Thoreau: limites da obediência e seus aspectos na contemporaneidade

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http://lautopiaesposible.blogspot.com.br/2016/01/diario-de-un-profeflauta-motorizado-640.html

O objetivo deste trabalho é tecer algumas considerações acerca do ensaio escrito por Henry David Thoreau em 1849, com o título de Desobediência Civil, bem como abordar esse tema na contemporaneidade. O autor referia-se sobre Desobediência Civil como mais uma ferramenta democrática, de amparo ao cidadão e a sociedade menos favorecida, para agir contra um governo soberano, contra injustiças e explorações. A desobediência derivava dos direitos ativos do cidadão sobre o Estado, que a utilizaria sempre que o governo abusasse de seus privilégios, ou quando não retribuía o que é esperado pelo o cidadão.

Thoreau trazia em seu ensaio, a importância de questões onde se envolviam o Homem e o Estado. Uma relação em que de um lado havia poder e em outro uma sociedade súbita. Para o autor a sociedade era politicamente livre e poderia escolher de qual lado ficar, porém, a maioria servia ao Estado. Thoreau valorizava o Homem, sempre o colocava acima do Estado. Para ele os princípios e valores estavam acima de qualquer ordem governamental.

Em um cenário de guerras e sistema escravista, vivenciados pelo autor nos EUA, defende que o individuo deveria resistir à opressão de forma pacífica, defendendo a liberdade individual e o direito de se opor a maioria, de resistir às leis e normas sociais consideradas injustas que são impostas pelo governo. Em sua manifestação, Thoreau justifica que a desobediência civil pacifica, tem um papel fundamental para uma sociedade mais justa e que é dever de um bom cidadão se contrapor as normas de estado no qual o individuo considera injusta mesmo que seja contra o senso comum, a maioria como o autor se refere. 

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Fonte: http://www.somoswaka.com/blog/2012/11/desobediencia-civil-la-ultima-esperanza-individual/

Em linhas gerais, os construtos da desobediência civil influenciaram inúmeros estudiosos e grandes nomes da história, a título de exemplo tem-se o movimento de independência da Índia proposta por Mahatma Gandhi. Henry (1997) afirmava que não é preciso lutar fisicamente contra um governo ou sistema político assinalado pela opressão ou autoritarismo, sendo suficiente e efetivo que a população não apoiasse tal sistema. Desse modo, é uma espécie de violação, mas não é violenta, os que agem de acordo com ela, não é apenas para o seu benefício pessoal. Usam disso com a finalidade de chamar atenção para uma lei que é injusta, visando deixar exposto ao máximo sua causa.

A desobediência civil é mecanismo legítimo de atuação, sendo ato político, expressão da cidadania; é ato coletivo, resultado do exercício da soberania popular; é pública, para que possa se inserir na esfera pública e possa corrigir uma injustiça ou até mesmo evitá-la; é ato não violento, revelando o caráter pacífico das manifestações (MARASCHIN; BRUSCATO, 2009, p. 10).

Durante toda a história da humanidade, a desobediência civil sempre esteve presente. Sempre sofrendo alterações, ou sendo adaptadas de acordo com a evolução do homem, costumes, e as novas realidades sociais que foram surgindo. Se trata de uma ação que busca protestar publicamente contra as leis e injustiças legais que são tomadas pelas autoridades políticas.

É uma ação ilegal, mas não criminosa, e age dentro das medidas éticas, buscando combater injustiças. Está sempre presente quando um grande número de pessoas está convencido de que as mudanças propostas pelo governo foram expostas fugindo da legalidade e constitucionalidade, gerando graves dúvidas. Ou quando suas queixas não serão ouvidas nem farão efeito diante os canais de mudanças. Segundo o autor:

“O melhor governo é o que governa menos” – aceito entusiasticamente esta divisa e gostaria de vê-la posta em prática de modo mais rápido e sistemático. Uma vez alcançada, ela finalmente equivale a esta outra, em que também acredito: “0 melhor governo é o que absolutamente não governa”, e quando os homens estiverem preparados para ele, será o tipo de governo que terão. Na melhor das hipóteses, o governo não é mais do que uma conveniência, embora a maior parte deles seja, normalmente, inconveniente – e, por vezes todos os governos o são (THOREAU, 1997, p. 5).

