O Exterminador do Futuro e Alien: o vanguardismo anti-arquetípico em Ellen Ripley e Sarah Connor

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A indústria do entretenimento fílmico não é conhecida por se desfazer facilmente de seus estereótipos. Exemplos são diversos e repetitivos, principalmente ao se tratar de gêneros consagrados, ou de fácil retorno ao investimento de filmagem como, por exemplo, a ficção científica, os faroestes, as comédias românticas, ação, terror/horror, epopeias, filmes policiais, dramas de época, etc.

Neste cenário salta aos olhos duas incursões fílmicas, inseridas no mesmo modelo cenográfico da ficção científica: A Tetralogia “Alien” e a Tetralogia “O Exterminador do Futuro” (Terminator), ambas com quintos filmes também para reintroduzir suas mitologias às novas gerações: “Prometheus” (2012) e “O Exterminador do Futuro: Gênesis” (2015). Outro ponto é que nestes dois últimos filmes houve uma regressão em suas propostas historiais, rendendo-se a clichês cinematográficos clássicos, quando mulheres são colocadas em protagonismos enviesadas pelos lugares comuns do olhar de produtores e executivos.

Tanto nos filmes Alien como nos Termitors há a presença de personagens femininas centrais, Sarah Connor e Ellen Ripley, que não precisam se apoiar em arquétipos ou estereótipos para sustentarem sua força de representação nas projeções que fazem parte. Acompanhamos o crescimento destas mulheres ao longo dos filmes, seus enfrentamentos, dramas e desenvolvimento.

Ellen Ripley e Sarah Connor nos primeiros filmes das franquias Alien e O Exterminador do Fututro.

O impacto na sétima arte de Connor e Ripley permanece como um legado a ser observado com atenção e respeito, pois muitas vezes, ainda hoje, vemos que muitas das lições deixadas pelas personagens de Sigourney Weaver e Linda Hamilton são deixados de lado em prol dos ditames mercadológicos e ranços culturais perante a figura feminina no cinema.

Entre a Terra do Futuro e LV 426

Seja numa Terra de um futuro pós-apocalíptico ou num planetoide a anos-luz de nossa casa, as franquias de ações protagonizadas por Sarah Connor e Ellen Ripley fixaram suas raízes profundamente na ficção científica, adicionando elementos dramáticos, vanguardismo em efeitos especiais e grandes atuações. A seguir temos os filmes que compõem estas franquias:

A franquia Alien:

Alien, o Oitavo Passageiro (1979): uma obra que é considerada uma obra-prima da ficção científica, por mudar a visão sobre os extraterrestres – não mais criaturas humanoides e amigáveis – para um monstro caçando tripulantes um a um; o orçamento baixo não suprimiu a boa direção, o andamento e qualidade do roteiro e equalização entre falas e atuações;

Aliens, O Resgate (1986): nas mãos de James Cameron a continuação ampliou e melhorou algumas pontes narrativas deixadas no primeiro longa, adicionando elementos, e aproveitando os simbolismos da recém-criada mitologia da franquia. A inserção do componente de ação deu ares de blockbuster à obra, se aproveitando do estrondoso sucesso já cristalizado na luta de Ellen Ripley anos antes;

Alien 3 (1992): neste ponto as coisas começaram a se perder um pouco. Dificuldades no script, equipe técnica, orçamento e o desgaste em torno de alguns elementos da franquia sobressaltaram-se na falta de reinvenção destes elementos. Apesar destes problemas o filme teve relativo sucesso nas bilheterias, mas ficou distante da aceitação da crítica especializada, apesar dos grandes avanços estéticos apresentados;

Alien: Resurrection (1997): a verdade é que o apelo e carisma de Sigourney Weaver conseguem prender a atenção durante o filme, desde que a mesma esteja no plano central das ações. Para além disso, não há novas propostas ou grandes desenvolvimentos do rico simbolismo dos aliens, tanto na ressureição de Ripley como numa tentativa (utilizada novamente em Prometheus) de humanização dos alienígenas em experimentos híbridos;

Prometheus (2012): após décadas distante do seu criador, Ridley Scott e o artista plástico H.G. Giger, uma nova leitura da franquia Alien chegava aos cinemas. Com uma expectativa tão alta quanto a obra original, o longa acertou em pontos interessantes, dentro da própria mitologia da tetralogia original, e propondo novos horizontes de grande potencial, mas pecou no casting, desenvolvimento de alguns personagens e na priorização da estética – impecável tecnicamente – ao invés do suspense e cadenciamento dos eventos.

