18 de maio: Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual

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O dia 18 de maio nos traz inúmeros aspectos positivos acerca da sua efetivação em âmbito nacional mediante a temática do abuso e exploração sexual na infância e adolescência, efetivamente possibilitando ocasionar uma maior discussão sobre a questão, promovendo maior enfoque quanto à participação profissional e social, peças que se fazem fundamentais na área social ao se falar na garantia dos direitos e promoção de melhorias à vida humana.

O dia alusivo desencadeia expressamente contextuar os perigos e dificuldades enfrentadas no cotidiano de crianças e adolescentes abusadas sexualmente, intencionando alertar tanto a sociedade, quanto os demais atores sociais, para a gravidade da questão e as diversas formas de violência que se faz presente na vida de crianças e adolescentes, atentando-se para o importante trabalho de prevenção que o psicólogo desenvolve neste contexto.

Fonte: encurtador.com.br/fEGK9

Torna-se plausível destacar ainda a possibilidade de evidenciar o fato de que, o abuso sexual de crianças e adolescentes se caracterizam uma importante expressão da questão social da qual necessita ser tratada primeiramente em sua base familiar, local onde ocorre a maior parte desses abusos, tendo este como um motivo fundamental para elevar a importância da atuação profissional e social dentro desta esfera, mostrando este fator como uma grande barreira que necessita com urgência e cautela ser rompida.

Abuso sexual infantil é o envolvimento de uma criança em atividade sexual que ele ou ela não compreende completamente, é incapaz de consentir, ou para a qual, em função de seu desenvolvimento, a criança não está preparada e não pode consentir, ou que viole as leis ou tabus da sociedade. O abuso sexual infantil é evidenciado por estas atividades entre uma criança e um adulto ou outra criança, que, em razão da idade ou do desenvolvimento, está em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder (World Health Organization – WHO -, 1999, p. 7).

A discussão gerada mostra-se como uma ferramenta a mais no intuito de promover e divulgar a temática, sendo o contexto enriquecido com a participação de outros autores, os quais também abordam discursões envolvendo a problemática, imprescindivelmente fazer notar o quanto se faz fundamental e necessário à divulgação e o debate de questões como da atuação social no combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes, na intenção de se ocasionar melhorarias no contexto familiar e consequentemente social, e possivelmente reduzir esse tipo de problema social que acomete crianças e adolescentes.

Referência:

World Health Organization (WHO). (1999). WHO Consultation on Child Abuse Prevention. Geneva: WHO.

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“Elize Matsunaga – Era uma vez um crime”: conteúdos psicológicos da controversa série brasileira

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A série brasileira “Elize Matsunaga – Era uma vez um crime” é um documentário televisivo original da Netflix em parceria com a produtora Boutique Filmes, dirigida por Eliza Capai. A produção lançada em julho de 2021, tem conteúdo com censura 14 anos, melancólico focado, especialmente, nos sintomas psicológicos e jurídicos da autora confessa de um dos crimes mais impactantes da história recente do país ocorrido em 19 de maio de 2012.

Figura 1 – (Crédito: Reprodução/Netflix)

A série explora fotos e vídeos de conteúdo intimista do antigo casal, apresenta vasto material jornalístico veiculado à época do julgamento, as falas de amigos, familiares e de especialistas sobre o caso oferecendo, e, por fim, destaca-se por conter muitas horas de declarações diretas de Elize tomadas durante uma saída oficial do ressesso de páscoa da prisão de Tremembé em 2019, falando em primeira pessoa, com iluminação e enquadramentos ajustados para fazer audiência sentir-se em frente a ela, olhando nos olhos, com expressiva proximidade.

Os episódios da série são: 1 – Estado civil: viúva; 2 – Uma vida de princesa; 3 – A infeliz ideia de Eliza e 4 – Ecos de um crime.

Figura 2- (Crédito: Reprodução/Netflix)

São apresentados temas de muito relevo para a psicologia e psicanálise, sadismo, masoquismo, depressão, e psicopatia foram conceitos diversas vezes mencionados pelos que tentavam enquadrar e compreender a subjetividade complexa da autora do crime bárbaro.

No julgamento, tanto a defesa como a acusação fundavam seus argumentos e aspectos psicológicos relativos a Elize. Os primeiros arguiam que a pena do crime deveria ser afastada, atenuada ou reduzida, pois no momento que atitou no marido, e esquartejou o corpo dele e o transportou em malas, ela não respondia por suas ações, pois estava tomada por violenta emoção.

Segundo a defesa, a autora do crime teve uma crise de ansiedade decorrente de longo período do medo que sentia de ser machucada e morta pelo marido, e tal medo estaria justificado no longo período de violência psicológica sofrida por ela contexto do casamento.

Já a acusação também faz uso da psicologia para pedir aumento da pena de Elize, que teria cometido o crime por motivo torpe, por mero ciúme e a associa a figura estigmatizada da mulher que deseja ser Cinderela, e ter “uma vida de princesa”, deixar as raízes humildes e ascender socialmente por meio do casamento do qual ela não estaria disposta a abrir mão.

Figura 3 – (Crédito: Reprodução/Netflix)

Neste contexto, entre argumentos de defesa e de acusação as personalidades de Elize e do marido assassinado tornam-se objeto de diversas discussões e especulações ao longo da série num esforço de compreensão e categorização da barbárie.

Como exemplo, tem-se a apresentação ao público de “fatos novos” que poderiam justificar para o público os comportamentos de Elize. Isso porque, foi descrito o impacto da morte prematura do pai na história dela. Foram retratados a vida difícil em termos de condições materiais que a família enfrentava e o contexto rural e muito rústico que ela viveu a infância e adolescência.

Além disso, tem-se um possível abuso sexual que ela teria sofrido aos 15 anos, perpetrado pelo padrasto e que teria marcado profundamente sua subjetividade e, por fim, a experiência vivida como profissional do sexo que a levou a sair do contexto familiar e a conhecer o futuro marido.

Por fim, vale destacar a releitura feminista que a série se propõe a fazer tanto do crime em si questionando diversos pontos de pré-conceitos ligados ao fato de a autora ser uma mulher, ter sido profissional do sexo e ter agido motivada por ciúmes, destacando, ainda, diversos casos famosos como o de Ângela Dinis morta pelo marido nos anos 60. O crime de Elize teria o mesmo fim caso fosse cometido por um homem? Fica a dúvida necessária e o convite à reflexão.

FICHE TÉCNICA

Elize Matsunaga – “Era uma vez um crime”

Ano produção: 2021

Dirigido por Eliza Capai

Classificação – Não recomendado para menores de 14 anos

Gênero: Documentário

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Em Nome de Deus: dominação masculina, abuso sexual intrafamiliar e relações de poder

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Pierre Bourdieu (2002) em sua obra A dominação masculina aponta que a força masculina não necessita de justificativas, ela se apresenta como natural e não precisa ser legitimada. A ordem masculina é privilegiada pela forma como a sociedade se estrutura, que constrói o corpo como realidade sexuada, que segue fundamentos de divisão sexualizante, ou seja, que o corpo é construído de forma social, e a partir da visão sexuada do mundo que traz ao corpo a distinção entre os sexos, que fundamenta a separação entre os gêneros a partir da perspectiva mítica presente na dominação masculina sobre as mulheres. 

De acordo com Saffioti (1992) o gênero se constrói através da dinâmica existente nas relações sociais, onde o indivíduo se constrói como é, conforme a relação com os outros, visto que, cada ser humano é aquilo que vive nas suas dinâmicas de relações sociais, que são atravessadas por contradições de gênero, raça e classe. Saffioti (1992, p. 45) defende que apesar das diferentes visões de feministas acerca do gênero e aspectos do mesmo, existe um consenso onde: “gênero é a construção social do masculino e do feminino”.  

Reprodução: Globoplay

Diante dessa breve conceituação sobre gênero e dominação masculina, que será complementada ao longo do texto, iremos começar com a análise do segundo episódio da série documental Em nome de Deus, onde nos primeiros minutos aparecem alguns homens amigos e conhecidos de João Teixeira, que o defendem das acusações que são estão sendo feitas. 