Thoreau almejava um governo melhor e não a extinção de tal governo. Nessa direção, apontava que o motivo de se admitir um governo da “maioria”, bem como a sua continuidade, consiste no fato da maioria ser mais forte fisicamente. Todavia, o autor esclarece que um governo pautado no interesse da maioria, via de regra, não atua como um governo mais justo.  Conforme assegurou Dalmo de Abreu Dallari (1999) “o primeiro passo para se chegar à plena proteção dos direitos é informar e conscientizar as pessoas sobre a existência de seus direitos e a necessidade e possibilidade de defendê-los”.

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Fonte: https://satsocgilena.wordpress.com/2012/10/22/manifiesto-de-accion-sindical-sat-gilena-llama-a-la-resistencia-y-la-desobediencia-civil

De acordo com Thoreau (2002), a desobediência civil só era aceita para os homens como um comportamento, quando estes se vissem diante de práticas governamentais que eram contrárias aos princípios morais e que não agissem de acordo com os critérios da justiça. Sempre deixando claro que, o compromisso com a sua consciência é de dever do homem.

Será que o cidadão deve desistir de sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então estará cada pessoa dotada de uma consciência? Em minha opinião, devemos ser primeiramente homens, e só posteriormente súditos. Cultivar o respeito às leis não é desejável no mesmo plano do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo. (THOREAU, 2002, p. 15).

A desobediência civil nos mostra a ideia de que o direito é sempre dinâmico, e não estático, e que busca sempre a democracia e justiça. Para que o sujeito consiga ser um aparelho instigador dessa cidadania e justiça, ele precisa se comportar e estar ativo a essa busca. Da luta de desobedientes é que surgem as leis mais legitimadas, acredita Thoreau, em suas ideias supervalorizava o homem a ponto de pô-lo sobre o Estado. Defendeu que o homem tem uma consciência moral e que por isso não podia submeter-se como um súdito cego que obedece incondicionalmente ao Estado. Para ele é o Estado quem deve submeter-se ao homem e não o contrário.

A obra de Thoreau “Desobediência Civil” (1849), foi escrita após a prisão do autor por se negar a pagar impostos dá época, a justificativa empregada foi que o dinheiro seria utilizado pelo governo americano na guerra contra o México. Desse modo, o autor defende a desobediência civil como forma de contestação legítima contra um Estado considerado injusto. Em seus escritos elaborou textos que criticavam a atitude de tê-lo prendido, em um deles disse:

Agiram como crianças incapazes de enfrentar uma pessoa de quem sentem raiva e por isso dão um chute no cachorro do seu desafeto. Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com sua prataria, incapaz de distinguir seus amigos dos inimigos. Todo respeito que tinha pelo Estado foi perdido e passei a considera-lo apenas uma lamentável instituição (THOREAU, 2002, p.30).

Além deste autor já mencionado, muitos outros escreveram seu pensamento crítico acerca deste assunto. Hannah Arendt apud Mariana Santiago de Sá (2006) viu a desobediência civil como um grande número de pessoas inconformadas com a falta de mudança, e a defendeu justamente por acreditar ser o melhor remédio para a falha básica da revisão judicial.

O pensamento de Arendt difere em partes do de Thoreau, por que para ele a consciência de cada um é responsável pela mudança desejada, neste caso, a consciência levaria à luta para ser autônomo diante do opressor Estado, já para Arendt a desobediência civil nunca será reduzida a uma “objeção de consciência”, pois se trata de uma expressão de liberdade individual de participar na política, ou seja, é mais do que uma aversão às leis de coletividade. Arendt (2008) ressalta que não se trata de expressar opiniões pessoais e reivindica-las, mas de fazer com que seja ouvida a voz da minoria sobre o mundo e que cada um tem fundamental importância para a construção dessa comunidade. Portanto trata-se de uma reivindicação pelo direito de se comunicar.

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Fonte: http://www.veinformativo.org/category/multimedios/video/

Maria Garcia (1994) destacou que a desobediência civil é um direito fundamental para que se concretize a cidadania e se justifica usando o art. 1º § da CF/88 “Todo poder emana do povo”. Ela defendeu a tese de que o cidadão tem o poder de elaborar as leis e participar das tomadas de decisões que envolvem o seu futuro e aprofundou dizendo que o sujeito pode obedecer ou não a lei todas as vezes em que esta for conflitante para a ordem constitucional garantida a ele.

