Uma mesma história contada várias vezes ainda pode ter impacto na vida das pessoas? A maneira como James Gunn, diretor de Superman (2025), reconta o arco do primeiro super-herói criado no mundo mostra que sim. Confesso que, quando criança, achava a dialética entre Clark Kent e Superman entediante: um herói praticamente invencível, cuja única fraqueza era uma pedra? Chato. E também parecia impossível que todas as pessoas de Metrópolis não conseguissem perceber que o colunista Kent era o Homem de Aço. Afinal, eram apenas os óculos que os diferenciavam!
Ao assistir o filme, todos os meus argumentos caíram por terra. Gunn não reinventa a fórmula clássica do personagem; ele a escancara, misturando-a com a realidade atual de um mundo desconectado – embora sempre online – e conflituoso, onde a esperança é fundamental e o ser humano é valorizado. Assim, torna-se entendível a grandeza do personagem e sua perpetuação através das décadas. Na versão cinematográfica anterior, a jornada de Clark Kent e seu alter ego Homem de Aço era sombria, pétrea, quase imutável. A imagem era a de um semideus pairando sobre os humanos, quase performático. Nesta versão, porém, o Superman ganha mais cor, textura, falhas e vulnerabilidades – que vão muito além de uma pedra verde fluorescente.
A figura de Clark Kent dentro do universo criado por James Gunn é quase que paradoxal por seu desejo de vivenciar a humanidade, mesmo tendo potencial de estar acima dela. Embora o filme mostre que uma de suas maiores fraquezas seja justamente sua humanidade – explicitada através do discurso do vilão Lex Luthor –, ela também se revela seu maior trunfo. Aqui, Clark erra, se estressa, deixa de lado a imagem de super-humano, questiona seus valores – sem abandoná-los –, é teimoso e, sobretudo, humano.
O que confere profundidade ao personagem não são seus poderes ilimitados, mas o desejo de se conectar com o mundo, sua paixão pela vida e pelas pessoas. A real batalha de Clark não está apenas em salvar a cidade, mas em permanecer fiel a si mesmo: cumprir seu papel como colunista, amar e cuidar de seus pais adotivos e construir sua própria identidade como cidadão e humano – não apenas seguir o destino traçado pelos pais biológicos, que desejavam que ele dominasse a Terra.
O fato de ser um semideus que almeja e ama a humanidade faz de Clark um reflexo das contradições humanas. Superman inspira e é símbolo de esperança, mas também luta por se sentir parte de algo, porque não há ninguém como ele. Por mais que passe por experiências humanas, quem pode dizer que viveu sua história ou compartilhou sua origem? Um deus tentando ser homem, enquanto tantos homens tentam ser deuses. Ele poderia assumir um papel divino, ser idolatrado, mas perderia aquilo que mais valoriza: a igualdade, a conexão com aqueles que admira.
Mas, afinal, qual é a importância de se sentir parte de algo? E por que um ser capaz de subjugar todos os outros anseia por isso? Segundo Miriam Debieux Rosa, professora titular do Instituto de Psicologia da USP, fazer parte de um grupo ou pertencer a um lugar nos dá um sentimento de importância, de integrar algo maior que nós mesmos.
A ruptura do pertencimento se revela quando a segunda parte da mensagem dos pais biológicos surge. Clark percebe que, ao contrário do que acreditava pela primeira mensagem – de que deveria servir e cuidar das pessoas da Terra –, seus pais na verdade esperavam que ele dominasse a humanidade. Nesse momento, ele percebe que não se identifica com os desejos de seus pais biológicos e, ao mesmo tempo, não pertence à Terra, pois os humanos o veem como um ser que veio para dominá-los. Clark Kent e Superman sentem-se, portanto, desconectados de tudo e de todos, vivendo um conflito profundo entre seu propósito e seu desejo de se integrar à humanidade.
A hipótese do pertencimento, proposta pelos psicólogos Roy F. Baumeister e Mark Leary, indica que o desejo por relações interpessoais é uma motivação humana fundamental. Durante o filme, vemos esse desejo em Clark: ele não apenas combate o vilão, mas também salva um esquilo, um cachorro e verifica se todos em um prédio atingido estão bem. Ele não é inatingível nem inacessível porque nutre sua humanidade e luta por ela, mesmo não sendo um terráqueo e mesmo sendo uma máquina de guerra. O discurso de Clark para Lex Luthor sintetiza isso:
“É aí que você sempre errou sobre mim, Lex. Eu sou tão humano quanto qualquer um! Eu amo! Eu… eu sinto medo! Eu acordo todas as manhãs e, mesmo sem saber o que fazer, coloco um pé na frente do outro e tento tomar as melhores decisões que consigo! Eu erro o tempo todo! Mas isso é ser humano! E essa é a minha maior força! E, um dia, eu espero, para o bem do mundo, que você entenda que também é a sua!”
Destarte, a necessidade de Clark em conectar-se com os outros, amar, estabelecer vínculos e aprender com seus erros o torna um verdadeiro espelho das contradições humanas: feito de aço, mas vulnerável; diferente de todos ao seu redor, mas desejoso de fazer parte de algo maior para se sentir valioso – assim como todos nós fomos ou ainda ansiamos ser. Superman nos mostra que, mesmo sendo imbatível, a força real está em sentir, errar e querer pertencer.
FICHA TÉCNICA

Título original: Superman
Ano de produção: 2025
Direção: James Gunn
Estreia no Brasil: 10 de julho de 2025
Duração: 129 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
Gênero: Ação, Ficção Científica.
REFERÊNCIAS:
BAUMEISTER, Roy F.; LEARY, Mark R. A necessidade de pertencer: desejo por vínculos interpessoais como uma motivação humana fundamental. Psychological Bulletin, Washington, v. 117, n. 3, p. 497-529, 1995.
Jornal da USP. Sentimento de pertencimento é a necessidade de manter relações estáveis e de moldar o comportamento. Rádio USP, 17 out. 2022. Disponível em: jornal.usp.br/radio-usp/sentimento-de-pertencimento-e-a-necessidade-de-manter-relacoes-estaveis-e-de-moldar-o-comportamento/. Acesso em: 25 agost 2025.