É interessante perceber que os homens que aparecem para defende-lo representam autoridade dentro da cidade, entre eles há um ex-prefeito da cidade de Itapaci, um empresário local e um amigo de infância, usam como argumento que se fossem só algumas mulheres tudo bem, mas desconfiam dos números alarmantes, tais como 50, 100, 200 mulheres. Como se caso fosse apenas 3 ou 4 estaria tudo bem. Eles se expressam como se o abuso pudesse ser visto como algo aceitável sim, o que tira a credibilidade são os números serem altos.

Reprodução: Globoplay

Adedi Santana apresenta um argumento sobre a validação do homem poder ter muitas mulheres, e respalda seu posicionamento na história bíblica do Rei Salomão, que foi o terceiro rei de Israel, filho de David com Bate-Seba. Que segundo a Bíblia no livro de I Reis teve 700 esposas de classe principesca e 300 cuncubinas. Cuncubinas correspondiam às mulheres que estavam unidas a um homem, mas ocupavam um lugar inferior ao de esposa, apesar de desempenhar às funções desta. 

Adedi ainda culpabiliza as mulheres pelo pecado do homem ao utilizar a frase: “a mulher é danada pra fazer o homem pecar”. A Bíblia no livro de I Reis quando denota sobre o número de mulheres do Rei Salomão, finaliza o versículo dizendo que essas mulheres perverteram o coração dele. A colocação de Adedi possui ligação direta com o trecho bíblico que ele mesmo citou, e que reforça, valida e legitima a ideia de que a mulher é culpada pelo que o homem faz de errado. 

João Teixeira está sendo acusado de abuso sexual contra mais de 500 mulheres, mesmo assim ainda possui apoiadores e defensores que culpabilizam as vítimas e o inocentam. De acordo com Carloto (2001), o gênero demonstra a discrepância na repartição de responsabilidade na sociedade, pois a sociedade impõe a divisão de responsabilidades para além do desejo dos indivíduos, e essa distribuição é realizada com requisitos sexistas, racistas e classistas. Conforme a posição ocupada dentro da sociedade, o indivíduo poderá ou não ter acesso a meios de sobreviver segundo o sexo, raça e classe.

Seguindo essa linha de raciocínio, vemos como o a responsabilidade do homem é opcional e submetida ao viés do engano, enquanto a mulher mesmo em situação de violência é vista como culpada, ainda mais quando se trata de mulheres que não possuem o mesmo lugar de poder social que João Teixeira estava inserido. Ele era alguém influente dentro da sociedade, possuía prestígio social e espiritual dentro daqueles que eram detentores dos mais altos níveis de poder.

Para Davis (1975), a finalidade do estudo de gênero é compreender a dimensão que os papéis sexuais possuem e qual o espaço ocupado pelo simbolismo sexual ao longo das sociedades e diferentes épocas, de modo que seja possível encontrar como operavam para preservar a ordem social e para alterá-la.  Conforme Zanello e Bukowitz (2011), os papéis de gênero e toda a abrangência que a categoria traz se complementam e fazem parte da mesma estrutura de funcionamento social.

O argumento de Adedi ao usar o número de mulheres que o Rei Salomão possuía está ligado também ao mito judaico-cristão responsável pela transição do matriarcado para o patriarcado, que é a história de Eva e Adão. Onde Eva é vista como inferior desde a sua criação e nascimento por ter sido formada a partir da costela de Adão, que reforça a ideia da necessidade masculina de não aceitar a igualdade de gêneros. Além disso, Eva é culpada por ter tentado Adão e pela expulsão que receberam do paraíso. Eva foi o exemplo de mulher trazido para o Ocidente, a mulher que não deveria ser tida como exemplo a ser seguido. Esse mito judaico-cristão implantou no imaginário coletivo que o feminino deve ser visto como subversivo, e não confiável (CABRAL, 1995).

Reprodução: Globoplay

O empresário Mauro, fala em tom sarcástico sobre a sua dúvida de que João Teixeira pudesse ter se relacionado sexualmente com mais de 300 mulheres, onde ele diz que “é muita potência”, como se João Teixeira não fosse capaz de cometer tantos abusos sexuais assim devido às suas condições físicas. Ele relata não acreditar que João fez isso, e manifesta sua dúvida em relação aos depoimentos e denúncias feitas pelas mulheres.

Reprodução: Globoplay

Juca Martins, amigo de infância de João Teixeira além de duvidar que ele cometeu abusos sexuais com todas essas mulheres, ainda retruca ao dizer que as vítimas retornaram “lá de novo”, se referindo à Casa Dom Inácio. Esse comportamento de Juca reforça a desmoralização das vítimas, visto que, elas perdem a razão quando apresentam qualquer aproximação ou inclinação ao seu abusador. Ameaças, chantagens e violências são desconsideradas, afinal, a vítima escolheu a reaproximação do abusador. 

Bourdieu (2002) afirma que a dominação masculina nas formas de exploração e a expressão pura do masculino trazem honra ao homem, serve como uma maneira afirmativa de sua virilidade. Bourdieu aponta que o assédio sexual corresponde a uma maneira de afirmar a dominação masculina. 

encurtador.com.br/hqFS9

João Teixeira recebeu o apoio não somente de pessoas próximas, mas de uma grande multidão que o esperava na porta da Casa Dom Inácio. Pessoas vindas de vários lugares, que já frequentavam a Casa, e que estava ali gritando a inocência de João Teixeira. As pessoas trajavam branco, assim como ele, e formaram um escudo ao redor dele afastando os jornalistas e pedindo que a imprensa deixasse o “pai” em paz. 

João respondeu aos jornalistas apenas dizendo que era inocente, antes disso dentro das instalações da Casa, ele disse aos fiéis que continuava sendo o João de Deus, e que iria se entregar a Lei Brasileira, mas continuava sendo o João de Deus. Logo se despediu com palavras religiosas e declarou sua inocência aos jornalistas presentes que tentavam falar com ele.

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A apresentadora Xuxa Meneghel foi a primeira pessoa famosa a se manifestar em relação ao caso de João de Deus estar sendo acusado de abuso sexual de mulheres. Ela se pronunciou numa rede social, onde pedia desculpas aos seus fãs e seguidores por já ter indicado e falado muito bem do trabalho espiritual desempenhado por João de Deus. Ela relata se sentir envergonhada por ter indicado alguém como ele, por ter colocado pessoas em risco sem saber. 

Reprodução: Globoplay

Xuxa relata sobre ter sido resistente no primeiro momento em relação às denúncias, mas ao entrar em contato com os relatos das mulheres releva ter se sentido conectada a elas por dividirem o mesmo trauma em comum: o abuso sexual. Ela fala sobre as semelhanças nos relatos, sobre o silêncio de tantos anos, sobre o medo e sobre a forma como as mulheres revelaram sobre os abusos sofridos. 

De acordo com Chauí (1985), a violência corresponde a uma relação hierárquica de desigualdade, que possui a finalidade de dominação, exploração e opressão, que é efetivada no silêncio da vítima e na passividade. Além disso, a violência está ligada ao poder, ao passo que um dos lados é dominador, o outro é então dominado, violentado. Onde de um lado há a dominação e no outro a coisificação, entretanto a violência e o poder não correspondem a características intrínsecas e inatas do ser humano. 

A apresentadora traz informações sobre quando João Teixeira acompanhou a mãe dela num período crítico de adoecimento decorrente da doença de Parkinson, e de como ela se encontrava fragilizada e qualquer coisa que ele dizia, ela se agarrava porque não havia mais nada que ela já não tivesse tentado. Xuxa conta sobre as ligações que ele fazia a ela, onde ele dizia que iria realizar uma cirurgia espiritual à distância enquanto a mãe dela estivesse dormindo, e que no outro dia ele sempre ligava para perguntar se ela havia melhorado. Xuxa embarga a voz ao relatar sobre como qualquer melhora que a mãe dela tinha, ela atribuía aos cuidados espirituais dele e qualquer coisa era devido ao trabalho dele. 

