Shakespeare: Cenas da vida, o eterno duelo na arte de AMAR

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“O tempo é muito lento para os que esperam
Muito rápido para os que tem medo
Muito longo para os que lamentam
Muito curto para os que festejam
Mas, para os que amam, o tempo é eterno.”

William Shakespeare

 

William Shakespeare é considerado o maior escritor inglês e um dos mais influentes dramaturgos do mundo. Esse status de relevância decorre, dentre outros aspectos, pelo teor de sua obra versar acerca do sentimento que move o drama da vida: O AMOR.

Para se escrever sobre esse sentimento, necessita-se, precipuamente, pedir licença à Razão. Pois o significado da palavra AMOR (do latim amor), em si, potencializa a multiplicidade semântica que impede uma única definição. Afinal, pode significar compaixão, paixão, desejo, querer o outro, desejar para si alguém ou alguma coisa.

Nesse labutar com as palavras para encontrar uma conceituação mais precisa, sentimo-nos seduzidos, visto que ao penetrar no Mundo da Escrita, as palavras parecem se ornar de flores e se debruçar nas janelas do vocabulário com o intuito de serem escolhidas para nos auxiliar na interpretação dos desígnios do AMOR.

Acredito que essa sedução pelo indefinível representa um dos insignes cernes inspiradores da dramaturgia Shakespeareana. Partindo desta premissa, abrem-se as cortinas textuais para a representação, baseada em obras de William Shakespeare, na busca da acepção do AMOR.

Na estruturação desse primeiro Ato de análise, a remissão aos versículos bíblicos ”Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente” e ”Amarás ao teu próximo como a ti mesmo'” (cf. Mt 22,37-40) consiste caráter obrigatório. Justifica-se essa assertiva em decorrência do AMOR ser o maior mandamento da Lei de Deus.

Na contemporaneidade, esse exercício do Amor incondicional consiste, ainda, um desafio. Instigação esta que foi brilhantemente retratada nas obras deste autor, que também é conhecido como “Bardo do Avon”, designação alusiva ao fato de haver nascido e morrido em Stratford-upon-Avon, em 23 de abril de 1564 e 23 de abril de 1616, respectivamente.

Torna-se relevante afirmar que Shakespeare desmistifica o AMOR quando o apresenta como um “querer” desassociado da perspectiva pragmática e habitual de altruísmo e generosidade, concepção esta pertencente ao estilo grego, Philia, de Amar. Referenda-se essa afirmação, inicialmente, na análise de sua obra HAMLET. Uma vez que, segundo o enredo, no momento em que o príncipe dinamarquês Hamlet, para descobrir quem matara seu pai, decide se fingir de louco, infere-se que o sentimento que move suas ações é o AMOR à Vingança.

Esse sentimento compulsivo conduz o personagem à obsessão desmedida, pois ao matar Polônio, para continuar suas investigações na constatação se Claudius, o rei que ocupava o trono da Dinamarca, era o assassino de seu pai, fica claro o desapego à forma tradicional de contemplar o AMOR. Mas nem por isso, esse sentimento deixa de mover a luta de Hamlet. Concordemos ser paradoxalmente reflexiva essa constatação.

Dando continuidade à análise da obra, quando Laertes, filho de Polônio, retorna à Dinamarca para vingar a morte de seu pai, o Rei da Noruega, e Claudius organiza um torneio de esgrima com a finalidade de, neste duelo entre Laertes versus Hamlet, aquele mate este seu oponente. O AMOR se paramenta com as vestes da Traição. Por isso, embora Hamlet seja ferido pela espada de seu adversário, ele consegue golpear mortalmente Laertes. Episódio que comprova ser a Traição prima-irmã da Morte.

Nesse ínterim, a Rainha, mãe de Hamlet, bebe uma taça de vinho com veneno, que lhe fora destinada. Percebendo o plano para matá-la, ela alerta o filho alegando que a espada usada por Laertes está também envenenada.Então, Hamlet, ciente da morte iminente, dirige-se a Claudius e o transpassa com a espada com veneno, matando-o. Denota-se que no AMOR, a Traição sugere a chamada da Morte, e ambas adoram a Tragédia.