– Há ainda os crossovers Alien vs. Predator (2004) e Aliens vs Predator: Requiem (2007), dos quais apenas o primeiro merece alguma menção ou comentário, por tentar colocar em tela as duas figuras monstruosas mais famosas do cinema, reciclando, mesmo com má qualidade, o subtexto d’As Montanhas da Loucura de H. P. Lovecraft.

A franquia O Exterminador do Futuro:

 – O Exterminador do Futuro (1984): em meados dos anos 80 a ficção científica já estava estabelecida como gênero no cinema, mas de uma maneira mais positiva. O tom utilizado no filme é noturno, frio e envolto num assombroso futuro pós-apocalíptico causado por uma insurreição de máquinas, tudo entrelaçado com viagem no tempo e pitadas cyber-punk. Somos apresentados pela primeira vez a uma ainda jovem e assustada, mas não ingênua, SarahConnor, e o temível T-800 de Schwarzenegger;

O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991): com este filme houve o que ainda é considerado uma das maiores, senão a maior, sequência de um filme de todos os tempos (juntamente com The Godfather II  e The Dark Knight). Com um grande aprofundamento da mitologia criada no primeiro longa, novos personagens são inseridos, e há uma complexificação da narrativa, enriquecendo-a e elevando a trama ao nível de clássico absoluto dos gêneros ação\ficção científica;

O Exterminador do Futuro 3: A Rebelião das Máquinas (2003): após a perda dos direitos criativos de James Cameron, infelizmente a riqueza deixada pelos antecessores foi colocada de lado em detrimento apenas do retorno financeiro. A família Connor perde sua importância e representatividade, e as máquinas, antes suportes da trama, agora são utilizadas estritamente para o frenesi das cenas de ação, descontextualizadas da estória.

O Exterminador do Futuro: A Salvação (2009): nesta famigerada continuação, Christian Bale aparece nitidamente desconfortável num John Connor distante da primeira encarnação dos anos 90, além de uma falta de ritmo e substrato dramático, comuns nos primeiros filmes da franquia. Com inúmeros problemas no set de filmagem, o que temos neste longa é uma tentativa descartável de “salvar” a franquia, já desgastada devido ao filme de 2003;

O Exterminador do Futuro: Gênesis (2015): a última tentativa de colocar os exterminadores nos cinemas se mostrou prodigiosa no início. Com um plot centrado novamente nas possibilidades da viagem no tempo, vias de desenvolvimento são abertas e até bem aproveitadas, enquanto dependentes das duas primeiras obras. A partir do ponto que precisa caminhar por si infelizmente o filme se perde em suas próprias pretensões, findando o que seria um novo projeto tripartite para a franquia;

– A tentativa de emplacar uma série centrada em Sara Connor em O Exterminador do Futuro: As Crônicas de Sarah Connor, estrelada por Lena Headay, foi bem sucedida em sua primeira temporada, mas não conseguiu seguir adiante após seu segundo ano de exibição, apesar de tramas relativamente interessantes sobre campos inexplorados da mitologia do embate entre seres humanos e as máquinas exterminadoras.

O Exterminador do Fututro: As crônicas de Sarah Connor.

Mulheres de Esparta

Diferente do que nosso consagrado poeta musical Chico Buarque afirma em uma de suas trovas, nem todas as mulheres são de Atenas, há aqueles de Mecenas, Olímpia, Tebas e Mileto e, por que não, de Esparta? Mas antes de fazer esta contraposição uma ressalva é importante, este argumento se coloca em pauta devido ao que já foi exposto até aqui, ou seja, é possível haver força e presença feminina sem recorrência a lugares comuns e muletas narrativas e de gênero, como os dois extremos mais utilizados: a donzela em perigo ou a transformação da figura feminina em êmulo do sexo oposto. Com a sugestão de reflexão na cidade de Lacedemônia, suas mulheres seriam dotadas de coragem e decisão sem perder sua feminilidade, afetividade e emoções, estas são Ellen Ripley e Sarah Connor.