Reprodução: Globoplay

Os relatos começam a ficar mais pesados quando Dalva, filha de João Teixeira aparece e começa a relatar que foi vítima de abuso sexual dele desde os 10 anos de idade. Dalva traz informações muito fortes, e agora nessa parte do texto eu gostaria de informar sobre a densidade das informações que serão trazidas sobre abuso sexual infantil, violência física, violência patrimonial e violência psicológica. Além de abuso de álcool e outras drogas. 

Se você não se sente confortável com os temas citados, peço que não veja a série documental e que não continue a leitura, visto que, os relatos são intensos, e para caso isso seja um gatilho emocional para você, por favor, não continue. 

Dalva é filha biológica de João Teixeira de Faria, e relata ter sofrido abuso sexual por parte dele inicialmente aos 10 anos de idade, entretanto os abusos se estenderam até a vida adulta dela, e sempre envoltos de manipulação, chantagem e dominação de João Teixeira. 

Ela conta que morava com sua mãe quando João Teixeira chegou para buscá-la, e ela não queria ir, mas foi forçada a ir com ele. João chegou até a fazenda onde Dalva residia dirigindo um carro importante e caro da época, o que demonstrava seu status de poder aquisitivo naquele momento. Dalva era uma criança e estava brincando na beira da estrada, relata que vivia uma vida simples e humilde, e que a partir daquele dia não teve mais tranquilidade. Ela usa a expressão de que é melhor ter pouco com Deus do que muito com o diabo ao se referir as posses que o pai estava começando a possuir devido a expansão de sua fama no Brasil e no mundo.

O relato sobre o primeiro abuso sofrido por ela ocorreu na casa de João Teixeira, quando ele se disse a ela que precisava fazer um trabalho com ela (se referindo a trabalho espiritual), ele então se deitou com ela e começou a acariciar o seu corpo. Ela diz que no momento se sentiu confusa, mas confiava nele, afinal, era o seu pai e aquilo não era nada que ela devesse se preocupar. 

Para Morales e Schramm (2002), o abuso sexual intrafamiliar possui uma estrutura assimétrica, visto que, o abusador ocupa um lugar de vantagem por ser mais velho, por possuir autoridade e por impor de alguns meios, como chantagem emocional, intimidação e opressão. 

Nos dias que seguiram ele começou a proibi-la de ter amigos e amigas, também a proibiu de namorar, de sair e de relações sociais. Ela relata que ele não deixava que ela se relacionasse ou se aproximasse de amigos. Entretanto, quando Dalva tinha por volta de 9 anos e 6 meses, João Teixeira, pai de Dalva, a levou para o quarto dele onde ocorreu o primeiro abuso. Dalva relata que ele arrancou toda a sua roupa e então começou a tocá-la, ele tentou penetrá-la, ela então disse que estava machucando e saiu correndo. 

Dalva engravidou aos 14 anos de um rapaz, João Teixeira ao saber começou a agredi-la com ferramentas utilizadas em vaquejadas, ela ficou muito ferida e teve um aborto espontâneo. Dalva se casou aos 14 anos e permaneceu casada até os 20 anos, e relata que foi o único período que não sofreu abusos do pai. Ao se separar, ela foi morar próximo a rua onde ele morava, João então passou a frequentar a casa de Dalva e a tentar ter relações não consentidas com ela novamente. 

João de Deus passou a proibir Dalva de ter amigos, de sair de casa e de se relacionar com outras pessoas. Ele passava na porta na casa dela ao longo do dia acompanhado de seus capangas, entrava na casa de Dalva pra verificar se ela estava lá, se havia alguém. 

Dalva conta que foi abusada por João de Deus na Casa Dom Inácio também, e disse que naquele momento ele não tocaria nela de novo. João então disse que ele afirmou que tiraria os filhos dela, a casa, o carro, o dinheiro e tudo o que ela tinha, que ela iria ficar na lona, mas seria dele. Dalva concordou em ficar na lona, pois só queria ficar longe dele e livre dos abusos. 

Ela procurou João Teixeira num momento onde não tinha nada para comer nem para dar para os filhos comerem, ele então responde que não tem nada a ver com isso, que ela deveria pedir para o pai das crianças e não para ele. Dalva perdeu a guarda dos filhos por não ter condições mínimas de cuidar deles, ela relata que quando isso aconteceu, ela começou a ter problemas com o abuso de álcool. 

Segundo Papalia e Feldman (2013), as consequências dos maus-tratos em crianças podem ser físicas, emocionais, cognitivas e sociais, e essas consequência geralmente estão inter-relacionadas. De acordo com Zanello (2011), o sofrimento psíquico é construído socialmente, visto que o sofrimento acontece a partir dos valores de gênero. Nesse caso, o sofrimento de Dalva a deixou depressiva e em estado de desesperança, pois havia perdido tudo. Ainda conforme Araújo (2002), a violência consiste na violação do direito de liberdade e de poder ser dono da própria história, que contém todas as formas de opressão, maus-tratos e agressão, tanto físicas como emocionais, pois provocam sofrimento.

Num momento onde Dalva visitou a sua família, João Teixeira se aproximou dela e pediu para levá-la em casa, naquele momento Dalva residia em Goiânia. Ele a levou num apartamento novo, perguntou a ela se ela gostaria de morar ali e de ter os filhos de volta. Em seguida mostrou o quarto que nomeou como sendo dos filhos, e o outro como sendo “deles”. 

João impôs a condição de tê-la para que ela pudesse ter a moradia e a guarda dos filhos. Dalva encontrava-se muito fragilizada devido a ausência dos filhos, e aceitou. Ela foi em busca dos filhos e os levou para morar com ela, João aparecia no apartamento poucas vezes na semana, mas queria exclusividade, ele havia proibido Dalva de namorar com outros homens. Ele diz que pode ter qualquer mulher do mundo, mas que ele quer tê-la.  A submissão da mulher estava contraposta as noções de autonomia do sujeito dentro da esfera pública e capitalista, e o que a vida doméstica possui objetivos contrários a liberdade (KEHL, 2007).

Reprodução: Globoplay

O filho de Dalva, Paulo Henrique, explana sobre a boa convivência que tinha com João Teixeira, que ele era generoso e dava muitos presentes, e que naquele momento ele não suspeitava de nada, mas achava estranho. Até que um dia, João ficou furioso com o irmão de Paulo Henrique, e enfiou a cabeça do garoto dentro do vaso sanitário e deu descarga várias e várias vezes. 

O medo e o pânico tomaram conta de Paulo Henrique, ele passou a desconfiar de João de Deus, e se escondeu dentro do quarto da mãe. Paulo Henrique presenciou a mãe sendo abusada sexualmente e ser agredida fisicamente. Ele relata que ele bateu nela e que tiveram relações sexuais. 

Paulo Henrique diz que João era apaixonado por Dalva, e diz sobre ter percebido que as visitas se tornavam cada vez mais frequentes, que o clima ficava ainda mais estranho. Ele relata sobre ouvir as ameaças que a mãe sofria, e que ele apesar da pouca idade começou a entender as coisas, entender o motivo da mãe não poder ter namorado e por isso namorar escondido.

Reprodução: Globoplay

O filho mais velho de João, João Augusto de Faria, diz que nunca sofreu nenhum tipo de abuso do pai, e que até que Dalva falasse sobre isso, ele era muito próximo dela. João relata que seu pai era generoso, que tudo o que ele tem hoje ele não precisou trabalhar para conseguir porque foi dado pelo seu pai. Ele diz ainda, que Dalva está motivada pelo dinheiro, e que ela e os filhos dela estão mentindo para conseguir dinheiro. 

Quando houve a denúncia de Dalva sobre os abusos sofridos, João Teixeira divulgou um vídeo onde ela aparece acariciando sua cabeça e dizendo que nunca foi abusada por ele, que sempre foi amada e cuidada. 