Essa obra de Shakespeare, se assim fosse finalizada, permitiria a apologia da Tragédia do Amor motivada pela Vingança e pelo Poder. Contudo, o autor atribuiu à Hamlet a perspectivado Amor que redime. Asseveração constatada quando, antes de sua morte, Hamlet decide que Fortimbrás, filho do Rei da Noruega, ocupará o trono da Dinamarca.

O Amor, diante do exposto, passa a ser contemplado como REDENÇÃO, tendo em vista que liberta Hamlet da vingança que marcou sua história. Entende-se que Hamlet, ao declarar o filho do Rei da Noruega como Rei de seu país; neste momento, possibilita com que toda a tragédia concorra para a remissão de todos os seus pecados anteriormente cometidos. Constata-se, assim, que o AMOR é um ator com várias facetas dentro de um único ser. Uma alusão barroca dada sua contradição fusionista da Punição e do Perdão.

No segundo Ato desta análise, observa-se essa envolvente imprevisibilidade no duelo que constantemente envolve o AMOR ser retratada, também, na obra Macbeth de Shakespeare. Essa afirmação se justifica pela observância a todas as ações realizadas por Macbeth com o intuito de concretizar a profecia das três bruxas que lhe relataram o presságio de que ele seria o Rei da Escócia. Nessa obra, o AMOR pelo Poder é o fio condutor da história.

Dessa forma, para trilhar sua caminhada rumo ao trono escocês, Macbeth inicia uma série de assassinatos, começando pela morte de seu amigo Banquo. Em seguida, aliado com sua esposa, Lady Macbeth, ele trama a morte do Rei da Escócia, Duncan. Após a morte do rei, Lady Macbeth, alucinada pelo egoísmo e ganância pelo poder, comete suicídio. Macbeth, agora Rei da Escócia, ama tanto esse poder majestoso que ignora a morte da esposa, bem como não atenta aos sinais do perigo que se aproxima. Essas atitudes sustentam a alusão ao Amor que cega, que tudo pode; logo tudo justifica.

Comprovação definida, pois embora as bruxas tenham advertido Macbeth de que ele só perderia o trono caso “um bosque chegasse ao castelo”, bem como “ nenhum homem nascido de mulher” poderia matá-lo, ele, encantado pela concretização e em pleno exercício do AMOR pelo Poder, não percebe quando se aproximam do seu castelo 10.000 homens do exército inglês que, camuflados, levantavam troncos e galhos de árvores. Ele não compreende que se realizava a primeira profecia. Era o bosque que chegava ao castelo. O Amor excessivo deixa-nos desatentos e desarmados diante do imprevisível.

Assim, Macbeth não atentou que o Rei Duncan, por ele assassinado, possuía um filho, Macduff, que, naquela investida, comandava o exército inglês. Em meio ao combate, Macduff revela que fora tirado prematuramente do ventre de sua mãe. Logo, se não era “homem nascido de mulher” nada o impedira de matar Macbeth. Assim o faz, degolando-o. Concretizavam-se as predestinações.

Nesta obra, Shakespeare nos faz refletir que o AMOR concretizado, muitas vezes, cega-nos a todos os presságios. Logo, reflitamos que o AMOR exige atenção redobrada e constante, porque a efemeridade e a inconstância das coisas da vida precisam ser respeitadas como preconizava Camões “Sente-se a firmeza somente na inconstância”

Nesse último ato de nossas divagações sobre Shakespeare, aludir-se-á à obra Romeu e Julieta, clássico revisitado e enaltecido com prazerosa exaustão na dramaturgia. O estudo desse drama nos conduz à observância do AMOR concebido, pelo autor, de maneira usual. Contempla-se, nessa obra, o Amor subjetivo, sentimentalista, egocêntrico e condicionante do Viver ou Morrer.

Pondera-se acerca do atributo incondicional da arte de Amar, fato decorrente pelo fato de o AMOR protagonizado por Romeu e Julieta desafiar não somente a rivalidade das famílias Montecchios e Capuletos. Contudo, provocar a inevitável necessidade da concretização do sentimento vivido pelos amantes. Se isso não ocorre, idealiza-se o fatalismo do Morrer por Amor.  Posteriormente, essa tragédia de amar, também, inspirou Goethe a escrever “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, bem como Camilo Castelo Branco em sua obra “Amor de Perdição.

