Profa. Dra. Fernanda Maria Macahiba Massagardi – fernanda.macahiba@mail.uft.edu.br
Cozinhar é o mais privado e arriscado ato.
No alimento se coloca ternura ou ódio.
Na panela se verte tempero ou veneno.
[…]
Cozinhar não é serviço.
Cozinhar é um modo de amar os outros.
Mia Couto
Convido o leitor para uma visita dominical à cozinha italiana de minha infância, na casa de minha avó materna, de onde brotavam travessas fumegantes de macarrão ao molho bolonhesa e legítimos gnhoccis (popularmente conhecidos no Brasil como “nhoques”), decorados com o mármore verde das levemente amargas escarolas.
Sequer recordo quantos anos tinha quando presenciei o milagre da feitura das massas. A beleza da modelagem e corte das formas, a organização e enfileiramento sobre a bancada enfarinhada. E a surpresa das que, ao contato com a água fervente, só erguiam-se após o mergulho profundo realizado na panela, sendo recolhidas e salvas pela escumadeira. O aroma, o suco dos tomates orgânicos da horta e o som das cantilenas italianas na vitrola e na voz de minha avó acompanhavam as toalhas de mesa que, em quadrados de vermelho e branco, remetiam ao passado da “nostra” Itália. O movimento das mãos, vozes altas e a generosidade das porções consagravam àquele dia da semana uma verdadeira experiência estética ancestral. À mesa adultos, crianças e amigos experimentavam o verdadeiro banquete, fruto do trabalho de mãos fortes, de dedos longos e ágeis de uma alma que valorizava o encontro familiar.
Os anos passaram e aprendi as cantilenas e receitas. Ingressei no mundo dos adultos e um dia minha avó, após muitos enfrentamentos dolorosos que a vida trouxe, me disse:
– Eu costumava cantar o tempo todo, sentia tanta alegria! Mas a música foi acabando dentro de mim. E hoje só há o silêncio. Não consigo mais cantar.
Naquela época a narrativa soou triste e, por que não dizer poética, em sua dor. Minha avó diante de mim era a figura da “Pietá” de Michelangelo que, assim como ela, teve um filho morto nos braços, minha mãe. Eu não tinha conhecimento suficiente para elaborar com maior profundidade a confissão, que emergia de um mergulho de dor naquela alma.
Não há racionalidade que permita compreender um sentimento.
Entretanto, a empatia e o sentir possibilitam uma imersão em afetos. Há um outro veículo de poder imensurável chamado Arte, que pode tocar e curar o coração dos homens. A Música, as Artes Visuais, da Cena, a Dança, a Literatura etc., são linguagens que permitem o acesso às dimensões da realidade que só podem ser alcançadas pela Arte.
Explico. O dicionário define o que é saudade e todos compreendem a descrição. Entretanto, quando Chico Buarque e Zizi Possi cantam que “saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”, eles elevam a um grau máximo o sentimento, pela poesia. Assim, é perceptível o quanto a dicionarização minimiza e racionaliza definições, quando nos referimos ao campo do emocional. Não obstante, é inegável o alcance da Arte como veículo de mobilização do sagrado, do profundo, daquilo que significa a existência do homem e desperta a alma, humanizando.
Um exemplo é a mitologia. Cada existência dialoga com um ou mais mitos. Este foi um dos maiores assombros que a obra de Jung[1] instigou em meu processo de autoconhecimento e de conhecimento do outro.
Enquanto educadora da área de Arte, recebo habitualmente um repertório considerável de histórias de meus alunos, seja oralmente, nos silêncios ou expressões artísticas. Todo professor, de certa forma, é um ouvinte contumaz da existência humana. A partir do outro me insiro nas adversidades, nos sonhos, nas possibilidades e poéticas. Visito o passado, procuro diferentes perspectivas do presente e avento futuros. Não há certezas. Mas tangenciar possíveis na esfera do humano e dos diferentes meios culturais, sociais e pessoais, em sentidos “sentidos”, é imenso e congrega espaços solidários, coletivos e de beleza.
Estudo as diferentes mitologias e, ao ouvir narrativas biográficas, procuro identificá-las, em um jogo de adivinhação e conhecimento. E vejo em meus alunos as imagens de Posseidon, Atena, Apolo, Sísifo, Ulisses e tantos outros deuses e heróis.
Considerando que para Jung os mitos não foram criados, mas sempre existiram no inconsciente coletivo, este exercício permite o acesso a uma esfera de revelação das funções psicológicas. Mitos são mapas que indicam caminhos e trazem à consciência o estatuto do eu no mundo, das singularidades e peregrinação do homem pela existência.
Deste modo a Psicologia, sendo uma ciência interdisciplinar, está imbuída de potestades e pode constituir um tripé, se unida à Educação e Arte. Vale ressaltar que a Arte apresenta diversas terapêuticas, em suas múltiplas atividades e fruições. Cada uma delas metáforas manifestas, relacionadas às situações do percurso existencial.