Reprodução: Globoplay

Dalva diz que foi coagida a gravar o vídeo ao lado de João Teixeira e na presença dos advogados e comparsas dele. Ela estava sendo ameaçada e teve medo, então resolveu gravar o vídeo fazendo o que eles estavam pedindo. O roteiro foi pré-estabelecido e a gesticulação também. Ela seguia às ordens que estavam sendo dadas para que pudesse ser liberada em segurança, e ter a segurança dos filhos. 

Ela afirma que rompeu o contato com todos os irmãos porque eles não acreditaram nela, que nunca acreditaram que ela foi abusada pelo pai. Ela diz que nunca mais teve contato nem proximidade com nenhum dos irmãos desde que teve coragem de expor toda a situação, mas que se sente bem e em paz por não estar próxima de pessoas que não acreditam em algo tão grave. 

O episódio termina com Dalva dizendo que após as denúncias e a prisão de João Teixeira, ela passou a andar de cabeça erguida, que não sente mais medo ao andar pelas ruas da cidade.

FICHA TÉCNICA

encurtador.com.br/yFIQ4

EM NOME DE DEUS

Argumento e criação: Pedro Bial
Roteiro: Camila Appel e Ricardo Calil
Produção musical: Dé Palmeira
Direção de fotografia: Gian Carlo Bellotti e Dudu Levy
Produção: Anelise Franco
Direção de conteúdo: Fellipe Awi
Direção: Gian Carlo Bellotti, Monica Almeida e Ricardo Calil
Produção Executiva: Erick Brêtas e Mariano Boni
(A série documental está disponível para assinantes Globoplay).

 

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, M. F. Violência e abuso sexual na família. Psicologia em Estudo, 7(2), 3-11. 2002.

AZEVEDO, M. A., & Guerra, V. N. A. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 2. ed. São Paulo: Cortez. 1993

BOURDIEU, P. A dominação masculina. 2.ed. Trad. de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

CABRAL, J. T. A sexualidade no mundo ocidental. 2.ed. Campinas: Papirus, 1995.

CHAUÍ, M. (Participando do debate sobre mulher e violência. In Cavalcanti, M. L. V. C.; Franchetto, B., & Heilborn, M. L. (Orgs.) Perspectivas Antropológicas da mulher (pp. 25-62). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

MORALES, Á. E; SCHRAMM, F. R. A moralidade do abuso sexual intrafamiliar em menores. Ciência & Saúde coletiva, 7(2). 265-273. 2002

SAFFIOTI, H.I.B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A.O.; BRUSCHINI, C. (Orgs.) Uma Questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992

______. Violência de gênero: lugar da práxis na construção da subjetividade. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 2, 1997

KEHL, M. R. Deslocamentos do feminino. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2007

PAPALIA, Diane E. Desenvolvimento humano [recurso eletrônico] / Diane E. Papalia, Ruth Duskin Feldman, com Gabriela Martorell; tradução: Carla Filomena Marques Pinto Vercesi… [et al.]; [revisão técnica: Maria Cecília de Vilhena Moraes Silva et al.]. – 12. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: AMGH, 2013.

ZANELLO, Valeska; FIUZA, Gabriela; COSTA, Humberto Soares. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Revista de Psicologia, [s.l.], v. 27, n. 3, p.238-246, dez. 2015.

ZANELLO, Valeska.; BUKOWITZ, B. Loucura e cultura: uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes psiquiatrizados. Revista Labrys Estudos Feministas. v. 20-21, 2011.

ZANELLO, Valeska. A saúde mental sob o viés do gênero: uma releitura gendrada da epidemiologia, da semiologia e da interpretação diagnóstica. In: ZANELLO, V.; ANDRADE, A. P. M. (Org.). Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade. Curitiba: Appris, 2014ª

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Anjo do Sol: exploração de menores

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O abuso sexual pode estar mais perto que você imagina.

Anjos do Sol, lançado em 2002, dirigido por Rudi Lagemann, é uma produção brasileira sobre a exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes. O filme recebeu no 34º Festival de Gramado, em 2006, o troféu de melhor ator para Antonio Calloni. A obra é notável por tratar de uma situação que se perpetua há séculos.

É narrada a história de Maria, uma criança de 12 anos, de família pobre do interior do Maranhão, que foi vendida pela família a um recrutador de prostitutas, imaginando que sua filha estaria indo morar em um local melhor pois não tinham conhecimento que o homem em questão estaria recrutando e enviando para um prostíbulo localizada em uma cidade na floresta amazônica.

Maria se encontra em processo de desenvolvimento cognitivo, sendo este fundamental para a formação da identidade, formação de vínculos afetivos e de percepção do mundo. Embarcar forçadamente nessa contextualização pode representar um grave fator de risco para sua vida, uma vez que a violência pode provocar transtornos psicopatológicos e comprometer o seu desempenho pessoal e relacional ao longo do ciclo de vida.

Fonte: encurtador.com.br/amoXZ

Maria e outras meninas foram levadas para um local chamado Casa Vermelha, na cidade da Amazônia, onde são exploradas sexualmente e após serem abusadas pelos homens dos carimbos, decidem fugir desse local, sendo que uma das meninas foi parar nesse local por ter sofrido abuso sexual do padrasto e a mãe não ter acreditado nela, permitindo que o recrutador de prostitutas a levasse.

Isso traz a reflexão sobre os locais de ocorrência dos crimes que são diversos, contudo a maioria acontece nos próprios lares e na maioria das vezes os agressores são aqueles que deveriam cuidar e proteger, acontecendo distorção dos papéis sociais em que as partes envolvidas, as quais possivelmente aplicam a tortura física e emocional, deveriam prevalecer a ternura e os cuidados imprescindíveis a fim de garantir a boa saúde e desenvolvimento saudável da criança.

Na fuga, elas são apanhadas e forçadas a voltar aos prostíbulo e, como penalidade, uma das meninas é arrastada até a morte pelo dono do local, usando  sua morte para passar  a mensagem para as outras meninas de que não compensa fugir da exploração sexual, pois além dele capturá-las, ele poderia acabar com todos os projetos e sonhos que elas poderiam ter.

Além da ficção, a realidade de muitas famílias e meninas, não apenas do Brasil, é retratada, no que se refere ao abuso e exploração infantil. O fato de ser um assunto velado faz com que crianças não saibam ao certo o que vivenciaram, como lidar com isso e, consequentemente, como se expressar.

Fonte: encurtador.com.br/auDH1

Conforme Merlo e Adesse (2005), o abuso sexual é caracterizado por quebra de vínculo na qual o responsável utiliza da autoridade, usando a vítima para o seu prazer sexual sem a autorização da vítima, forçando-a ou induzindo-a a uma prática sexual com ou sem violência para o próprio prazer. A violência contra crianças e adolescentes é um acontecimento complexo e real que abrange aspectos sociais, jurídicos, médicos, educacionais e psicológicos. A violência é vista como um problema de saúde pública devido a sua alta prevalência na infância e adolescência (WILLIAMS e HABIGZANG, 2014).

Atualmente, existe a  rede de proteção diante de casos maus tratos infantis. Muitos hospitais de referência e postos de saúde possuem setores específicos para lidar com situações de suspeitas e que faz a notificação obrigatória ao Conselho Tutelar, podendo também comunicar o Ministério Público, que faz a comunicação ao Juizado da Vara da Infância e Juventude.

Além disso, existem órgãos da rede de proteção e assistência à criança e adolescente  que são: (CAPS) Centro de Referência Especializado de Assistência Social; Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS); Comissão de combate aos  maus-tratos contra criança e adolescente; Programa Sentinela; Delegacia da Criança e do Adolescente, Defensoria, Conselho Tutelar, juizado da Vara da Infância e Juventude entre outros.

FICHA TÉCNICA 

ANJOS DO SOL

Direção:  Rudi “Foguinho” Lagemann.
Roteiro:  Rudi “Foguinho” Lagemann.
Elenco:  Antonio Calloni, Vera Holtz, Chico Diaz, Roberta Santiago, Otávio Augusto, Mary Sheyla, Darlene Glória (no papel da cafetina Vera), Bianca Comparato e a estreante Fernanda Carvalho.
Ano: 2006

Referência:

GABEL, Marceline. Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus, 1997.