A importância destas personagens e, principalmente Ripley, é considerado como um ponto de viragem na indústria cinematográfica por Elsa Margarida Rodrigues (2010): “Os anos de 1970 marcam um ponto alto no tratamento do género na ficção científica com a publicação de um número significativo de textos que Joanna Russ, mais tarde, lassificaria como utopias feministas, e que podem servir de fundo ao aparecimento da primeira heroína do cinema de ficção científica: Ellen Ripley.” (RODRIGUES, 2010, p. 214).

Ellen Ripley e Sarah Connor em Aliens, O Resgate (1986) e O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991).

Na esteira e legado deixados por Ripley, Sarah Connor ainda é a principal herdeira da mãe da ficção científica hardcore, juntamente com a mais nova inserção representativa por parte da Imperatriz Furiosa de Mad Max: Fury Road. Nos primeiros filmes, de 1979 e 1984 Connor e Ripley ainda possuem muitos traços menos imbatíveis e mais fragilizados em seus trejeitos, mesmo que em germe, haja a heroína que se manifestaria no desenrolar da obra e em suas continuações. Elsa Margarida Rodrigues faz a conexão simbólica e de importância imensurável de Ellen Ripley e Sarah Connor para os cinemas:

No entanto, Ellen Ripley pode justificar-se, não pelo impacto do feminismo no modo de conceber e retratar as políticas de gênero, mas no facto de Alienser um filme de fronteira entre a ficção científica e o terror, desempenhando Ripley o papel de rapariga sobrevivente, a final girl dos filmes de terror. Talvez mais ilustrativa do que Ellen Ripley, Sarah Connor (Linda Hamilton) é uma das heroínas do cinema de ficção científica que mostra a versatilidade feminina, combinando vários estereótipos e ilustrando as alterações na percepção do papel da mulher entre a década de 1980 e a de 1990. No primeiro filme Terminator (James Cameron, 1984), Sarah é uma jovem atraente, ingénua, com um aspecto quase infantil, um emprego mal pago, sem grandes preocupações além de divertir-se. A estas características acrescenta-se o facto de se instituir como objecto de amor e desejo (por Kyle Reese) e ser reponsável por gerar, cuidar e educar uma criança que será o futuro líder da humanidade. Corresponde aos estereótipos femininos, encerrando a simbologia cristã de ter sido escolhida para dar à luz o salvador, mas revela-se independente e auto-suficiente, fazendo o espectador acreditar que ela será capaz de desempenhar eficazmente o seu papel de mãe do líder da oposição humana na guerra contra as máquinas.

A mudança em Sarah Connor que sua antecessora astronauta, houve um ciclo mais radical, entre o primeiro e o segundo filme, seu contato com o monstro do futuro vindo do futuro modificou sua personalidade, sua visão de mundo, ações e posturas, principalmente pela vinda do seu filho, destinado a ser o salvador do apocalipse cibernético: “Para que John tivesse esperança de um futuro melhor, Sarah desistiu da vida de heroína, dos sonhos heroicos e da sua chance de viver livre da mancha causada pela violência do futuro infligida ao presente. Mãe guerreiras da areia, sem varinha em tempos passados, fizeram tais sacrifícios para melhorar suas sociedades. Com grandeza empurrada sobre ela, Sarah não tinha muita escolha. Ainda assim, nós a admiramos para o que ele se torna, a mãe de todos os guerreiros.” (CULVER, 2009, p. 92, tradução livre).

Sarah e John Connor.

E, como já comentado, a autora portuguesa reforça o argumento do crescimento de Sarah Connor no segundo filme dos exterminadores do futuro. O mais importante neste desenvolvimento foi o cuidado dos responsáveis pela obra de não caírem em masculinizar a personagem principal, fazendo-a uma guerreira completa, sem deixar para trás sua personalidade, crenças e complexidade emocional:

No Terminator 2, Sarah ultrapassa a imagem de jovem desprotegida. De acordo com Telotte (1995: 179), no segundo filme ela assume o estereótipo da ultra feminista. O seu corpo torna-se musculado, uma versão feminina do exterminador que enfrentara no filme anterior, mostrando que as oposições humano/máquina e homem/mulher podem ser superadas na figura da mulher, através da assimilação da máquina e do homem. No início do filme, Sarah está internada num asilo para pessoas com problemas mentais, onde é exibida como objecto clínico, atestando que essa superação não é isenta de custos. Apesar de ser encarada como anormal, Sarah representa a capacidade humana de modelação, de adaptação às circunstâncias, de sobrevivência em ambientes adversos e de resposta às exigências que são colocadas. Neste filme ela não é apenas a mãe de John Connor, mas ela própria é profetisa e salvadora da humanidade. Apesar da resistência física que o corpo musculado lhe confere e da aparente ausência de emoções, Sarah mostra não ter perdido a sua essência humana ao ser incapaz de matar Miles Dyson, o responsável pelo computador Skynet que conduzirá a humanidade à terceira guerra. Passível também de uma leitura de gênero e da fusão entre humano e máquina é a inversão de papéis que acontece entre Sarah e o exterminador, o androide masculino que no segundo filme se transforma numa figura paternal, a quem Sarah atribui a responsabilidade de proteger e acarinhar John Connor. Depois de Ellen Ripley e Sarah Connor, as heroínas de ação (action babes) tornam-se frequentes nos vários gêneros cinematográficos, substituindo as big bosomed babes 130 de décadas anteriores (RODRIGUES, 2010, p. 214-215).

Tanto o Alien como o ciborgue possuem em si um simbolismo do enfreamento de gênero. No primeiro caso, todo o designer de H.R. Giger foi pensado como uma mimetização da genitália masculina, e todo o processo de nascimento e maturação do alienígena também estão envoltos a estes temas, desde o nascimento por meio de um “estupro” sanguinolento até sua forma de reprodução indireta.

Ripley e a Rainha dos Aliens.

Para as máquinas da franquia Terminator, ao menos nos dois primeiros e melhores filmes, sua presença, eficiência mortífera e força implacável contrastam com seu alvo principal, principalmente quando levamos em consideração a versão inicial de Sara Connor (e no segundo longa por meio de seu filho John), ainda descrente do risco de sua vida. Esta situação só é alterada no segundo filme, com o devido preparo da protagonista, sem masculinizá-la ou encobertá-la de voyeurismo sexualista.

Nas continuações, Aliens, O Resgate (1986) e O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991), há o incremento de um novo óbice para o enfrentamento das protagonistas. Para Ripley, agora preocupada em garantir a segurança da pequena Rebecca, há uma das mais épicas batalhas da ficção científica com a rainha dos Aliens, que também defende sua prole. Nesta cena observamos uma rima imagética entre a máquina utilizada por Ripley e a líder dos alienígenas, numa linguagem de autotransformação em monstro, para lutar contra o inimigo; este recurso simbólico voltaria no quarto filme dos Aliens, mas, com menos eficácia.

Já Sara Connor encontra um novo nêmesis na figura de um verdadeiro demônio positrônico, o T-1000 brilhantemente interpretado por Robert Patrick. A nova máquina, que caça Connor, seu filho e o T-800 que os protege, é fria, sádica, incansável e praticamente indestrutível, para derrotá-la há a unificação de esforços ente Connor e o exterminador de Schwarzenegger, emulando a devolução da criatura para o inferno. Além disso, se o Alien possui em sua língua o símbolo fálico máximo, no T-1000 as extremidades de seus membros cumprem tal papel, inclusive com uma cena chave ao final da segunda obra, mimetizando também uma violação corporal.

Sarah Connor e o vilão T-1000.

Um longo caminho…

O caminho a ser percorrido pelos filmes contemporâneos, na trilha deixada por estes dois ícones dos filmes de ação, é longo e recheado dos mais imprevisíveis (ou não tanto assim) óbices da indústria cinematográfica. Como vimos, não é preciso se render à estereótipos, arquétipos ou clichês estabelecidos para se fortalecer a presença feminina, não apenas em filmes de ação e ficção científica, mas em qualquer obra fílmica, como Blue Jasmine (2013) Le Geum-ja (2005), Million Dollar Baby (2004), The girl with the dragon tatoo (2011), Zero Dark Thirty (2012), The Silence of the Lambs (1991), Fried Green Tomatoes (1991), The Piano (1993),  e os franceses e La doub le vie de Véronique (1991) Trois Couleurs: Rouge (1994) e Les fabuleux destin d’Amélie Poulain (2002).