Cabe ressaltar ainda que, alguns autores modernos afirmam que o movimento de desobediência civil pode ser exercido de várias maneiras e formas, para manifestar o protesto à lei ou ao ato normativo. Nessa direção, a uma distinção no ato desobediente envolvendo critérios correspondentes ao desenvolvimento prático do movimento, pode ser caracterizada em direta ou indireta. Desse modo, a desobediência civil indireta ocorre quando:

um grupo organizado viola uma lei não por achá-la injusta, ilegítima ou inválida, mas para contestar outra ação ou política governamental. A lei violada não é o alvo da mudança que está sendo reivindicada, mas sua transgressão atinge diretamente o objeto do movimento desobediente. A contrário disso, têm-se a desobediência civil direta, que é quando o contestador viola uma lei para atacar o conteúdo apenas da lei a que viola. é justamente este outro tipo de desobediência que não pode ser praticada nem pelo “objetor de consciência”, nem pelo indivíduo que quer testar a constitucionalidade de uma lei. a desobediência indireta é exatamente aquela que não pode ser justificada legalmente, muito menos pelo duplo sistema de leis (ALEIXO, 2008, p. 70).

Outra caracterização consiste em entre omissiva/passiva ou comissiva/ativa, sendo que a primeira consiste em não fazer o que é mandado, e a desobediência comissiva (ativa) refere-se em fazer ou agir com aquilo que é teoricamente proibido.

Aleixo (2008) elucida que, visando ser utilizada pelos setores descontentes da população, a desobediência civil ampliou as possibilidades de aplicação de estratégias adequadas para reformar leis, práticas administrativas e decisões judiciais, bem como, constituiu-se como um elemento da cidadania que permite uma participação constante e efetiva dos membros da sociedade. Em suas teorias Aleixo (2008) retoma o que foi dito por Thoreau (1997), diz que a forma do governo está errada ao deixar que uma maioria decida por todos e que o ideal era existir uma consciência coletiva para determinar o que é certo ou errado para aquela população.

Afinal, a razão prática por que se permite que uma maioria governe, e continue a fazê-lo por um longo tempo, quando o poder finalmente se coloca nas mãos do povo, não é a de que esta maioria esteja provavelmente mais certa, nem a de que isto pareça mais justo para a minoria, mas sim a de que a maioria é fisicamente mais forte. Mas um governo no qual a maioria decida em todos os casos não pode se basear na justiça, nem mesmo na justiça tal qual os homens a entendem. Não poderá existir um governo em que a consciência, e não a maioria, decida virtualmente o que é certo e o que é errado? Um governo em que as maiorias decidam apenas aquelas questões às quais se apliquem as regras de conveniência? Deve o cidadão, sequer por um momento; ou minimamente, renunciar à sua consciência em favor do legislador? (THOREAU, 1997).

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Fonte: http://www.mejorespracticas.com.mx/detalle.php?id=5268

Para Thoreau (1997), todos os homens possuem direito de revolução e de se opor ao estado caso a tiraria ou sua ineficiência tornam-se insuportáveis para o cidadão. O cidadão deve possuir o direito de expressar suas opiniões sobre a legislação pré-estabelecida para que ele siga, enquanto isso o legislador espera que ele ignore sua consciência para se manter dentro do delimitado de certo ou errado. Dentro desse contexto encontra-se a importância citada por Aleixo (2008) sobre a desobediência civil e como ela abriu as portas para reformulação de leis.

Thoreau (1997), defende que a autoridade governamental não pode ter direitos puros sobre as pessoas e seus patrimônios além daquele que a própria pessoa concede. O autor ainda afirma que jamais existirá um Estado completamente livre e esclarecido ao menos que reconheça o indivíduo como um ser mais poderoso e independente do que o próprio estado. Na verdade, o poder do estado se deriva do poder do indivíduo. Dessa forma pode-se ver que quando Thoreau (1997) fala que o melhor governo é aquele que não governa, ele refere-se a um Estado em que é permitido ser justo e respeitoso com todos os homens e tratá-los como seus semelhantes. Além de não ver os cidadãos como algo incompatível com sua forma de governar promovendo a ausência de paz.

Todos os cidadãos devem ser respeitados pelo Estado, ao invés desse procurar anular suas consciências e impor o que acredita ser o certo para a população. O cidadão deve ter poder de escolha e autoridade sobre si e sobre o que lhe pertence. A relação entre Homem e Estado não deveria ser poder e submissão, e sim uma relação de igualdade onde ambos construiriam o Estado e sua legislação através dos princípios e valores.