MERLO, Cecilia de; ADESSE, Leila. Violência Sexual no Brasil: perspectivas e desafios. Brasília: Ipas (Brasil), 2005

 WILLIAMS, Lúcia C. Albuquerque; HABIGZANG, Luísa Fernanda. Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência. Curitiba: Juruá, 2014.

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Preciosa: reflexões sobre o abuso sexual e a educação como instrumento de ressignificação do sofrimento

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Carregado de um conteúdo extremamente dramático e pesado emocionalmente, o filme trata explícita e implicitamente sobre diversos temas, como gordofobia, violência intrafamiliar e estupro

Lançado em fevereiro de 2010, sob a direção de Lee Daniels, o filme Precious, “Preciosa”, em português, aborda a vida de Claireece “Preciosa” Jones, uma jovem de 16 anos inserida num contexto familiar extremamente abusivo desde a sua infância. Violentada pelo próprio pai e abusada fisicamente e psicologicamente pela mãe, Preciosa cresce permeada por traumas e questões psicológicas oriundas das situações vivenciadas durante toda a sua vida, incluindo o nascimento de duas crianças, fruto de uma série de abusos sexuais.

Carregado de um conteúdo extremamente dramático e pesado emocionalmente, o filme trata explícita e implicitamente sobre diversos temas, como gordofobia, violência intrafamiliar e estupro, além de questões referentes à psiquê do sujeito, como problemas de autoestima e as consequências psicológicas e comportamentais de abusos de diversas naturezas. Durante o filme, somos convidados a mergulhar a fundo na história da personagem e em sua profundidade psicológica, e, em determinado ponto da trama, somos apresentados a uma nova dinâmica na vida da jovem a partir da educação, aspecto que será discutido ao longo dessa análise juntamente dos outros mencionados anteriormente.

Fonte: https://bit.ly/2DWoLHs

Resumo do Filme

Preciosa mora no bairro do Harlem, em Nova York com sua mãe e sua história se passa no ano de 1987. As primeiras cenas do filme mostram a jovem em seu ambiente escolar, onde não interage com os colegas nem com os professores, além de sofrer provocações por conta de seu peso e aparência. Após uma situação na sala de aula, ela recebe um chamado da diretora, que demonstra preocupação com a jovem por conta da gravidez, por não ser a sua primeira, algo preocupante devido principalmente a sua idade.

Preciosa acaba sendo retirada do ambiente escolar por decisão da diretora, que a visita posteriormente em casa apresentando a oportunidade de estudo em uma escola alternativa, chamada “Cada Um Ensina Um”. Nessa cena, conhecemos a dinâmica familiar problemática de Preciosa, que é humilhada pela mãe pelas coisas mais triviais possíveis. Flashbacks mostram as memórias da personagem do estupro sofrido por ela. É o primeiro contato que temos com o fato de que as duas gestações da jovem foram oriundas dos abusos de seu próprio pai.

A visita da diretora desperta na jovem, que já era interessada nos estudos, principalmente em matemática, a vontade de se matricular na escola, mas sua mãe, irritada com a visita, a ofende de diversas maneiras, até mesmo colocando em pauta o abuso sexual sofrido pela filha, culpando-a pelo acontecido e alegando que ela havia “roubado seu marido”.

A desaprovação da mãe não impede Preciosa de buscar a escola sugerida pela diretora. Ela visita o local e faz a prova para se inscrever. Em outra cena, pela manhã, Claireece não encontra nada na geladeira. A fome e a indiferença da mãe a levam a roubar uma lanchonete, fugindo logo após para a escola em que havia se matriculado. No local, Preciosa é chamada pela professora para a sala e inicialmente relutante em participar da aula, a jovem acaba cedendo e conhece suas colegas, todas mulheres com histórias de vida diferentes. Chegando em casa, a jovem segue sendo humilhada pela mãe, que recusa a comida preparada por ela e obriga a própria filha a comer. Somos apresentados ao fato de que o peso de Claireece pode ter, inclusive, influência dos abusos da mãe.

Fonte: https://bit.ly/2T5Ijmg

Não bastando o contexto familiar desorganizado e problemático, a mãe de Preciosa, conforme mostrado em flashbacks, ensaia uma vida perfeita para receber a visita da assistência social, de modo a não perder o auxílio financeiro. O teatro organizado por ela é desmontado pela jovem, que, a pedido da mãe, vai à assistência social, mas é clara com a assistente quanto aos problemas em sua casa. Descobrimos também que a filha de Claireece nem mesmo mora em sua casa, sendo criada pela avó, que age passivamente frente aos comportamentos da filha, ou seja, mãe de Preciosa.

Várias cenas são exibidas ao longo do filme retratando a jovem imersa em introspecções e sonhos onde ela se vê feliz com o próprio corpo e aparência. Em uma delas, a imagem que ela vê refletida no espelho é completamente diferente da sua, mostrando uma mulher totalmente encaixada nos padrões de beleza. Entretanto, a baixa autoestima, o histórico de abusos e agressões e a dinâmica familiar desestruturada tornam-se cargas mais leves à medida que a jovem passa a frequentar mais as aulas em sua nova escola.

A empatia da professora com Claireece abre portas para a aprendizagem, e a jovem começa não só a ler melhor como também a produzir textos. No auge de sua gravidez, ela entra em trabalho de parto durante uma aula e é levada ao hospital. A assistência de sua professora e de suas colegas durante todo o processo mostra a força dos laços construídos durante as aulas. Apaixonada por sua criança, mas ainda sem uma estrutura familiar adequada para criá-la, Preciosa se vê em mais um impasse em sua vida. Ela retorna, um tempo depois, a sua casa, levando consigo seu filho recém nascido. A reação de sua mãe é extrema, mais do que nunca. Ela chega ao ponto de jogar a criança no chão e agredir fisicamente a jovem, que foge com o filho nas mãos. Num último ato de loucura, a mulher joga uma televisão nos dois, que conseguem escapar do ataque. Então Blu Rain, sua professora, num dos gestos mais humanos exibidos durante o filme, entra em contato com vários números e encontra um lar, ao menos provisório, para a jovem, na casa de um casal de mulheres, que a acolhem junto da criança.

A dedicação de Preciosa na escola, cada vez mais, começa a lhe trazer frutos. Ela chega a ser premiada por sua história e evolução por meio da educação. Entretanto, pendências de seu passado continuam a permear seu presente, com o agravante de uma notícia certamente perturbadora: a de que o pai da jovem, seu estuprador, havia falecido com o vírus da AIDS. Um exame acaba por revelar que Claireece também é portadora do vírus. Ao desabafar sobre isso em sala de aula, sua professora oferece a ela seu apoio e a jovem rebate dizendo que o amor em sua vida só lhe trouxe coisas ruins. A professora então, em uma das cenas mais belas e simbólicas do filme, desconstrói o conceito de amor trazido por Preciosa, difereciando o sentimento dos abusos sofridos por ela durante toda a sua vida.

Fonte: https://bit.ly/2IrDTSv

Nas cenas finais, numa das últimas visitas à assistência social, Claireece recebe a visita de sua mãe, que confessa na frente da filha e da assistente que era ciente dos abusos sexuais que ocorriam sob o seu teto, além de dizer que esses abusos já aconteciam quando Preciosa ainda era uma criança de três anos. Seu discurso, totalmente carregado de mágoa e rancor, culpabiliza a jovem pelos abusos, como se Claireece fosse a responsável pela separação dos pais. A chocante cena encontra seu desfecho quando a jovem decide fechar a porta do seu passado, levando consigo suas duas crianças e uma série de vivências e sofrimentos resignificados.

