“As sufragistas” à luz da análise de contingências

A busca pela compreensão da conduta humana pode a princípio ser resumida no seguinte questionamento: “O que a pessoa fez?”, assim se identifica o comportamento. Posteriormente, poderíamos questionar “O que aconteceu então?”, assim são identificadas as consequências do comportamento. (SIDMAN, 1995, p. 104-105 apud MOREIRA; MEDEIROS, 2007, p. 145). Os questionamentos supracitados resumem muito bem o que se conhece como “análise de contingências”.

A versão online do Dicionário Michaelis explica que contingência é “caráter do que é contingente”. Por sua vez, “contingente” é descrito como algo “que pode, ou não, suceder ou existir, duvidoso, eventual, incerto. Já no paradigma behaviorista, contingência é a relação que há entre o comportamento emitido e a consequência dele (MORÁN, 2010). Shimabukuro (2010) escreve que contingência se refere a uma relação de dependência entre eventos ambientais ou entre eventos comportamentais e ambientais, e apresenta a concepção de Sousa (2001) segundo a qual “o enunciado de uma contingência é feito em forma de afirmações do tipo “Se… então…”. A cláusula “se” pode especificar algum aspecto do comportamento ou do ambiente, enquanto “então” denota o evento ambiental consequente.

Compete, por fim, trazer à tona a análise funcional do comportamento, que nada mais é do que a busca dos determinantes da ocorrência do comportamento. Os eixos fundamentais de tal análise são os paradigmas respondente e, principalmente, o operante. Sob uma perspectiva behaviorista radical, os determinantes do comportamento estão na interação do organismo com o meio. “Skinner defende a existência de três níveis de causalidade do comportamento, que, em maior ou menor medida, estarão sempre atuando em confluência na ocorrência ou não de uma resposta de um comportamento” (MOREIRA; MEDEIROS, 2007, p. 146).

São eles: a) Filogênese – a nossa interação com o meio advém da evolução de nossa espécie. Nossas características fisiológicas e alguns traços comportamentais (comportamentos reflexos e padrões fixos de ação) são determinados pela filogênese. […] b) Ontogênese individual – esse nível de análise aborda a modificação do comportamento pela interação direta com o meio durante a vida do organismo. Em outras palavras, trata-se da aprendizagem por experiências individuais com o meio. […] Skinner defende que esse seria o nível de análise ao qual a psicologia deveria concentrar os seus esforços, uma vez que são os determinantes do comportamento mais relacionados à subjetividade e à individualidade de cada ser. [..] c) Ontogênese Sociocultural – por fim, o nosso comportamento será determinado por variáveis grupais, como moda, estilo de vida, preconceitos, valores etc. Nosso contato com a cultura estabelecerá a função reforçadora ou aversiva da maioria dos eventos. (MOREIRA; MEDEIROS, 2017, p. 146).

Para Skinner, se insistirmos em falar de “causa” na psicologia, devemos levar em conta esses três níveis de análise. Além disso, deve ser enfatizada a relação de troca do organismo com o ambiente, rejeitando a ideia de eventos mentais hipotéticos como causa de comportamento. Assim sendo, para explicar, predizer e controlar o comportamento, é preciso uma análise funcional – ou seja, descobrir qual é a função das respostas observadas – buscando no ambiente externo e interno os determinantes do comportamento.

Fonte: encurtador.com.br/orsJX

 

Breve discussão histórica

As mulheres burguesas passaram a se organizar em torno da luta pelo reconhecimento do direito ao sufrágio, ou voto, o que explica o fato de serem chamadas de “sufragistas”, na segunda metade do século XIX. As sufragistas, personagens centrais no filme ao qual este trabalho se presta a analisar, não somente lutaram pelos direitos políticos de todas as mulheres, mas também pela igualdade em outros aspectos e campos. Sua prioridade ao voto era devido ao fato de que, uma vez tendo conseguido esse direito, poderiam ascender aos parlamentos e assim mudar as leis e instituições. Na Europa, o movimento sufragista britânico foi o mais ativo. Em meados do início do século XIX, começou uma larga série de iniciativas políticas a favor das mulheres. No entanto, os esforços para convencer o Parlamento inglês sobre a legitimidade de tais direitos provocavam zombaria e indiferença, em campanhas midiáticas cujos conteúdos depreciavam o movimento sufragista.

Como consequência, o movimento passou a desenvolver ações mais radicais. Em 1913, Emmeline Pankhurst fundou, em Londres, a “União Social e Política das Mulheres”, cujas militantes protagonizaram uma infinidade de ações com grande repercussão midiática, tais como protestos, manifestações e greves de fome. Como resultado, a repressão foi severa com elas; a própria Pankhurst foi detida e condenada a três anos de cadeia e trabalhos forçados, sendo acusada de “atividades contrárias à segurança e estabilidade do povo inglês”.