Na obra de Shakespeare, Romeu, após acreditar que Julieta havia falecido, ingere veneno e morre. Quando Julieta, ao acordar, percebe o acontecido, suicida-se com o punhal de seu amado Romeu. Essa tragédia romântica envolve os arroubos sentimentais imensuráveis que fogem à racionalidade.

Destarte, como preconizava Drummond “O Amor foge a dicionários e a regulamentos vários”. Podendo, ainda, o Amor ser laudado, conforme poetizou Almeida Garret “Esse inferno de Amar/ Como eu amo….. Essa chama que alenta e consome/ que é a vida – e a vida destrói”. Nesse sentido, William Shakespeare notabilizou o AMOR e a tragédia de AMAR.

Diante destas postulações, reflete-se que no cenário de nossas vivências, o Amor protagoniza, sim, nossos duelos existenciais. Essa máxima incontestável permite a ousadia de afirmar que o importante, nas tramas do existir, é AMAR. Pois somente permitindo-nos vivenciar o AMOR, mergulharemos na Alma do Mundo. Possibilitando-nos o entendimento de que, dessa forma, o enredo da peça teatral de nossa vida tem sentido.

De posse desta constatação, as cortinas poderão ser fechadas. O espetáculo da vida terá valido a pena. Aplausos serão ouvidos, pois compreendeu-se, enfim, que nos duelos que envolvem o Amor , nem sempre seremos vencedores. Contudo, Shakespeare nos faz refletir que o importante é lutar, pois só se vive caso se permita morrer de amar.

Principais obras de Shakespeare:

– Tragédias: Tito Andrônico, Romeu e Julieta, Julio César, Macbeth, Antônio e Cleópatra, Coriolano, Timon de Atenas, O Rei Lear, Otelo e Hamlet.

– Dramas Históricos: Henrique IV, Ricardo III, Henrique V, Henrique VIII.

– Comédias: O Mercador de Veneza, Sonho de uma noite de verão, A Comédia dos Erros, Os dois fidalgos de Verona, Muito barulho por coisa nenhuma, Noite de reis, Medida por medida, Conto do Inverno, Cimbelino, Megera Domada e A Tempestade.

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Clarice Lispector: palavras em labirinto no doce e indecifrável enigma de ser mulher

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” Eu tenho medos bobos e coragens absurdas” (Clarice Lispector)

Fonte: dosesdeclaricelispector.blogspot.com

Clarice Lispector amava metáforas insólitas. Por isso, dado o caráter incomum, excêntrico e inigualável da sua obra, ninguém melhor do que essa escritora que nasceu na Ucrânia, mas que viveu e se vestiu de cheiros, sensações, liberdade e essências tão brasileiras, para dialogar polifonicamente conosco visando nos conduzir à decifração do Imprevisível, Sedutor e Divino Universo Feminino.

Penetrar na essência da alma de uma mulher se assemelha a desafiar o Oráculo, como nas memoráveis tragédias gregas, em busca de uma resposta sábia e predestinadamente infalível. Condiciona-nos à ideia de percorrer um labirinto com várias portas de entrada, como o palácio real do Conto da Ilha Desconhecida de José Saramago. Porém, nem sempre se sabe ou nem sempre se quer encontrar a porta de saída.

Mas, partindo do pressuposto de que o fogo da magia da vida é fomentado pela necessária brasa viva dos desafios diários e inevitáveis, Clarice Lispector, por meio de seus contos, seduz-nos com sua voz literária para penetrar no insondável psicologismo feminino.

Concordemos que uma mulher consegue ser ao mesmo tempo Única e Diversa. Diante dessa paradoxal unidade múltipla, Clarice divaga sobre a relevância de ser mulher, como no conto O primeiro Beijo.

“Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua. Ele a havia beijado.

[…]

Ele se tornara homem.”

