúde e/ou assistência social é no mínimo obrigatório… essas redes vão ofertar alguns serviços básicos de garantias de direitos para aquela criança que está precisando.

A gente precisa saber quais os serviços ofertados no SUS e no SUAS, precisa saber os caminhos para serviços legais, como a defensoria pública por exemplo. Digo isso porque a criança negra que chega lá na escola e sofre racismo naquele ambiente, pode acreditar que muitas vezes ela vem de uma série de violências sistemáticas, e todas elas implicam diretamente na saúde mental dessas crianças e no aprendizado. É importante saber disso e estar atenta a isso. Essa articulação em rede é essencial. Para além dessa questão de conhecer os serviços de garantias de direitos, acho que a inserção em movimentos sociais não é necessariamente obrigatória, mas fazer parte de algum coletivo pode te ensinar a estar mais engajada na causa, te manter mais ativa, estudando, se inteirando.

Fonte: encurtador.com.br/cnqOX

(En)Cena – Você acredita que a prevenção do racismo no contexto da educação infantil tem ganhado a atenção da psicologia atualmente? Em que aspectos?

Talita Lima – Nós temos cada vez mais publicações, artigos, ações de psicólogos falando sobre racismo na educação, e como combatê-lo dentro da escola, na educação infantil, por exemplo. Ainda temos poucas ações no sentido de prevenção. Mas acredito que a Psicologia, assim como diversas outras áreas do conhecimento têm avançado (ainda que a lentos passos) nesse sentido. O livro “Psicologia Escolar: que fazer é esse?”, do Conselho Federal de Psicologia em 2016 aborda um pouco sobre isso, e também As Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica (2013) falam sobre a necessidade dessa dimensão política da nossa atuação. As Referências do CREPOP não citam diretamente as relações étnico-raciais, mas orientam a observar o contexto sócio-político, e observando o contexto sócio-político é impossível não enxergar o racismo como um dos fatores determinantes do aprendizado ou fracasso escolar.

(En)Cena – Como os psicólogos poderiam atuar frente ao bullying em decorrência do racismo nas escolas?

Talita Lima – Nós temos estudos e pesquisas, como por exemplo, do Anuário Brasileiro de Educação Básica 2019, que mostram que crianças negras tem maior dificuldade tanto no acesso, quanto permanência à escola e na qualidade de aprendizagem, em relação a crianças brancas. Esses resultados são influenciados por vários fatores, desde questões que vem de “fora da escola”, como situação de vulnerabilidade social que os alunos negros por vezes estão mais suscetíveis do que os brancos, até questões dentro da escola como injúria racial praticada por coleguinhas e até professores.

A psicóloga (ou o psicólogo) que trabalha nesta área vai ter que compreender como se dá o racismo a nível estrutural e institucional. Vai precisar propor que o currículo aborde de forma constante as questões raciais; vai precisar apontar o racismo, colocar nome nele, porque às vezes a gente trata apenas como “bullying”, o que dá uma dimensão muito ampla e meio vaga do fenômeno, né? Se uma criança chama a outra de “cabelo de bombril”, por exemplo, não é apenas bullying, é racismo.

As coisas tem o nome que tem, e nomear a situação faz com que ela se torne visível e portanto mais fácil (ou menos difícil) de ser combatida; vai precisar trabalhar em conjunto com a assistência social; vai ter que participar ativamente da construção do Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola para pontuar ali ações de promoção de saúde mental e de combate ao racismo;  vai precisar promover ações de enfrentamento ao racismo dentro da escola a partir de rodas de conversa, levar historinhas (narrativas) que tenham protagonistas negras(os), promover uma reeducação quando uma atitude de racismo acontecer, buscando a princípio um modelo não punitivista, mas para tentar compreender de onde veio aquela atitude (talvez é a reprodução de algo que a criança viu, por exemplo) e indicar novas formas de relacionar-se… Com criança é isso, eu acredito muito que vai pela via do afeto e da educação positiva. A psicóloga pode também montar formações para os professores sobre as questões étnico-raciais. As possibilidades são diversas, não falta campo nem demanda.