A maternidade como objeto de validação feminina

Por Dayane Salles – Doutoranda em Sustentabilidade Ambiental Urbana, com mestrado em Processos Sustentáveis, Dayane tem experiência em escrita acadêmica, gestão e desenvolvimento de projetos e estudos ambientais.

A bisavó de Ana, pariu 12 vezes, a avó, 8, a mãe de Ana, 4. Ana, só pariu Clarice, que não quer parir ninguém. Nos jantares de família, a pergunta se repete desde que Clarice completou 30 anos: “Quando vem o bebê?”, “Da sua idade eu já tinha 4 filhos”, “Vai ficar mesmo pra titia?”. O assunto da noite, sempre adentra à intimidade de Clarice sem nenhum pudor, em intromissões e indagações indelicadas, disfarçadas em tom leve de uma brincadeira, que trata como inadequada a mulher que se recusa a seguir o enredo que lhe é imposto. Entoam, por todos os lados e cantos, uma só voz, em um coro que a define: “Egoísta!”, “Mal-amada!”. Por romper com a cultura da maternidade, somos julgadas como incompletas. Categorias! Adoram nos colocar nelas. Um script, um roteiro. A mulher “ideal”. Mas ideal de quem, e para quem? A feminilidade aparece sempre atrelada à maternidade como forma de validação da mulher em uma posição que lhe confere a fetichizada e inalcançável “completude”.

Para muitas de nós, a maternidade não é uma questão de escolha. Ainda que avanços tenham sido conquistados através da luta pelos direitos das mulheres, o caminho da maternidade atravessa nossa vida como uma aprovação de nossa existência. A cobrança e a pressão da sociedade que enquadra e impõe níveis de “ser mulher”, se amparam numa cartilha de normas e condutas sociais com lastro em bases fundantes da existência, desde crenças religiosas ancoradas em doutrinas que atribuem à mulher um papel de portal do pecado ao mundo, até ao simbólico nascimento de Jesus pelo ventre sagrado de uma mulher reconhecida como virgem e, talvez por isso, Santa.  Egoístas, mal-amadas, virgens, santas, e agora, na contemporaneidade, heroínas! O termo parece revelar um progresso na Agenda de direitos das mulheres, que desde a Revolução Francesa, se configura com avanços e retrocessos.  A criação de uma nova república em 1789, que buscava garantir princípios de liberdade, igualdade e fraternidade à população, não se estendeu às mulheres, que tiveram à época pequenas conquistas de direitos fundamentais, a partir de movimentos femininos que contestavam as condições de vida das mulheres. 

Séculos depois, esse movimento ganhou força, precisamente a partir de 1960, com o surgimento dos novos movimentos sociais, em que as mulheres conquistaram importantes direitos no que tange à igualdade política, jurídica e econômica. Tais movimentos continuam a se perpetuar em apelos dos mais variados, sejam em protestos, organizações, ou textos como esse, que busca promover a reflexão ao lançar luz à subjetividade feminina, de forma com que os quereres das mulheres não obedeçam às expectativas externas, e mais do que isso, que as vontades que nos são próprias encontrem solo fértil para florescerem nos tempos atuais, em que a liberdade feminina ainda é condicionada a estruturas de poder desiguais. Longe do glamour que retrata a ficção, há muitas camadas profundas que envolvem a mulher contemporânea. Existe, no “ser mulher” uma série de atributos que uma só voz nunca conseguirá destacar com a profundidade das dores, clamores e dissabores que as mulheres enfrentam. 

Segundo dados do IBGE, as mulheres se dedicam aos afazeres domésticos quase o dobro do que os homens. Uma pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revela ainda que as mulheres trabalham cerca de 7,5 horas por semana a mais do que os homens, por conciliarem as atividades do trabalho com as atividades do lar. A maternidade, sem dúvida, impõe às mulheres um degrau a mais nessa caminhada. Além da sobrecarga de trabalho, as mulheres que optam por ter filho, ainda são pressionadas a serem felizes, pela tão problemática romantização da maternidade. Os Relatórios de Transtornos Mentais da Organização Mundial da Saúde apontam que mulheres sofrem mais com ansiedade e têm mais chances de terem depressão do que os homens. A depressão pós-parto acomete mais de 25% das mães no Brasil, segundo dados da Fiocruz, e a pressão social a que essas mulheres são submetidas ao serem taxadas como insuficientes, tem grande responsabilidade nesse índice, afinal, a frase “nasce uma mãe, nasce uma culpa”, não é só um dito popular infundado, já que as questões mentais têm ligação íntima com os aspectos sociais.

A desmistificação de que a felicidade da mulher é acessada somente a partir da maternidade, é assunto urgente. A cada ano diminui o número de mulheres que querem ter filhos, como apontam os dados da SEADE (2021). Entre 2000 e 2020, o número médio de filhos por mulher passou de 2,08 filhos para 1,56 (SEADE, 2021). Em convergência a essa informação, no Brasil, 37% das mulheres em idade fértil (dos 15 aos 49 anos) não querem ter filhos, segundo uma pesquisa feita pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think About Needs in Contraception (TANCO).Os motivos que amparam essas escolhas, são muitos. Dentre eles, desejos pessoais, questões financeiras, garantia de liberdade, e priorização da carreira, já que ter filhos, pode sim prejudicar as mulheres na jornada profissional e, com isso, colocá-las em diferentes patamares econômicos e sociais. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, denominada “Estatísticas de Gênero – Os indicadores sociais das mulheres no Brasil”, divulgada em 2021, indica que somente 62,6% das mulheres brancas com filhos de até 3 anos estão empregadas, enquanto que, para as mulheres pretas, a proporção é menor que 50%. Com relação à paternidade, a existência de filhos não prejudica a participação dos homens no mercado de trabalho (IBGE, 2021).