Nesse trecho, a autora categoriza a MULHER como gênese do líquido vivificador e potencializador da existência. Afinal, somos nós quem aceitamos, geramos e damos sentido à vida. Destarte, mesmo uma mulher petrificada, em uma versão feminina do Gigante Adamastor Camoniano, jamais  perderá a capacidade de ser a ORIGEM, como os olhos de água que brotam da terra e lacrimejam formando rios e oceanos.

A Mulher personifica a subjetividade. Sendo assim, na tentativa de atingir todos esses “EUS”, Clarice atenua e intensifica a inocência feminina no conto Felicidade Clandestina.

“ Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.

[…]

Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
[…]

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. “

Nesse excerto da obra, a menina que vivencia sua felicidade clandestina com a leitura do livro “Reinações de Narizinho”, conduz-nos à primazia da ingenuidade e encantamento esperançoso da Mulher-Menina. Nessa fase da vida, talvez moldadas pelo Romantismo tão inerente e avassalador, os sonhos femininos sejam embalados pela sinfonia da orquestra que rege a descoberta de O GRANDE AMOR que parece tão certo, tão nosso e tão inevitável. Tão essencial que as relações femininas pressupõem eternos encontros com amantes, ainda que seja um livro. Concebe-se que relevante na infância é AMAR.

Seguindo o ciclo da vida, a menina amadurece. Surge, então, um discurso feminino que destoa da maestria regencial da canção romântica da infância. O AMOR mostra outra faceta como uma nota perdida que insiste em ser tocada na previsível música da vida, expressa no conto AMOR.

“No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida.”

Essa citação nos faz refletir acerca do irremediável encontro com a realidade, crua, objetiva e, por vezes, limitadora e implacável

“uma precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto”

Com a chegada da maturidade, Clarice pontua que a Mulher se sente como uma refém dos moldes preconizados pela sociedade. Logo, casar, ter filhos, constituir família extrapola o desejo, transformando-se em obrigação solitária

Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

Se a relação com a incômoda, mas confortável, vida rotineira se acentua, a Mulher passa a viver sua Via Crucis interminável. Inicialmente, mutilam-se as convicções, consideração exemplificada no Conto À procura de uma dignidade

Então a senhora pensou sem nada concluir que só para ela é que se havia tornado impossível achar a saída. A Srª Xavier estava apenas um pouco espantada e ao mesmo tempo habituada. Na certa, cada um tinha o próprio caminho a percorrer interminavelmente, fazendo isto parte do destino, no qual ela não sabia se acreditava ou não.

Posteriormente, se não houver atitude para mudança de postura, destroem-se todos os sonhos e esperanças

“Foi então que a Srª Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! que! haver! uma! porta! de saííííííída!”

Finalmente, a Mulher se mortifica nos abismos da complexidade da alma, como no conto Feliz Aniversário

“E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: — parta o bolo, vovó!

E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação , como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.”

Todas as postulações, acima mencionadas, permitem-nos ratificar que os Contos de Clarice são eternos convites ao conhecimento das regiões mais profundas da mente das personagens para sondar complexos mecanismos psicológicos. Então, cabe a cada um de nós, leitores, interpretarmos sua obra de acordo com nossas vivências e leituras alicerçadas nas experiências da vida.

Diante do exposto, analisar Clarice Lispector instiga a finalizar esse texto de forma metafórica. Assevera-se, assim, que cada MULHER, em especial, é um enigma a ser decifrado. Contudo, aludindo à obra Édipo Rei de Sófocles, o segredo desse enigma está conosco. Nós somos o enigma e a Esfinge em um único ser.

Sendo assim, cabe a nós, MULHERES, com a força forte mas tênue, intuitiva mas sábia, definitiva mas emocional que nos torna tão singulares, tecermos o enredo de nossas histórias. Afinal, divinamente, nascemos com o dom de gerar vidas, recriar e reinventar cada verso da eterna poesia do VIVER e SER MULHER.

Os Contos de Clarice Lispector citados nesta análise, estão disponíveis no endereço eletrônicohttp://contosdocovil.wordpress.com.