Por esta razão chega ser decepcionante em pleno 2015 vermos, por exemplo, a personagem em de Brice Dallas Howard em Jurassic World correr de um tiranossauro com saltos agulha, por puro fetiche ou fan-service, a indefensável (e duramente criticada) caracterização de Laura em Street Fighter V ou então os movimentos contrários à protagonização feminina, por parte do público (até mesmo em movimentos coletivos de boicote), em filmes recentes como Mad Max: Estrada da Fúria, Frozen e Detona Ralph, e muitos outros exemplos que poderiam ser citados. Resta-nos torcer para que os maiores estúdios de cinema hollywoodianos voltem seu olhar para um perfil de protagonismo feminino que vá além das limitações e superficializações históricas que estas personagens costumam receber.

REFERÊNCIAS: 

CULVER, Jennifer. Sarah Connor’s Stein. In: IRWIN, Willian. Terminator and Philosophy: I’ll be back, there fore I am. Edited by Richard Brown and Kevin Decker. New Jersey: John Wiley & Sons, 2009.

RODRIGUES, Elsa Margarida da Silva. Alteridade, Tecnologia e Utopia no cinema de ficção científica norte-americano: a Tetralogia Alien. Tese de Doutoramento. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2010.

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“Contatos de 4º Grau” e os milagres forjados para entreter

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“A crença pós-modernista no relativismo da verdade, aliada à velocidade dos meios de cultura de massa, nos quais os intervalos de atenção são medidos em minutos, nos deixa com um atordoante conjunto de alegações de verdade medidas em unidades de ‘infonimento’, ou seja, de informação entretenimento. Deve ser verdade – vi na televisão, no cinema, na internet” – Michael Shermer

A maior característica do cinema é fazer o expectador acreditar, dentre outras coisas, que se pode crer em homens que voam, em viagens para outros universos, conspirações demoníacas e até em vampiros apaixonados. Entramos em uma sala escura para, geralmente, sermos enganados e ludibriados. Cabem aos envolvidos – roteiristas, maquiadores, diretores e outros – demonstrar todo o seu talento em carregar o público pelas mãos até onde ele quer. Porém, há dois problemas: quando o filme se predispõe a ser baseado em fatos reais ou quando é uma ficção que afirma os fatos narrados como verídicos.

Na primeira, temos o dilema de seguir, independente do fato escolhido, a visão dos responsáveis – vide os filmes de guerra americanos onde, geralmente, seus soldados são bravos heróis de coração justo e destemido, “cruzados” escolhidos para lutar contra o mal disforme e desumanizado que quer dominar o mundo. A favor do telespectador, temos a internet, livros e documentários que podem ampliar a sua visão e preencher lacunas históricas que ficaram fora do enredo “baseado em fatos reais”.

O segundo problema está na nova onda de Hollywood, os famosos found footage, ou filmes perdidos, filmagens caseiras, apresentadas em forma de documentários, expostas como uma série de acontecimentos verdadeiros, o paradoxo está de que em sua maioria, os temas tratados envolvem, de algum modo, o sobrenatural. Um dos filmes mais famosos foi A Bruxa de Blair(The Blair Witch Project, 1999), o primeiro do mercado mainstream, e Atividade Paranormal(Paranormal Activity, 2007). Ambos utilizaram de diversos meios para levar o público a crer em tudo o que estava vendo, pois o sucesso desse estilo de filme é resultado da credibilidade forjada; o expectador tem que criar alguma ligação com a história retratada, isso por que é sua mente que vai desenvolver e cunhar grande parte da tensão da trama, já que visualmente pouco se vê e muito é sugerido. Logo após os lançamentos, muitas pessoas acreditaram na veracidade dos filmes citados acima. Passado algum tempo, e o anúncio das continuações, era percebido a brincadeira. Logo passou a ser piada o que antes era verossímil. Mas no meio disso tudo há um “bastardo” que ainda gera dúvidas pela campanha de marketing duvidosa criada: Contatos de Quarto Grau (Fourth Kind, 2009).

Já no trailer, temos Milla Jovovich, atriz que interpreta a protagonista do longa, afirmando categoricamente que tudo que iremos ver é baseado em relatos reais. Tal campanha publicitária é perfeita para uma sociedade que busca e quer acreditar no sobrenatural.

Segundo o material promocional do filme, o cineasta Olatunde Osunsanmi estava na Carolina do Norte, EUA, quando soube por uma colega que havia uma psicóloga que acabara de se mudar do Alaska com uma história muito interessante. Osunsanmi foi atrás da moça, e esta lhe relatou os resultados de um estudo sobre um grupo de pessoas com distúrbios do sono. Ele ficou tão entusiasmado que não só decidiu contar a história como usou as gravações e filmagens dos pacientes da terapeuta e acrescentou uma entrevista com a própria.