Nos Estados Unidos, o movimento sufragista esteve inicialmente mui relacionado com o movimento abolicionista, um grande número de mulheres uniu suas forças para combater a escravidão. As ideias utilizadas para reivindicar a igualdade entre os sexos eram baseadas na lei natural como fonte de direitos para toda a espécie humana, na razão e ao bom sentido de humanidade. A Primeira Guerra Mundial foi fator mui importante na história do processo de emancipação feminina, já que os governos precisavam da entrada de mulheres nas fábricas frente a evidente escassez de mão de obra masculina. Terminada a guerra, as mulheres desenvolveram uma clara consciência de sua importância na sociedade. O caminho para conseguir o voto estava se abrindo no Reino Unido, ainda que na Nova Zelândia isto já houvera ocorrido em 1893, bem como em 1902 na Austrália. Em 1918 as mulheres britânicas maiores de 30 anos enfim podiam votar, em todo caso, só em 1928 à todas, em idade legal tal qual em relação aos homens, foi concedido o direito ao sufrágio.

No Brasil, as mulheres com renda podiam votar desde 1932. Em 1934, apenas aquelas que tinham empregos remunerados. Em 1946, o direito e a obrigação se estenderam a todas as mulheres. Em 1948, a ONU incluiu, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que os governos devem realizar eleições periódicas com voto secreto e igualdade de gênero.

Fonte: encurtador.com.br/sBS47

Análise de Contingências

O foco desta análise é o comportamento observável da personagem central do filme histórico “As sufragistas”, de nome Maud Watts. Nortearão tal análise os três níveis de causalidade do comportamento explanados por Moreira e Medeiros (2007, p. 146), os quais são “filogênese”, “ontogênese individual” e “ontogênese sociocultural”.

Levando em conta a filogênese, ou evolução da espécie humana, vê-se em Maud Watts, bem como também nas demais mulheres, a luta contra o aversivo e por uma situação mais confortável à sua existência. É uma característica peculiar à raça humana em seu desenvolvimento ao longo dos séculos, lutar pela sobrevivência e, à medida que é reforçada nesse empenho, evoluir, uma contingência que não seria possível caso a espécie humana não tivesse um necessário nível de maturação biológica. É importante frisar que a asserção “não seria possível” não implica que é a filogênese que causa comportamentos, mas que ela, como substrato biológico, “abre caminho” para que comportamentos ocorram.

A astúcia das mulheres, o pensamento estratégico contra o aversivo, as reações aos castigos físicos, a incansável luta ideológica ou, claro, as respostas mais básicas como as emocionais (por exemplo, raiva e choro), na verdade todo seu repertório comportamental não compreendia características por elas obtidas de uma hora para outra, mas fruto de uma longa história evolutiva vivenciada por seus antepassados, história cuja evolução se consistiu na progressiva adaptação ao meio, ou influência sobre este último, e na inteligência mais acurada cuja maior complexidade foi permitida pelo desenvolvimento biológico da espécie.

Resumidamente, a filogenia, muito mais que o “primeiro” nível de causalidade do comportamento do indivíduo, é o complexo substrato que torna possível, senão todos os aspectos observáveis, grande parte do repertório comportamental – o qual é expresso nos comportamentos respondentes e operantes – possibilitando tais comportamentos por toda uma vida.

O segundo nível de causalidade do comportamento é a ontogênese individual (MOREIRA; MEDEIROS, 2007, p. 146). O foco se restringe ao aspecto mais peculiar à personagem central, sua interação direta com o meio no qual estava inserida e a experiência decorrida desta interação, é neste nível de análise que estão presentes as determinantes mais ligadas à individualidade e subjetividade de um indivíduo. Para melhor compreensão, algumas contingências do filme, a partir de agora, serão enunciadas em afirmações do tipo “Se… Então…”.

Fonte: encurtador.com.br/fpCW9

Analisando o contexto familiar de Maud Watts, sexo feminino, 24 anos de idade, percebe-se que ela vive com seu marido e o filho pequeno. Subtende-se que a personagem central tem pouca escolarização. Se ela tem pouca escolaridade, então é explicado, não única e suficientemente, sua dependência em relação ao marido. Além disso, é evidenciada a interligação da ontogênese individual com a ontogênese sociocultural quando se considera o gênero da personagem como outro fator de sua dependência em relação ao homem, um comportamento submisso determinado por valores da época. Além disso, a opressão do Estado e sociedade sobre praticamente todos os aspectos da vida das mulheres também é fator importante da restrição do desenvolvimento intelectual e pessoal delas, explicando assim grande parte de seu repertório comportamental.

Se a submissão ao marido traz, em alguma medida, segurança à personagem principal, então ela segue em tal comportamento de submissão, reforçada pelo sustento financeiro do esposo, visto que o da própria é insuficiente, é reforçada pelo prazer que o filho lhe proporciona, assim seguindo embora no outro lado da moeda estivessem os estímulos aversivos, os quais consistiam nos abusos físicos e sexuais, os quais são mais evidentes na lavanderia onde a personagem trabalha.