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Lembranças mandam recados…

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Elas chegaram cedinho. Eram 03h20 de uma madrugada em que, embora o telefone não tenha tocado uma única vez, o sono não colaborou, como nunca colabora, quando se está de plantão, em tenso estado de alerta. Poderia ter ficado na cama e ficou. Um pouco mais apenas. Visitas inesperadas que carregam com elas uma bagagem cheia de detalhes, depois de algum tempo, falam cada vez mais alto, até que o silêncio desiste de insistir em conciliar o sono. Sem disfarçar a impaciência, o cansaço se levanta.

Pela intimidade que tem com elas, mas que ele não gostaria de tê-la, não seria deselegância permanecer deitado por mais algum tempo. Mas quando elas começam a mexer na bagagem, é inútil permanecer deitado, mesmo com elas do lado.

Da bagagem não surgem presentes, mas ressurge o passado, como se fosse o presente. Primeiro são as imagens que pelo tempo, já deveria ter tons amarelados, mas não! O vermelho continua sangue e a pele, essa permanece mórbida, meio cinza, sei lá! A mesma! E de repente se descobre que lembranças também têm cheiro! Desagradáveis, às vezes.

E o dia que não amanhece apesar desse antipático horário de verão. O sono, ah, esse se fora de vez! Quem ficou foram lembranças de uma peruca negra, lisa, salpicada de cinza, pendurada numa carga de lenha, no passado de um caminhão noturno. Silenciosamente um corpo de mulher morena, a 21 metros de distância parece retrucar: não é peruca! Mais adiante, a metade de outro carro. Não dá mais para dormir…

Agora um plástico preto, sai da bagagem e nem é preciso chegar ao terceiro. Debaixo do segundo brota uma emoção inesperada. Pausa para uma respiração profunda e alguns passos a esmo pelo asfalto buscam o autocontrole. Da bagagem ecoa em tom solidário o comentário sutil daquele músico, ali fotógrafo de um jornal diário: Você nunca se acostuma, não é? Um fio de voz confirma: “acostumar-se com essas cenas, equivale a perder a sensibilidade humana, então, essa é a hora de se abandonar a profissão”.

A consciência do dever manda retomar o trabalho exigindo equilíbrio. É necessário lidar com a perda dos outros, que na verdade, não é só dos outros. O choro, os gritos de desespero de familiares, também ressurge da bagagem dessas visitantes noturnas, as lembranças.

O dia ainda não raiou, mas o cansaço toma a iniciativa e se despede das visitantes, talvez, por enquanto!

Se essas lembranças espontâneas, inoportunas e extemporâneas visitam o cansaço pela porta da insônia, é porque a janela do estresse há muito está aberta, mandando recados à negligência do poder público, quanto ao dever de prevenir contra doenças psicossomáticas que acarretam seres humanos de algumas profissões, como é o caso dos peritos que têm como missão, materializar a verdade para que se faça Justiça aqui, ali, no Rio Grande do Sul, ou em qualquer parte, mesmo aonde, no cumprimento do dever, haja omissão do Estado.

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patch adams

Patch Adams e seu amor que contagia

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“Quando um médico passou a ser mais do que um amigo de confiança e conhecimento, que visita e trata dos doentes?”
Patch Adams

Após se internar em uma clínica psiquiátrica por tentar suicídio, Hunter Adams descobre em si um potencial e vontade para ajudar os outros, dando-lhes atenção e ouvindo suas queixas. A partir de então, um dos amigos que faz enquanto esteve na clínica passa a chama-lo de Patch Adams, devido a sua capacidade de ajudar e curar as outras pessoas, assim como o ajudou. É neste momento, então, que decide ir para a faculdade de medicina onde se depara com a desumanização da profissão a partir dos preceitos pregados aos estudantes, através de pressupostos extremamente ortodoxos onde os alunos decoram estruturas biológicas e evita-se a dita transferência, ou seja, ligação emocional que se forma entre médico e paciente, dentre outros fatores, que leva o futuro médico a tornar-se próximo de um ser humano. Ao ingressar na faculdade de medicina, Patch visita regularmente o hospital conhecendo e fazendo amizade com as enfermeiras, e visitando os pacientes.