Análise

Apesar de se passar nos Estados Unidos, a história de Claireece, uma jovem negra e pobre, representa uma parte da população brasileira ainda à mercê de situações de abusos sexual, da mesma faixa etária da personagem. O contexto familiar de Preciosa não é uma realidade distante: pode estar mais perto do que imaginamos. Uma pesquisa realizada por Dos Santos (2014) apontou que o perfil de crianças que sofrem abusos sexuais é predominantemente feminino. Dados da pesquisa também expressam que, na maioria das vezes, a violência é intrafamiliar e tendo o pai da vítima como o agressor, o que vai de encontro com a história. Considerando o contexto histórico do filme, pouco se falava sobre educação sexual nas escolas. Atualmente, muito se discute em relação a isso, principalmente no uso como ferramenta de trabalho na escola, visto que, no âmbito escolar, há a possibilidade do assunto ser abordado de maneira profissional e lúdica.

Conforme Spaziani e Maia (2015), o processo de educação sexual parte do pressuposto que a criança é um sujeito de direitos, principalmente no que tange à informação. Educar crianças e adolescentes nesse viés seria prevenir doenças, possíveis gravidezes precoces e abusos sexuais. A importância desse processo nas escolas é indiscutível. Trazendo para o contexto do filme, se o momento histórico e o ambiente escolar de Preciosa fossem propícios para a instauração de um debate acerca da educação sexual, sua situação de vulnerabilidade poderia ser investigada e repassada o quanto antes aos dispositivos de assistência social e psicológica. Esse tipo de discussão também é necessária no âmbito familiar, mas não deve ser de exclusividade deste, visto que, infelizmente, ainda em muitas famílias, a desinformação sobre o assunto é enorme, além dos inúmeros casos de abusos dentro do próprio contexto familiar, como no de Claireece.

Entendendo o ser humano como um organismo moldado por suas interações, é fácil compreender que abusos sexuais trazem inúmeras consequências para o desenvolvimento, principalmente em crianças. Tais consequências abrangem aspectos físicos, sociais, psicológicos e sexuais, e podem variar de intensidade de acordo com determinados fatores (FLORENTINO, 2015). O vínculo entre a vítima e o abusador, por exemplo, pode ser um agravante dessas consequências. Outro fator é a diferença de idade entre vítima e agressor. Deve-se considerar outros aspectos, como se houve uso de violência física além da violação sexual durante os abusos. De toda forma, as consequências são inevitáveis – apenas mudam de vítima para vítima e de caso para caso.

Fonte: https://bit.ly/2SMiPuS

No filme, Preciosa é abusada pelo próprio pai. De acordo com Florentino (2015), as consequências psicológicas do abuso intrafamiliar também são diversas e até mais duradouras, isso porque há uma alteração das imagens parentais. Não só a imagem do pai é modificada como também a da mãe. No caso de Claireece, sua relação com a mãe tornou-se ainda mais confusa e problemática, visto que ela era conivente e omissa com a violência e ainda assumia uma postura de culpabilizar a jovem. Para a criança ou adolescente vítima de abuso sexual intrafamiliar, o núcleo familiar deixa de ter uma conotação de segurança e afeto para ser um espaço de relações conflituosas, dor e sentimentos confusos, o que acarreta sérias consequências no desenvolvimento psicológico e social. Entre os prejuízos observados em crianças e jovens vítimas de abuso sexual, como a própria Claireece, está o retraimento social e a dificuldade em estabelecer vínculos e em confiar nas pessoas. (FLORENTINO, 2015). Isso é observado na personagem ao longo do filme, que não possuía relações sociais saudáveis e não se sentia confortável em compartilhar seus pensamentos e sua individualidade com as demais pessoas, como exemplificado na cena em que ela deveria se apresentar para as colegas de sua nova escola.

Gottardi (2016) também ressalta algumas consequências no âmbito psicológico. Entre elas, a baixa autoestima, característica também percebida na personagem. A relação da jovem com sua imagem corporal é de desprezo e insatisfação, não só como consequência dos abusos sexuais como também resultado das situações de violência psicológica sofridas por ela durante sua história de vida. Sua mãe, assim como várias pessoas ao seu redor, contribuíram para o desgaste emocional de Claireece, ao ponto de que a adolescente chegou a ver sua imagem alterada no espelho, em uma distorção que a encaixava nos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade.

No filme, a jovem Claireece, inserida num novo contexto escolar, desenvolveu novas habilidades, percepções e ressignificou várias vivências. Conforme Gonçalves (2014), o papel da escola no que se refere à educação de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual é imprescindível. O ambiente escolar é tido como uma extensão da família, e, quando a criança está inserida em um ambiente familiar problemático, é na escola que ela deve ter uma referência de apoio e afeto, muito além da relação professor-aluno de ensinar e aprender. A postura do profissional de educação nesse contexto é essencial para que os impactos dos abusos sejam minimizados, visto que as consequências dessa violência se estendem no contexto escolar, às vezes representadas por dificuldades de aprendizagem e concentração, outras vezes por problemas de socialização e conduta (GONÇALVES, 2014). A professora de Preciosa, Blu Rain, comprometeu-se com a jovem não só em prol de sua educação, mas pensando em trabalhar suas habilidades pessoais de modo a reduzir os danos do abuso. É visível o desenvolvimento da personagem durante o filme, que consegue formar vínculos e ressignificar várias situações de sua vida, inclusive seguir com a criação de seus dois filhos, frutos do abuso, e conviver com o HIV, numa época em que pouco se sabia sobre a doença.

Fonte: https://bit.ly/2Vbg1UW

Muito além de apenas um veículo de entretenimento, o cinema pode ser uma ferramenta despertadora de insights e reflexões. Esse caso se aplica a Preciosa – Uma História de Esperança, um filme carregado de lições e discussões sobre violência, educação e família. Trazendo para o contexto brasileiro, muito se precisa discutir ainda sobre esses temas, de modo que a vida de jovens e crianças vítimas de abuso não seja eternamente definida e marcada pela violência, mas pela esperança de um futuro transformado pela educação.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

PRECIOSA – UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA

Título Original: Precious
Direção:
Lee Daniels
Elenco:
Gabourey Sidibe, Mariah Carey, Mo’nique, Paula Patton;
País:
EUA
Ano:
2010
Gênero:
Drama

REFERÊNCIAS:

DOS SANTOS, Creusa Teles. Abuso sexual com criança: uma demanda para o serviço social. 2014. 201f. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2014.

FLORENTINO, Bruno Ricardo Bérgamo. As possíveis consequências do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes. Revista de Psicologia. v. 27, n. 2, p. 139-144, maio-ago. 2015. São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil.

GONÇALVES, Cássia de Oliveira. Implicações do abuso sexual no processo educacional: um olhar para a criança. 2014. 92f. Monografia – Universidade de Brasília, Brasília, Brasil, 2014.

GOTTARDI, Thaíse. Violência sexual infanto-juvenil: causas e consequências. 2016. 71f. Monografia – Centro Universitário UNIVATES, Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil, 2016.

SPAZIANI, Raquel Baptista; MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi. Educação para a sexualidade e prevenção da violência sexual na infância: concepções de professores. Rev. Psicopedagogia, Bauru – SP. pg 61-71, 2015.

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Os 13 Porquês (13 Reasons Why): o passo atrás

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(Este texto traz spoilers da série)

A adolescência não detém o monopólio sobre a angústia, mas é certamente dona da maior parte do estoque. É um período que combina opostos de tal maneira que às vezes chega a soar como uma pegadinha maldosa e sádica da Evolução: ao mesmo tempo em que a sexualidade aflora, o corpo se altera radicalmente, trazendo insegurança e vergonha; ao lado da necessidade de aceitação vem, provocado pela imaturidade, o receio constante do embaraço; simultaneamente à descoberta dos próprios interesses vem a obrigação de definir o caminho profissional a seguir pelo resto da vida; e, claro, junto ao primeiro amor vem o primeiro coração partido e a constatação de que ainda não temos todas as ferramentas para lidar com estes. (Algo que, infelizmente, seguirá faltando a uma parcela considerável de adultos.)