A ontogênese sociocultural é o outro nível de causalidade do comportamento, muito bem explicitado no filme, sendo na verdade o nível principal da história, visto que se trata de um fenômeno social que envolveu várias mulheres unidas por um propósito. O movimento sufragista já vinha ganhando força e atenção por toda a Europa, convertendo-se em potente fator de comportamentos que caracterizaram a causa feminista.  No filme em questão, o primeiro contato da personagem central com as sufragistas ocorre acidentalmente enquanto ela levava uma encomenda. Ali ela viu mulheres depredarem lojas, e entre as tais estava uma colega de trabalho de Maud, exigindo direito de voto às mulheres. Esse primeiro encontro, embora indireto e substancial, desperta a curiosidade da personagem principal que pouco a pouco é envolvida pelo movimento, em virtude da influência direta de sua companheira de trabalho.

O comportamento feminista da personagem central toma proporções maiores a partir do momento em que ela vai ao parlamento inglês para assistir a um testemunho pretendido a conquistar a reinvindicação das sufragistas, no entanto, é a própria Maud que o apresenta no lugar de quem deveria fazer isso, tornando-se, por um momento, porta-voz da classe feminina. Por um lado, a personagem recebe reforço positivo por parte das sufragistas, no entanto, o contrário ocorre por parte do marido, que, num caráter um tanto punitivo, a ridiculariza por ela agora procurar exercer seus direitos.

A despeito do esforço das mulheres, as autoridades britânicas rejeitam a ideia de conceder às reivindicadoras o direito ao sufrágio, isso desencadeia nelas fortes respostas emocionais, logo a polícia reage com repressão violentíssima e algumas sufragistas são presas. A provisória perda da liberdade é para Maud uma dura punição negativa que, no entanto, não a afasta da causa sufragista, pelo contrário, parece reforçá-la nesse quesito, embora isso implique no descrédito e censura recebidos pelo marido e pela vizinhança.  – A persistência das mulheres é devido ao aprendizado de que elas estavam sendo ouvidas, embora ainda não atendidas, logo, seu ativismo vinha sendo funcional tendo em vista seu objetivo. – Tendo saído da prisão, Maud está evidentemente apegada ao feminismo, participando das estratégias e reuniões do movimento, e novamente é detida com outras mulheres. Por conseguinte, é expulsa de casa pelo marido. Agora sustentada pelas companheiras, Maud entra em uma fase mais aversiva, contudo, segue firme nos ideais feministas.

À essa altura percebe-se que o comportamento da personagem já não é o mesmo; Maud não mais aceita submeter-se a situações humilhantes e abusivas, chegando ao ponto de queimar a mão do seu chefe com um ferro de passar roupa. Em virtude disso, é detida novamente. – A detenção já não lhe perturba tanto quanto no princípio, a personagem habituou-se a tal estímulo aversivo. – Recusando-se a cooperar com as autoridades contra o movimento, a personagem mostra-se de fato interligada à causa das mulheres, já com seu comportamento mudado drasticamente, apesar das implicações aversivas que tal mudança trouxe, ínfimas aos olhos da personagem se comparadas com os reforços gradualmente obtidos na luta por uma vida melhor.

Discussão

Fica evidente no filme “As Sufragistas” o impacto do ambiente sobre a vida dos indivíduos, desde o grau mais subjetivo de cada pessoa até os aspectos mais notáveis de uma sociedade em determinado tempo. Levando em conta a personagem central, vemos como seu gênero biológico, sua vida privada e familiar são importantes na manutenção de hierarquias e valores de sua época. É também evidente a influência de um contingente mais amplo, o social, sobre o comportamento da personagem, a ponto de mudá-lo drasticamente. Além disso, percebe-se como a personagem habitua-se às variações do ambiente, a despeito dos estímulos e punições aversivos, bem como é reforçada pelos reforços positivos, as consequências agradáveis que aumentam a possibilidade de a personagem central seguir na luta pelos objetivos de sua classe.

Fonte: encurtador.com.br/fyNO4

Referências:

MORÁN, Luis Javier Rodríguez. Contigencias de refuerzo vs Fuerza de voluntad. Disponível em: < http://javierconductismo.blogspot.com/2010/07/contingencias-de-refuerzo-o-fuerza-de.html>. Acesso em 21 outubro 2018.

MOREIRA, Márcio Borges; MEDEIROS, Carlos Augusto de. Princípios Básicos de Análise do Comportamento. Porto Alegre: Artmed, 2007, 224 p.

SHIMABUKURO, Fabiana Harumi. O que são Contingências. Disponível em: < http://wwwfabishimabukuro.blogspot.com/2010/06/o-que-sao-contingencias.html> Acesso em 21 outubro 2018.

Artigo originalmente publicado no site: <https://comunidadepsi.com/>.