No presente momento no qual estamos vivendo, onde se gera uma discussão a respeito da aprovação do Senado sobre a Lei do Ato Médico, o filme nos mostra uma realidade ainda muito presente, a hierarquia entre a medicina e as demais profissões da área da saúde. Hunter Adams constrói uma imagem absolutamente diferente do estudo da medicina vigorada na época. Através do acolhimento e do afeto, Patch defende a qualidade de vida dos pacientes, buscando conhecê-los, realizando sonhos e mostrando a medicina como uma forma prazerosa de tratar das enfermidades. Uma das cenas marcantes do filme é quando em sua primeira visita ao hospital, Patch acidentalmente entra na ala pediátrica e se depara com diversas crianças deitadas. Utilizando-se de ferramentas médicas, faz um nariz de palhaço para divertir as crianças.

No momento de seu ingresso, ainda, Patch Adams apaixona-se por Carin Fischer, sua colega de faculdade e uma das poucas mulheres no curso de Medicina. No entanto, Carin não se demonstra interessada em prosseguir com o romance e, no decorrer do filme, Patch Adams conquista sua confiança e seu coração com o afeto que demonstra com as demais pessoas e a paixão pela verdadeira prática da medicina. Conhece, ainda, Truman Schiff, um simpático jovem rapaz que torna-se seu amigo de imediato, instigado a conhecer seus métodos.

Apesar de seus métodos pouco convencionais, Patch Adams é o primeiro da turma, com ótimo desempenho escolar. Todavia, suas notas não são o suficiente para convencer o reitor da universidade de medicina de seu enorme potencial como médico inovador das políticas da medicina. Enquanto Adams convive diariamente com os pacientes do hospital, tornando-os mais acessíveis, alegres e saudáveis através do elo emocional que é construído, a sociedade médica, em especial o mesmo reitor, sente-se ameaçado por esta atitude, repudiando-a e levando a juízo.

É através desse paralelo entre humanização da prática da medicina e o “endeusamento” do profissional que atua na medicina, que o filme nos mostra a importância da aproximação do profissional com o paciente, pois, desta forma, a qualidade de vida do paciente melhora exponencialmente, além da aceitação do tratamento. E é com esta paixão por exercer a profissão, esta humanização e melhoria da qualidade de vida através da atenção ao doente, que Patch Adams nos transmite a mensagem “o amor é contagioso”, pois este é o sentimento que um médico deve transmitir a seus pacientes.

No momento culminante do filme, quando Carin é assassinada por um dos pacientes que Patch ajuda, ele passa a se culpar por tê-la ensinado a medicina de ajudar a todos sem descriminação, assim como seu ideal de ser humano. Decide, então, desistir de seguir com seu sonho. Só então, quando coloca-se em reflexão, percebe a provação pela qual teve que passar para compreender o que é ser médico. Lidar com a morte como uma parte inevitável da vida e torná-la o menos dolorosa possível, não como o inimigo indestrutível. O verdadeiro inimigo da saúde é a indiferença que acarreta a falta de saúde, ou seja, a falta de qualidade de vida o que inclui dignidade, decência, condições saudáveis de existência e não simplesmente a ausência de patologias.

É com a paixão em ajudar ao outros que Patch finaliza o filme formando-se com mérito em medicina, levando consigo diversos outros médicos que apoiam seus métodos e sua causa.

Gosto de pensar neste filme como uma lição de vida, não só para futuros médicos, como também para todos os profissionais da área da saúde – e demais áreas que lidem diretamente com o ser humano -, pois, como estudante de psicologia penso no impacto que minhas palavras e atos causam no outro e a importância de transmitir afeto às pessoas que nos procuram. Além do mais, a proposta de igualar a figura do médico aos demais profissionais é crucial, pois, somente assim, é possível pensar na saúde através de uma equipe multidisciplinar.

FICHA TÉCNICA  DO FILME:

PATCH ADAMS

Título original: Path Adams
Diretor: Tom Shadyac
Roteiro: Steve Oedekerk
Elenco: Robin Williams, Daniel London, Monica Potter, Philip Seymour Hoffman;
Ano: 1998
País: EUA
Gênero: Drama

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