Quando estado anula esses princípios e valores trabalhando de uma forma injusta não tratando seus cidadãos com igualdade é onde a Desobediência Civil deve surgir, pois de forma pacífica ela mostrará que os cidadãos têm um poder que podem exercer e podem lutar para reformular as leis e o modo de governo. Mediante a isso Thoreau (1997), apresenta um questionamento “será que a democracia, tal como a conhecemos, o último desenvolvimento possível em matéria de governo?”. Portanto é direito do cidadão a Desobediência Civil e é dever do Estado melhorar sua forma de ver o cidadão e de empregar sua legislação sobre ele. Assim o Estado irá produzir um novo caminho, onde Estado e Homem andam juntos para a constituição de um Estado mais glorioso e justo.

REFERÊNCIAS:

ALEIXO, Giulio Taiacol. Desobediência civil: possibilidade de se tornar um instrumento político de efetivação e aperfeiçoamento do direito. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM, Marília, 2008, SP: [s.n.], 110f. disponível em <https://www.univem.edu.br/servico/aplicativos/mestrado_dir/dissertacoes/DESOBEDI%C3%8ANCIA_CIVIL_-_POSSIBILIDADE_DE_SE_TORNAR_UM_INSTRU_1179_pt.pdf>, acesso em 05 de Setembro de 2016.

 

COSTA, António Paulo. Problemas de Filosofia Política.

 

DALLARI, Dalmo de Abreu. A Luta pelos Direitos Humanos. In: Lourenço, Maria Cecília França. Direitos Humanos em Dissertações e Teses da USP: 1993-1999. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999.

Desobediência Civil: Um meio de se exercer a cidadania. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2465/Desobediencia-civil-um-meio-de-se-exercer-a-cidadania> Acesso em: 03 de setembro de 2016.

 

GARCIA, Maria. Desobediência Civil: Direito Fundamental. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994.

 

GARCIA, Maria. A desobediência civil como defesa da constituição. Revista Brasileira de Direito Constitucional.  2003.

O problema da Desobediência Civil. Disponível em: <http://lrsr1.blogspot.com.br/2013/10/o-problema-da-desobediencia-civil.html> Acesso em: 03 de setembro de 2016.

 

MARASCHIN, Claudio e BRUSCATO, Giovani Tavares. A teoria e a prática da desobediência civil: um estudo a partir da doutrina contemporânea. Revista da Faculdade de Direito UniRitter, Porto Alegre, n. 10, p. 41-54, 2009. Disponível em < file:///C:/Users/T2015019/Downloads/249-687-1-PB.pdf>, acesso em 05 de Setembro de 2016.

 

SOUSA, J Francisco Saraiva. Hannah Arendt e Desobediência Civil. Disponível em:  <http://cyberdemocracia.blogspot.com.br/2008/02/hannah-arendt-e-desobedincia-civil.html> publicado em 11 de fevereiro de 2008

 

THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil e Outros Escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

 

THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM, 1997. p.5 – 56. Disponível em < file:///C:/Users/T2015019/Desktop/filosofia.pdf>. Acesso em 06 de Setembro de 2016.

 

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“Trabalho, obra e ação” como “tríade” representativa do ser humano em Hannah Arendt

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Foto: Lewis Hine

A partir da Revolução Industrial, um dos mais fascinantes e intrigantes temas levantados pela Filosofia, Sociologia e, mais recentemente, pelas Ciências Políticas, é a eterna busca pelo real significado do trabalho na vida cotidiana dos homens e mulheres. Achincalhado por uns, mas fortemente defendido por outros, o trabalho é fonte inesgotável de interesse.

Na Sociologia, Karl Marx e Max Weber deixaram contribuições que ainda hoje influenciam as gerações. O Capital, de Marx, por exemplo, está entre as principais obras do século XX. Não se pode, no entanto, passar incólume aos pontos de vista de uma pensadora judia-alemã que lançou novas luzes sobre o tema: Hannah Arendt.

No texto “Trabalho, Obra e Ação” Arendt pontua observações que até então não haviam sido levantadas, como o fato de ser impossível atingir a “vida contemplativa” sem, ao menos, existir um lastro cimentado pela “vida ativa”.

A alemã alerta para o fato de que qualquer definição de vida ativa, passa pelo prisma do ideal de vida contemplativa deixado pelos gregos. De certa forma, haveria no imaginário (tanto de parte dos pensadores como da religião, sobretudo da Igreja Católica Romana) a ideia de que o trabalho subverte a condição humana, enquanto que a contemplação é o objetivo a ser atingido.

A filósofa radicada nos Estados Unidos (que não gostava de ser definida como filósofa) tenta, então, desconstruir tais premissas ao dividir o “viver” humano numa tríade de trabalho, obra e ação, tríade essa que estaria imbricada na própria constituição representativa do que é “ser humano”.