Machado e Pinheiro (2016), em um estudo sobre a maternidade e o mercado de trabalho no Brasil, revelam o alto índice de mulheres que são demitidas logo após o período de proteção ao emprego garantido pela licença maternidade. Após 24 meses, quase metade das mulheres que usam o direito da licença-maternidade estão fora do mercado de trabalho, por iniciativa do próprio empregador, sem que haja justa causa (MACHADO; PINHO NETO, 2016). O custo da maternidade para as mulheres é alto. O fato de os homens abandonarem a paternidade aumenta a sobrecarga das mulheres que precisam assumir a condição de chefe de família, se encarregando das tarefas afetivas, educacionais e financeiras dos filhos.  Dados da Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC), mostram que em 2020, 6,31% das crianças foram registradas somente pelas mães. No Brasil, mais de 11 milhões de mães são inteiramente responsáveis pela criação dos filhos. Romper com a cultura da maternidade é, para muitas mulheres, não só uma vontade genuína, mas uma forma de protesto pelas diferenças que homens e mulheres enfrentam no percurso de geração e criação de um filho.  Uma escolha que desrespeita a um só corpo e incomoda a tantos, se perpetua desde o início da civilização humana, em que a mulher, por vezes vista como propriedade privada, inicialmente pela figura do pai e depois do marido, tem seus direitos cerceados, e sua existência reduzida a um objeto de procriação. 

Desconstruir a ideia de que a existência da mulher precisa ser validada pela maternidade é um importante e complexo passo na tão almejada emancipação feminina. A nova leitura da maternidade pelas mulheres e pelo movimento feminista, não surge com o nascimento de uma mulher contemporânea que atende a mil afazeres e é eficiente em todos eles, mas com a libertação de uma mulher que se desfaz das amarras que lhe são postas, rompendo com o regime patriarcal que nos coloca em posição subalterna, explícita no repetido discurso de: “Mulheres nasceram para isso”. Se por um lado nos deduzem e reduzem a simplificações, por outro, a figura da mulher contemporânea que busca desfazer essas estruturas de poder, não rompe com a maternidade, mas com imposições. É preciso então transpor o papel secundário que nos é dado para ocuparmos o protagonismo de nossas vidas, autoras de nossos próprios roteiros. A essência e a aparência da maternidade se entrelaçam em um enredo de glórias e lástimas que acompanham a mulher em toda a sua existência. É necessário colocar ordem na casa e dar nome aos processos e fases que a maternidade traz, não com a intenção de desencorajar as mulheres que optam por esse percurso, mas de romper com uma lógica que aprisiona e cerceia sua existência, alojadas no mesmo endereço do discurso que diz que mulheres “nasceram para ser mães”.

Não nascemos para sermos mães se esse discurso nos impõe a obrigatoriedade de um caminho. A maternidade relacionada à mulher contemporânea é somente mais uma das arestas que engendra a forma com que a sociedade ainda enxerga nossos corpos, nossas vidas. Índices alarmantes de feminicídio, violência doméstica, psicológica, sexual, patrimonial e moral, são sintomas dessa mesma estrutura, há tempos contestada. Essa longa e tortuosa jornada, continua a ter como busca fundamental e inegociável, o respeito às mulheres, que só pode ser alcançado mediante o envolvimento de toda a sociedade. Respeito esse que deve ser expresso, não (só) por propagandas em datas emblemáticas, mas nas reuniões de empresas a portas fechadas, em que as mulheres sofrem diversas formas de abuso. Não (só) em campanhas publicitárias, mas através da igualdade de cargos e salários nas grandes corporações. Não (só) com auxílio-creche e outros benefícios financeiros, mas com a oferta de empregos às mães. 

É urgente a participação do governo através da instituição de políticas públicas que garantam e defendam os direitos das mulheres. É urgente o envolvimento das empresas na criação, desenvolvimento e manutenção de planejamentos estratégicos que abracem, envolvam e promovam essa pauta.  É preciso a mudança de comportamento de homens, revendo, a todo tempo e momento, seus papéis enquanto criadores e reprodutores de comportamentos machistas. Por último (e mais importante) é preciso reforçar o que nos trouxe até aqui. Contemos nossas histórias, falemos sobre nossas lutas. Sejamos solidárias umas com as outras, nos acolhendo, nos reconhecendo, nos apoiando, nos movimentando, juntas! Historicamente, todas as mudanças, as grandes transformações, não aconteceram em situações de conforto e calmaria. Se o hoje é tortuoso e o ontem foi ainda mais, a glória do amanhã não é só uma possibilidade. A vista do topo, há de compensar o caminho.

 

Referências

FIOCRUZ. Depressão pós-parto acomete mais de 25% das mães no Brasil. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/depressao-pos-parto-acomete-mais-de-25-das-maes-no-brasil>. Acesso em: 15 mar. 2023.

IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2023.

IPEA, S. Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/mestrado-profissional-em-politicas-publicas-e-desenvolvimentodesafios/index.php>. Acesso em: 15 mar. 2023.

MACHADO, C.; PINHO NETO, V. The Labor Market Consequences of Maternity Leave Policies: Evidence from Brazil. Disponível em: <https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos>. Acesso em: 14 mar. 2023.

SEADE. Entre 2000 e 2020, o número médio de filhos passou de 2,08 filhos por mulher para 1,56 – Fundação Seade. Disponível em: <https://www.seade.gov.br/entre-2000-e-2020-o-numero-medio-de-filhos-passou-de-208-filhos-por-mulher-para-156/>. Acesso em: 14 mar. 2023.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. World mental health report: Transforming mental health for all. Disponível em: <https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240049338>. Acesso em: 15 mar. 2023.