13 Reasons Why, série produzida pela Netflix a partir de um livro do norte-americano Jay Asher, sem dúvida alguma compreende isto: acompanhando os estudantes de um colégio secundário, o projeto é estruturado em torno de sete fitas cassete deixadas pela jovem Hannah Baker (Langford), que, divididas em 14 lados (o último encontra-se em branco), trazem a voz da garota explicando os motivos que a levaram a se matar, atribuindo responsabilidades a vários de seus colegas – todos recebendo as gravações completas em um momento ou outro e, portanto, tornando-se conscientes não só do que fizeram, mas também das ações dos demais. Aliás, é ao lado do mais recente destinatário das fitas, Clay Jensen (Minnette), que somos conduzidos pela narração de Hannah à medida que o rapaz, apaixonado pela amiga, revive suas experiências e descobre as feridas emocionais e psicológicas de Hannah.

Fonte: http://zip.net/bgtHx9

Com isso, 13 Reasons aborda questões como bullying, assédio sexual e solidão (além de diversos outros; discutirei isto mais adiante) – temas inquestionavelmente relevantes e sérios que devem ser debatidos franca e frequentemente em uma sociedade na qual o suicídio entre adolescentes atinge números assustadores. Infelizmente, na maior parte do tempo a série esconde-se atrás da importância destes tópicos para justificar uma dramaturgia pobre, maniqueísta e irresponsável, apresentando-se como um Malhação com melhor acabamento.

Mas o pior é perceber como a série assume um caráter perigoso ao alimentar uma fantasia adolescente tragicamente comum: a do suicídio como forma de vingança, como recurso para “punir” aqueles que nos injustiçaram (como já descrevia Karl Menninger em 1933). Através de suas fitas, Hannah torna-se, em essência, a protagonista da vida de todos nelas mencionados, transformando-se no foco absoluto de suas conversas e pensamentos – e, considerando o público-alvo do livro e da série, comprovadamente mais susceptível ao efeito Werther (suicídios cometidos sob inspiração de exemplos famosos), a irresponsabilidade dos realizadores torna-se ainda mais reprovável.

Pois o que muitos dos espectadores mais jovens terão dificuldade de perceber é que por trás da “justiça” de Hannah há uma pesada manipulação narrativa: os propósitos da garota são alcançados porque o roteiro precisa que sejam. Além disso, como as “razões” enumeradas vão se acumulando ao longo dos episódios, este empilhamento de cicatrizes acaba por ocultar as feridas reais, misturando arranhados e cortes profundos sem qualquer cuidado e igualando ações que nada têm de similares (e, assim, a publicação não-autorizada de um poema escrito pela moça – sem identificá-la – é empurrada para uma lista que inclui estupro e stalking, por mais que pontualmente algum personagem tente apontar a discrepância).

Como se não bastasse, como o espectador sabe que o que Hannah descreveu é basicamente verídico, a série não deixa espaço para a interpretação e a subjetividade – e a afirmação da veracidade nem seria necessária, já que o que deveria importar é que para Hannah os incidentes e as dores eram reais. Ora, uma obra que se propõe a discutir um tema tão complexo deveria ser mais honesta ao fazê-lo, abordando o debate sem simplificações dramáticas e, principalmente, sem o cinismo de aqui e ali questionar pontos menores (Zach, afinal, não jogou o bilhete fora) enquanto reafirma a verdade objetiva de todos os maiores.

Fonte: http://zip.net/bhtHHp

E, vale repetir, 13 Reasons não precisava deste maniqueísmo: a depressão e o suicídio são problemas complexos exatamente por envolverem a subjetividade do paciente/vítima – assim como são reais os traumas que o autoextermínio provoca em quem ficou para trás e que não têm necessariamente a ver com “responsabilidade” (embora responsabilizar-se seja parte da natureza humana), mas com empatia pela dor alheia e com o sofrimento da perda de alguém amado ou a pura constatação do desperdício representado por uma morte precoce.

Aliás, a obsessão da série por “culpa” é igualmente problemática. Tomemos, como exemplo, o sr. Porter (Luke), responsável pelo aconselhamento psicológico oferecido aos alunos do colégio: incluído na lista de Hannah por não conseguir restaurar nesta o ímpeto de viver (e por não tê-la seguido quando deixou a sala), ele obviamente faz o possível para extrair da moça as informações necessárias para ajudá-la, acreditando em seu relato e oferecendo-se para apoiá-la caso resolvesse denunciar o estupro cometido por Bryce (Prentice) – e o potencial destrutivo da fita acarreta, no mínimo, em chances consideráveis de que o sujeito seja prejudicado injustamente. E o que dizer de Sheri (Alexus), citada nas fitas por ter derrubado uma placa de “Pare” e se recusado a informar à polícia imediatamente? Sim, é uma atitude irresponsável, mas como isto poderia ser visto como uma das razões para o suicídio de Hannah? Culpa pela morte de Jess (Larracuente)? Como, se Sheri não a impediu de relatar o ocorrido (algo que Hannah fez logo em seguida)?

E não há sequer como sugerir que os realizadores não culpam figuras como o Sr. Porter e Sheri, já que, além de Hannah, o protagonista da série, Clay, claramente o faz. (E que tal discutirmos como a produção encarrega um homem de defender os interesses da jovem suicida, incorrendo no velho roubo de protagonismo mesmo se passando por uma narrativa “inclusiva”?)

Fonte: http://zip.net/bmtHrl

Por falar em Clay, é preciso reconhecer como  Dylan Minnette, um ator talentoso e carismático, quase nos faz ignorar como está vivendo o que é fundamentalmente um fantoche narrativo, agindo de maneira errática apenas para atender às necessidades dos roteiristas – e por mais que a série tente justificar a demora do rapaz para ouvir as fitas, há um ponto a partir do qual se torna ridículo vê-lo atirar os fones de ouvido para o lado e repetir que não consegue mais prosseguir na tarefa, não tendo sequer o impulso de buscar a fita na qual é mencionado. Ainda mais ridículo, porém, é perceber como ele começa a se vingar dos demais citados sem sequer chegar ao fim do relato – por mais que seja alertado de que sua percepção será alterada depois que descobrir o que Hannah disse a seu respeito.

O que nos traz à desonestidade dos responsáveis pela série, que criam um falso pretexto para prender a atenção do espectador: a presença do protagonista nas fitas. O que Clay teria feito para merecer figurar na lista? Por que Tony (Navarro) afirma tão categoricamente que o jovem levou Hannah a se matar quando sabe que esta diz que Clay não merecia estar na lista? (Para obrigá-lo a ouvir o resto? Por favor.) E como o rapaz pode declarar “tudo é culpa minha!” ao descobrir que está nas gravações por sua gentileza ou, no máximo, por não ter insistido em permanecer no quarto depois que Hannah o expulsou várias vezes aos gritos? Não, a verdade é que 13 Reasons não tem coragem de pintar seu personagem principal com cores sombrias (e, sim, Clay é o protagonista da série, não Hannah), mas não hesita em sugerir falsamente para o público que ele talvez tenha um lado desconhecido apenas para manter nosso interesse na narrativa até estarmos praticamente no último episódio.

E prefiro nem discutir como Tony, depois de insistir para que Clay escute as fitas, chegando a levá-lo para uma escalada – um dos momentos mais ridículos da narrativa -, passa a adiar o instante no qual o amigo ouvirá o que foi dito ao seu respeito, afirmando que ele precisa estar num “espaço mental” adequado, o que envolve jantar e, então, levá-lo para um despenhadeiro (querem lugar melhor para alguém que possivelmente descobrirá algo traumático?).

Fonte: http://zip.net/bgtHx9

Já de um ponto de vista puramente de linguagem audiovisual, 13 Reasons oscila entre o óbvio e o equivocado: por um lado, as mudanças na temperatura da cor, saltando dos flashbacks quentes às cenas frias do presente, são um lugar-comum, mas até compreensíveis; por outro, os efeitos sonoros de “shuuuuush”, inspirados em Lost e que marcam as mudanças no tempo da narrativa, já se tornaram clichê… bom, em Lost. E se a ideia de manter um ferimento/curativo na testa de Clay para separar as épocas é eficaz, isto é sabotado pela distração provocada por uma maquiagem no mínimo pedestre.

