Ricardo Reis nasceu, na cidade do Porto, em 19 de setembro de 1887, estudou em colégio jesuíta e formou-se em Medicina. Do ponto de vista político, era defensor da Monarquia e não concordava com a República. Por isso, autoexilou-se no Brasil. A cultura clássica, o latim, o grego e a mitologia eram suas grandes paixões. Isso explica não apenas as inquietações que marcam sua poesia, mas também os traços horacianos (leia-se: clássicos) que nela sinalizam a preocupação constante de fruir o momento (carpe diem horaciano): a vida nada mais é que momentos breves, instantes volúveis. Gozar o momento significa estar atento a tudo que a vida oferece. Mas o viver deve ser sereno, sem sobressaltos e sem excessos: com o mínimo de dor e gozo possível:
[…]
Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece. […]
Noutra oportunidade, temos:
[…]
Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translúcidos como água
Em taças detalhadas,
Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rápidas carícias
Dos instantes volúveis. […]
As preocupações de Ricardo Reis gravitavam em torno de um problema crucial: remediar o sentimento da fraqueza humana e da inutilidade de agir, por meio de uma arte de viver, que leve à morte sem remorsos ou ressentimentos.
A poesia de Reis é marcada, também, pelo paganismo, evidenciado, no fragmento a seguir, pela presença do politeísmo:
[…]
Não matou os outros deuses
O triste deus cristão.
Cristo é um deus a mais,
Talvez um que faltava.
[…]
Acima dos humanos e dos deuses, esse poeta neoclássico identifica uma força maior, uma entidade implacável e que todos nós obedecemos: o Fado (leia-se: o Destino). Essa percepção fica clara quando o “eu-poético” afirma: “Como acima dos deuses o Destino/é calmo e inexorável.”
Ricardo Reis, a faceta clássica da obra de Fernando Pessoa, é, como seu mestre Caeiro, indiferente à vida social: valoriza a vida campestre e a simplicidade das coisas. Mas, diferentemente do mestre, que se sente feliz integrado à natureza, sente-se fruto de uma civilização cristã decadente, que dá largos passos rumo à destruição.
A consciência da passagem do tempo e a inevitabilidade da morte são dois momentos relevantes da poesia de Reis. De acordo com ele, em face dessas duas circunstâncias, nada se pode fazer: o destino de cada um de nós já vem traçado pelo Fado:
[…]
Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa
Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
Fenece, e vai com ele
Parte da minha vida.
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.
A cada qual, com a statura, é dada
A justiça: uns faz altos
O fado, outros felizes.
Nada é prêmio: sucede o que acontece.
Nada, Lídia, devemos
Ao fado, senão tê-lo. […]
Mas enquanto a morte, imposição do Fado que nos faz impotentes, não chega, o que o “eu-poético” sugere que façamos? Sugere que aproveitemos os prazeres que a vida oferece, mas com parcimônia:
[…]
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o. […]
Por que Ricardo Reis, ao defender a fruição dos prazeres da vida, aconselha a moderação? Trata-se de uma atitude tipicamente epicurista: segundo as teorias do filósofo grego Epicuro, o homem deve buscar uma vida de prazeres naturais e equilíbrio, mas sem paixões violentas. É por isso que Reis desconfia da felicidade extrema, buscando sempre evitá-la ou controlá-la pela razão.
Para Abdala Júnior; Paschoalin (1990), o rigor formal da poesia de Ricardo Reis resulta da ânsia de harmonia e equilíbrio na arte poética, que deveria realizar um poema que, do ponto de vista formal, fosse tão gracioso quanto o pensamento do qual nasce:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis é considerado neoclássico. Várias razões fundamentam essa afirmativa: seu espírito grave e estilo elevado; sua busca de perfeição e equilíbrio; seu intelectualismo e convencionalismo; sua frieza quando trata das relações amorosas. A essas razões, soma-se a presença da mitologia pagã.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
A efemeridade da glória e da fortuna está marcada nesse poema, pois o poeta pede para ser coroado de rosas e de folhas breves. A beleza da rosa é efêmera e as folhas breves remetem-nos à Antiguidade Clássica, quando os poetas recebiam uma coroa de louros.
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas –
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
As rosas apagar-se-ão tão cedo quanto a fronte que a carrega. Tudo é fugaz, como o passar do rio. Você já pensou nisso? Pense para mais tarde nos encontrarmos em Alberto Caeiro.
Referências:
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.
GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.
GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.
MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.
MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.
PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.
___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
___. Poesia: Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.