Alberto Caeiro da Silva nasceu em 16 de abril 1889, em Lisboa, e morreu tuberculoso em 1915, na mesma cidade. Era órfão de pai e viveu no campo com uma tia. Não teve instrução além da primária. Por essa razão, escrevia mal o português.
Esses traços biográficos harmonizam-se perfeitamente com a poesia de Caeiro: poeta que está em contato direto com a natureza, sua lógica não é diferente da lógica da ordem natural.
Para Caeiro, as coisas são como são. Seu mundo, portanto, é o mundo do real-sensível ou real-objetivo: tudo aquilo que existe e que percebemos pelos sentidos. Pretendendo ser objetivo, Caeiro ansiava por registrar as sensações sem a mediação da racionalidade (leia-se: pensamento).
Segundo Álvaro de Campos, Alberto Caeiro é um mestre que “pensa” com os sentidos. Mas isso não implica ausência de reflexão na postura de Caeiro; apenas uma forma diferente de pensar. Noutras palavras: ao defender a supressão do pensamento na relação do homem com a natureza, apelando para a supremacia dos sentidos, esse poeta constrói uma poesia filosófica, resultado do esforço de convencer o leitor de que a relação com a natureza deve ser uma relação natural, sem a mediação do pensamento.
Quando o “eu-poético” diz: “Sou um guardador de rebanhos./O rebanho é os meus pensamentos”, ele está, simplesmente, sinalizando que sua relação com o mundo independe do pensamento (seu rebanho) e, por isso, esse rebanho deve ser guardado (entenda-se: não deve permear o contato com o mundo). Quando refere que pensa “[…] com os olhos e com os ouvidos/E com as mãos e os pés/E com o nariz e a boca.”, está defendendo a hegemonia dos sentidos na relação homem/mundo.
É nessa perspectiva que é construído o poema XX de O Guardador de Rebanhos:
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entre no mar em Portugal.
Toda a gente sabe disso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E por onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontraram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Nesse poema há uma tensão marcada pela dicotomia entre o rio Tejo e o “rio da minha aldeia”: pensar no Tejo (vê-lo) é representar momentos grandiosos da história da nação portuguesa (leia-se: as grandes navegações e as conquistas ultramarinas); pensar no “rio da minha aldeia” é estar só ao pé dele (leia-se: percebê-lo, compreendê-lo e fruí-lo pelos sentidos).
Ao construir sua poesia “filosófica”, Alberto Caeiro parece estar se referindo a um momento da evolução humana em que ainda não havia ocorrido a cisão homem/natureza. Ele deseja, portanto, o retorno à Natureza, criticando as posturas que possam distanciá-lo dela. De acordo com Gomes (1987, p. 26),
Caeiro empreende a viagem da conquista da Natureza. E o meio de que se serve é a poesia, restituída à sua missão essencial, qual seja, a de fundir o homem ao mundo. E essa fusão se dá no instante em que ele, ao nomear, nos revela a Natureza virginal, ainda não tocada pela consciência que deforma as coisas. A poesia realiza-se como espaço sagrado que reinstaura o mundo diante de nossos olhos, através da palavra depurada e reduzida ao essencial.
Espécie de poeta-filosófico, Alberto Caeiro extrai seus pensamentos do contato direto com as coisas e com a natureza, não dos livros e da civilização. Defende a simplicidade da vida e a sensação, único meio válido, segundo ele, para obtenção do conhecimento. Veja o fragmento do poema II de O Guardador de Rebanhos:
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
Eu sei dar por isso muito bem…
[…]
Creio no mundo como num malmequer.
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se faz para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
E não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…
O objeto dos estudos literários, conforme você sabe, é o texto literário. Os conhecimentos sobre literatura (biografia, contexto sócio-histórico, tendências estéticas) são refletores que iluminam a leitura dos textos literários. Isso é consenso entre os estudiosos da área. Sabendo disso, vamos ampliar nosso espectro de leitura de poemas? Então, a partir de agora, para cada heterônimo, apresentaremos um poema no final do item: de Alberto Caeiro, leia a seguir o poema V de O Guardador de Rebanhos:
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
“Constituição íntima das cousas”…
“Sentido íntimo do Universo”…
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Para Caeiro, as coisas são como são. Seu mundo é o mundo do real-sensível ou real-objetivo: tudo aquilo que existe e que percebemos pelos sentidos. Pretendendo ser objetivo, Caeiro ansiava por registrar as sensações sem a mediação da racionalidade: é um mestre que “pensa” com os sentidos. Quando o “eu-poético” diz: “Sou um guardador de rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos”, ele está, simplesmente, sinalizando que sua relação com o mundo independe do pensamento (seu rebanho) e, por isso, esse rebanho deve ser guardado (leia-se: não deve permear o contato com o mundo). Quando refere que pensa “[…] com os olhos e com os ouvidos/E com as mãos e os pés/E com o nariz e a boca.”, está defendendo a hegemonia dos sentidos na relação homem/mundo. Veja:
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
O paganismo está mais presente no poema VIII-Num Meio-Dia de Fim de Primavera de O Guardador de Rebanhos, que você poderá ler integralmente em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/alberrr.html>
Para deixar você curioso, citarei apenas um fragmento:
[…]
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele [o Menino Jesus] foi à caixa dos milagres e roubou três. […]
Boa leitura e, como diria Ricardo Reis, carpe diem!
Referências:
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.
GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.
GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.
MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.
MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.
PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.
___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
___. Poesia: Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
___. O Guardador de Rebanhos e outros poemas. Seleção e introdução de Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1993.
SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.