Segue abaixo a sinopse utilizada na divulgação do filme para a imprensa:

No outono de 2000, os pacientes da terapeuta Abigail Tyler, sob hipnose, exibiram comportamentos que sugeriam encontros com não humanos. Antes de dormirem, todas as pessoas se lembravam de uma coruja branca do lado de fora da sua janela. Elas acordavam paralisadas, ouvindo barulhos assustadores por detrás das suas portas antes que um desconhecido os arrancava dos seus quartos aos gritos. As lembranças subsequentes ficavam obscuras.

Investigando o fenômeno, a médica descobriu uma história de pessoas desaparecidas e atividade bizarra da região, datando da década de 1960. Quanto mais ela vasculhava, mais ela acreditava no inacreditável: as histórias dos seus pacientes não eram memórias falsas, mas prova abrangente de abduções alienígenas.

Usando filmagens de arquivo nunca antes vistas integradas ao filme, Osunsanmi expõe as aterrorizantes revelações de múltiplas testemunhas. Suas descrições sobre terem sido visitadas por alienígenas compartilham detalhes perturbadoramente idênticos, a validade do que é investigado ao longo do filme.”

Adicione a isso fatos inexplicáveis ocorridos no Alaska, como avistamento contínuo de OVNI’s na região, o desaparecimento misterioso de alguns habitantes e homens estranhos vestidos de preto rondando as cidades; pronto, cria-se uma lenda urbana. Digo isso, porque, fora a cidade chamada Nome, que realmente existe, o que temos são habitantes revoltados com a publicidade distorcida que Hollywood fez dela. Após cinco anos, não é difícil ver comentário em sites discutindo a “veracidade dos fatos” e os “momentos aterrorizantes” documentados e adicionando informações ao fenômeno. Ao invés de ocorrer uma indagação, há aderência sem depuração da informação apresentada, é mais fácil acreditar em qualquer coisa indiscutivelmente do que pesquisar a fundo os relatos. Bem, vamos aos verdadeiros fatos.

  • Em 2005, detetives do FBI foram designados para investigar uma série de desaparecimentos não resolvidos e mortes em Nome, Alaska. A maioria das vítimas eram habitantes nativos. Entre 1960 e 2004, 20 pessoas morreram ou desapareceram em circunstâncias misteriosas. Em 2006, o FBI concluiu que “o consumo excessivo de álcool e o inverno extremamente rigoroso” eram a causa dos fatos ocorridos.

 

  • No filme, Milla Jovovich interpreta a Dr. Abigail Tyler, psiquiatra que descobre as “abduções alienígenas” durante as sessões de hipnoterapia dos seus pacientes. Em um Site, chamado “Alaska Psychiatry Journal”, você pode encontrar uma “biografia” da Dr. Tyler com artigos relacionados: há tópicos sobre terapia de distúrbios do sono, distúrbios emocionais, hipnoterapia e regressão. Entretanto, não há no site informações para entrar em contato com a profissional. O site “Alaska Psychiatry Journal” foi registrado em GoDaddy em agosto de 2009. Não há registros de licença ou fichas para atendimento de nenhuma doutora Abigail Tyler no Alaska. A disponibilidade de uma única publicação on-line desta “especialista” validaria os fatos, como o mesmo não é possível, podemos concluir que tudo não passa de um estratagema viral para a promoção do filme. Já os pacientes que aparecem no “documentário” nunca foram vistos entre os habitantes de Nome, segundo moradores locais.

 

  • Habitantes de Nome reclamam da falta de veracidade dos fatos relatados e a ausência de consideração com os familiares dos desaparecidos. Muitos deles não estão, até hoje, insatisfeitos com a conclusão do caso e esperavam que ele fosse reaberto. Mas, agora, com os “novos fatos” expostos por essa produção hollywoodiana só dificultaram mais que a verdade, um dia, possa vir à tona.