Além disso, a série ignora a evolução de linguagem trazida pelo binge-watching (e pela qual a plataforma que a exibe, a Netflix, é co-responsável) ao ocasionalmente mencionar, no primeiro ato de certos episódios, incidentes ocorridos no desfecho dos anteriores, o que soa como pura encheção de linguiça (afinal, como converter 255 páginas do livro em 13 horas de material?). Para completar, o recurso de trazer Clay “enxergando” incidentes passados ou “escutando” acusações a seu respeito acabam funcionando menos como maneira de introduzir flashbacks e mais como sintomas de uma doença psiquiátrica, já que os roteiristas parecem confundir ato falho auditivo com alucinação provocada por algo que só posso identificar como esquizofrenia (não, não estou brincando; em certo momento, cheguei mesmo a achar que a série revelaria que Clay tinha a doença, já que não podia acreditar que todas aquelas transições fossem apenas firula dramatúrgica).

Mas talvez eu não devesse ter duvidado da preguiça dos roteiristas (contem quantas vezes os personagens dizem “Seriously?!” ao longo da temporada), já que não conseguem sequer manter uma consistência mínima da trama em apenas treze episódios: em certo instante, por exemplo, Hannah diz que ninguém jamais percebeu que as garotas da foto eram Courtney (Ang) e ela, mas, momentos depois, ao menos duas pessoas as abordam afirmando tê-las reconhecido; já em outro episódio, a moça diz que você não pode mudar as outras pessoas, “mas pode mudar a si mesmo”, contradizendo-se minutos depois ao afirmar que “ninguém muda de fato”.

Fonte: http://zip.net/bmtHrl

Além disso, é ridículo que a série sugira que cabe a Clay, movido por Hannah, trazer paz para os pais de Jeff ao revelar que ele não estava bêbado durante o acidente, já que identificar o nível alcoólico do rapaz seria uma das primeiras preocupações de qualquer médico-legista. E como aceitar a estupidez de praticamente todos os adultos retratados em 13 Reasons, que se mostram incapazes de perceber até mesmo o subtexto – nada sutil – de uma conversa mantida à sua frente (como na cena em que Tony e Clay trocam provocações diante do pai deste último)? Para finalizar, nenhum pai minimamente responsável ouviria o filho abordar questões como abuso sexual e agressão sem insistir até ouvir a história completa – especialmente uma mãe tão controladora quanto a de Clay (Hargreaves), que, no entanto, apenas observa o filho se afastar sob a justificativa de “Mãe, preciso ir agora; depois te conto” segundos depois de sugerir estar a par de um crime.

A verdade, porém, é que a série se mostra mais preocupada em manter o espectador interessado do que em discutir com honestidade as questões que apresenta. Não é acaso, portanto, que constantemente assuma artificialmente a estrutura de thriller para gerar um suspense desonesto – como, por exemplo, ao revelar que alguém levou um tiro no final do penúltimo episódio depois de estabelecer que ao menos três personagens estavam armados, sacrificando as revelações feitas sobre o estupro de Hannah ao tentar levar o público a ficar curioso acerca da identidade não só de quem atirou, mas também de quem foi alvejado. Aliás, 13 Reasons não é, em sua essência, o drama que finge ser, mas sim um whodunit que promete, desde o princípio, revelações surpreendentes ao longo do caminho – e isto não seria tão reprovável caso estas revelações não comprometessem qualquer tentativa de debate sobre depressão e suicídio.

E é justamente isso que os roteiristas fazem ao identificar um Vilão (sim, com “V” maiúsculo) responsável pelo Ato que realmente destrói Hannah – um vilão tão estúpido e caricatural que cai até mesmo no velho clichê de confessar tudo para o mocinho enquanto é gravado secretamente. Para piorar, o que Bryce faz é tão repugnante que todos os outros elementos presentes na lista de Hannah empalidecem completamente: afinal, como aceitar que Ryan (Dorfman), Sheri, Courtney e Alex (Heizer) sejam sequer comparados, direta ou indiretamente, a um estuprador serial? E como Hannah encontra coragem para incluir Jessica, igualmente vítima de estupro, apenas por um desentendimento acerca de Alex? (Além disso, permitam-me um breve segundo para apontar como a garota encontra tempo para gravar seis fitas e meia, mas não para deixar cinco linhas para os pais – os únicos personagens retratados com algum grau de complexidade ao longo dos episódios.)

Fonte: http://zip.net/bhtHHp

Para encerrar, é impossível deixar de observar o surpreendente moralismo de 13 Reasons, que basicamente pune Jessica (Boe, uma das melhores revelações do projeto) por ser sexualmente ativa, levando-a ao alcoolismo e a ser vítima de um estupro, ao mesmo tempo em que traz Hannah comentando acerca do próprio estupro: “Graças a você, (Bryce), fiz jus à minha reputação” – uma referência incrivelmente machista ao fato de ser chamada de “fácil” na escola. Sim, é admirável que a série mostre Hannah se sentindo ofendida ao ser listada como “melhor traseiro” do colégio em vez de sugerir que ela deveria se magoar apenas se fosse objetificada negativamente, mas para cada acerto como este há outros tropeços como o fato de a série trazer vários personagens gays, mas um único beijo entre duas pessoas do mesmo sexo: duas garotas, claro, já que beijo entre mulheres é encarado como algo sensual, não “repulsivo” como aquele entre dois homens. Ou seja: retratar estupro e suicídio graficamente é algo aceitável, mas trazer dois rapazes se beijando, não.

O curioso é que, em sua superfície, 13 Reasons toma iniciativas corretas: escala um elenco diversificado e inclusivo, traz personagens com diferentes orientações sexuais e inclui alertas de “gatilho” no início dos episódios mais pesados. Contudo, basta mergulharmos um pouco em sua execução e as iniciativas se encolhem diante das abordagens desastrosas com que são desenvolvidas. Como se não bastasse, há o puro excesso da trama, digna de algo como Barrados no Baile: ao longo dos treze episódios, testemunhamos bullying, dois estupros, misoginia, alcoolismo, abuso doméstico, uso de drogas e negligência parental – além, obviamente, do suicídio de Hannah e das consequências das fitas, que envolvem ao menos mais três tentativas de suicídio (Justin, Clay e Alex). Ah, sim: também testemunhamos a história de origem de um destes adolescentes que certo dia invadem a escola e metralham colegas e professores (estou falando, claro, de Tyler e seu baú de armas).

Aqui o problema é bem simples: uma série que quer falar sobre tudo acaba não conseguindo falar direito sobre nada.

Fonte: http://zip.net/bltG2P

Até entendo que alguns prefiram interpretar que 13 Reasons não é uma série sobre um suicídio, mas sim sobre a necessidade de tratarmos melhor uns aos outros; infelizmente, do título à trama, passando pelo desenvolvimento dos personagens, esta é uma interpretação difícil de sustentar. Afinal, uma coisa é apontar como frequentemente deixamos de prestar atenção ao sofrimento alheio; outra é responsabilizar todos que deixam de fazê-lo pelo suicídio de alguém (e digo isso como alguém que tem relativa experiência tanto com a depressão quanto com o impulso suicida).

Meu receio, porém, é que aqueles que extrairão da série a “mensagem” de que devem se solidarizar com os que os cercam já o fariam por si mesmos, sem a necessidade de uma lembrança em forma de capítulos; por outro lado, há um risco infinitamente maior de que aqueles que se encontram emocional e psicologicamente vulneráveis acabem vendo, na tela, um modelo perigosamente fácil de emular.

Seriously.

Observação: se me permitem indicar algumas obras que tratam de forma consideravelmente mais sensível e responsável as questões abordadas em 13 Reasons, sugiro Para Sempre na Memória, Depois de Lúcia, o documentário Bullying, Atração Mortal, As Virgens Suicidas e As Vantagens de Ser Invisível.

Leia também: 21 apontamentos sobre suicídio.

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