Nise da Silveira percebeu, em suas atividades de ateliê, que a psiquê de seus pacientes promovia uma ordenação, na medida em que a configuração das composições apresentava um estado inicial de caos e passava a uma organização, com o exercício constante do fazer artístico. Assim, a prática externa dialoga intimamente com o interno.
Após o acima exposto, voltemos à cozinha de minha avó e pensemos em tantas cozinhas que conhecemos, desde a de nossa casa, dos amigos e das escolas. O que configura um modelo educativo? Por qual motivo restringimos atividades específicas a determinados espaços? Será a sala de aula detentora de estruturas ótimas para o conhecimento ser levado a termo? De que forma podemos enriquecer o ensino e a aprendizagem, promovendo uma educação sensível em espaços polivantes?
Minha avó, filha de agricultores, estudou apenas quatro anos. Sem saber, foi uma grande educadora de Biologia, Gastronomia e Arte (Música e Artes Visuais). Também promovia ações terapêuticas e de desenvolvimento do pensamento lógico-matemático.
Assim, ensinou o tempo correto do plantio, da colheita, das estações, como Deméter, bem como o preparo da terra que recebe a semente. À mesa manipulou os tomates, as batatas, os ovos do galinheiro, a manteiga e a farinha. Cuidou de modelar a massa, cortá-la e ordená-la sobre a mesa, sob cantilenas aprendidas com a sua mãe, minha nonna Adelaide. Depois determinou o tempo exato do cozimento da massa e a melhor forma de servir os convidados, decorando pratos com folhas de manjericão, de propriedades terapêuticas que auxiliam no relaxamento, atuando no sistema nervoso central, melhorando sintomas como depressão, ansiedade e insônia.
Não por acaso, muitos pensadores e educadores defendem o ensino de Arte e da Gastronomia nos espaços escolares. Para além de todos os conhecimentos supracitados, eles promovem uma aproximação com o estado coletivo do homem, de estar junto, além de concentração, observação e cuidado. É o mantenimento do estado de humanidade desejável em um grupo social.
A modelagem, que pode acontecer com plastilina ou massa de gnocchi (nhoque) traz a percepção tátil do mundo; o relaxamento e liberação de tensões; percepção de tridimensionalidade; consciência de peso, volume e temperatura, além de ativar elementos arquetípicos. Durante a existência estamos modelando a nós mesmos e nossos conceitos de mundo incessantemente.
E a música, que permeia os dias, diz muito do estado de ânimo individual e coletivo e das escolhas que tocam a alma. Podemos criar uma biografia de vida a partir de músicas que fizeram parte dos diferentes períodos etários. É um estímulo externo que pode beneficiar e catalisar instantes significativos. Quando a música cessa, algo aconteceu e precisamos atentar para os silêncios.
O espaço de aprender é também o espaço do aprimoramento interno a partir de estímulos externos, percepções e reflexões. Tais atributos são parte dos estudos da Psicologia, que atenta para os comportamentos do homem e sua manifestação e ação no e sobre o mundo.
A matéria da Arte é também matéria da Alma, na medida em que transformando aquela estamos movimentando esta, sempre em direção a um maior conhecimento de nós mesmos e do outro.
Sugiro que o leitor experimente observar o ato de cozinhar, modelar e cantar no cotidiano de uma perspectiva mais educativa e poética. A experiência diz muito sobre a construção de si num ambiente generoso de significados simbólicos, que podem ser despertados pela ação em afeto e reflexões.
Assim como os gnocchis (nhoques), a vida nos convida ao mergulho profundo, para que, após o cozimento, possamos emergir com mais sabedoria diante da natureza de todas as coisas, que trazem o caráter do numinoso ao mundo, por associações e experiências estéticas. Esta é a educação dos sentidos e a terapêutica da Arte.
Profa. Dra. Fernanda Maria Macahiba Massagardi, Professora Adjunta da Universidade Federal do Tocantins, Doutora em Psicologia da Educação, Pós-doutora em Artes, bacharel e licenciada em Artes Visuais, graduada em Práticas Integrativas, especialista em Gastronomia Criativa e Autoral, contadora de histórias e focalizadora de danças circulares.
Referências bibliográficas:
DUARTE JÚNIOR, J.F. O sentido dos sentidos. Curitiba: Criar editora, 2004.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
PHILIPPINI, A. Linguagens e materiais expressivos em arteterapia. Rio de Janeiro: Wak, 2022.
RUD, E. Caminhos da musicoterapia. São Paulo: Summus, 1990.
SILVEIRA, N. Imagens do inconsciente. Brasília: Alhambra, 1981.
[1] Carl Gustav Jung