 

Aqui, podemos discutir dois pontos. O mais preponderante é a maneira que o cinema pode influenciar o público a ponto de reconstruir a história. Lembro-me de um fato, onde um amigo, professor que passava o filme bélico 300 para os seus alunos terem uma noção da vida dos gregos no passado. Esse tipo de ação preguiçosa é que cria modelos e crenças difíceis de contornar posteriormente – vide a veracidade histórica sobre as imagens de Cristo feitas pelos pintores renascentistas até extremos bizarros em filmes recentes, como Êxodo, onde nem na figuração encontramos negros. É simplista redarguir que isso tudo não passa de entretenimento, mas em uma sociedade de massa que prima pela falta de profundidade o que não é visto não existe, não tem voz e nem substância. Atualmente é mais certo ter afirmações veementes em defesa a seres de outras galáxias e seus objetivos transcendentais ou fantasmas com mensagens pacíficas do além, do queuma abordagem com negros, mulheres e homossexuais.  Isso nos leva ao outro extremo, a facilidade de manter e criar crenças da sociedade atual pelo simples capricho e vontade de crer. Mal contemporâneo onde tudo que era crível no passado foi explicado, modificado e reciclado a bel prazer do consumidor.

Pesquisa feita em 2009 nos EUA demonstrou que o americano crê mais em anjos, demônios e imortalidade da alma do que na Teoria da Evolução de Darwin. Em outra pesquisa feita pela revista Reader’s Digest com britânicos adultos, 43% dos entrevistados afirmaram serem capazes de ler o pensamento de outras pessoas ou ter os pensamentos lidos (Shermer, Michael, 2012). Nos comentários de filmes sobrenaturais, a exemplo de Contatos de 4° Grau, não é difícil encontrar relatos de pessoas que tiveram ou conhecem alguém que teve experiências semelhantes. Para o psicólogo Michael Shermer, primeiro surgem as crenças, depois as explicações. Isso porque o cérebro naturalmente procura e encontra padrões, aos quais depois insere significado.

Chamo ao primeiro processo de padronicidade: a tendência de encontrar padrões significativos em dados que podem ou não ser significativos. Ao segundo processo chamo de acionalização: a tendência de dar aos padrões significado, intenção e ação. Não podemos evitar isso. Nosso cérebro evoluiu para conectar os pontos de nosso mundo em padrões significativos, capazes de explicar por que as coisas acontecem. Esses padrões significativos se tornam crenças(SHERMER, Cérebro e crença, 2012).

Ou seja, somos algozes e vítimas da própria armadilha, pois o cérebro, esse órgão ainda pouco conhecido do nosso corpo, parece agir segundo suas próprias regras, se aquele que o carrega é um indivíduo desatento. Para Shermer, o filósofo escocês David Hume tinha a resposta para assegurar o equilíbrio entre ser cético e ser crente:

A consequência óbvia é (e trata-se de uma máxima geral que merece a nossa atenção) “que nenhum testemunho é suficiente para estabelecer algo como milagre, a não ser que seja de tal espécie que a sua falsidade se mostre mais milagrosa do que o fato que ele se esforça por estabelecer”.

E exemplifica:

Quando alguém me conta que viu um homem morto voltar à vida, imediatamente pondero comigo se é mais provável que essa pessoa esteja querendo me enganar (ou esteja sendo enganada) ou, então, se o mais provável é que o fato que ela relata tenha realmente acontecido. Quer dizer, eu avalio um milagre em relação ao outro; e, segundo a superioridade que venha a descobrir, pronuncio a minha decisão, sempre rejeitando o milagre maior. Se a falsidade do seu testemunho for mais milagrosa do que o evento que a pessoa relata, então, e só então, é que ele poderá pretender fazer jus à minha crença ou opinião ([1758] 1952, pág. 491.).

A contemporaneidade está repleta de experiências e milagres, algo que no passado era da alçada apenas dos santos; hoje, no entanto, o que não falta são os auto-santificados, multiplicados a exaustão nas mídias sociais. Hollywood é um instrumento massificador desse processo, chegando a momentos paranóicos e extrapolando a máxima “ver para crer”. Assim, há muitos crentes e poucas coisas para ver, os fatos existem per se stante; ao contrário do que prega Hume, a verossimilhança está do lado do “milagre maior” na contemporaneidade.

 

FICHA TÉCNICA DO FILME

CONTATOS DE 4º GRAU

Título Original: The Fourth Kind
Direção & Roteiro: Olatunde Osunsanmi
Elenco: Milla Jovovich, Will Patton, Corey Johnson
Produção: Paul Brooks & Joe Carnahan
Fotografia: Lorenzo Senatore
Ano: 2009

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