Especificamente sobre a dicotomia entre a vida ativa e a vida contemplativa, Arendt induz para um olhar menos conflituoso, já que ao mesmo tempo em que constata ser na vida ativa a condição em que a maioria das pessoas está engajada, também conclui que “ninguém pode permanecer em estado contemplativo durante toda sua vida”. Ou seja, a ação, em qualquer caso, precederia a contemplação. “Pois é próprio da condição humana que a contemplação permaneça dependente de todos os tipos de atividade”.

Ao tocar nesse ponto, Arendt chama a atenção para o fato de que faz parte da nossa constituição biológica criar as condições para que o corpo permaneça estável. E esse “eterno” movimento em busca da estabilidade já demanda, em si, trabalho. A filósofa, no entanto, parece não se preocupar muito com nuances que outros pensadores levantaram, como a “mais valia”, o “lucro” e a “diferença de classes” decorrentes dessa potencialidade de trabalho que representa o próprio homem. Isso não quer dizer que neste texto ela tenha negligenciado as relações de dominação, pelo contrário. Ao citar a imposição de trabalho forçado a terceiros, por uma classe dominante, Arendt deixa claro que reconhece tais distorções. Mas a análise desse fato, em contraposição a Marx, se dá pelo viés da busca pela fuga do trabalho (daí se impingir aos outros o que, para alguns, é uma tortura: o próprio ato de trabalhar). No entanto, a princípio, conceitos como a elevação/manutenção de status social, como próprio ato de viver a partir do acúmulo de bens, não entra no raio crítico da autora.

Voltando à “tríade”, é necessário fazer uma rápida diferenciação entre seus componentes. A começar pelo “trabalho”, Arendt o define como atividade repetitiva, laboriosa (por vezes com uma conotação penosa) e que serve para, de seu fruto, manter as condições adequadas do corpo. A “obra” é a própria produção e representação dos bens duráveis, e que o homem tenta “cristalizar” para, implícita ou explicitamente “construir” um mundo que, aparentemente, se mostre de forma mais fixa, durável. Mas aqui a alemã pontua que nem todos os bens são duráveis, e faz uma comparação do ciclo de identificação (das demandas de consumo), produção, consumo e/ou descarte de tais “obras” com a própria dinâmica da natureza. Há também nessa dinâmica, uma semelhança enorme com o ciclo de existência humana. Por fim, a “ação”, ápice da tríade, representa a própria forma como as pessoas se inserem no mundo. É uma definição direta do papel político do homem, que não apenas trabalha e produz, mas que deliberadamente (porque esta condição lhe é peculiar) interage com o mundo para que as demandas dessa interação sirvam de referência para a sua própria representação de “ser”. Voltemos a falar mais à frente sobre a “ação”.

Retomando as assertivas de Arendt sobre o trabalho, a pensadora diz que o Cristianismo valoriza a contemplação em detrimento do trabalho, uma vez que o “deleite” prometido no pós-morte lembra a “superioridade” do estilo de vida apregoada pelos filósofos gregos clássicos, que recusavam o “labor” e até consideravam-no um modo de ser “degradante”. Desta forma, Arendt usa como referenciais não os filósofos socráticos, ou neoplatônicos, lembrados por seus pontos de vista pró-contemplação, mas os pré-socráticos e atomistas. Há, nesta escolha, uma clara demonstração de que a alemã entende o trabalho e o mundo, de um lado, e a vida contemplativa, de outro, não como objetos antagônicos, mas entrecruzados numa espécie de “oposição complementar”.

Provavelmente ao situar o Cristianismo nestas fronteiras, Arendt está se referindo ao Catolicismo, pois o Protestantismo (sobretudo o Calvinismo) já havia sido intimamente ligado ao Capitalismo (A Ética Protestante e o “espírito” do Capitalismo), em Max Weber, e o trabalho saiu dos patamares inferiores para tornar-se a égide da ligação/intimidade com os aspectos do sagrado. Ou seja, sob este ponto de vista de Weber, o trabalho e seu fruto não apenas passaram a ter representação enobrecedora para parte da humanidade, como se configurou como um fim em si.

Apesar de enquadrar o Cristianismo (Católico Romano) na esfera do ideal de contemplação, Arendt não deixa de relacioná-lo (o Cristianismo) à “ação”. Isso porque a filósofa lembra que o Mandamento de “Amar ao próximo” requer um movimento por parte do agente em direção ao interlocutor, típico de uma “ação” socialmente inclusiva (e construtiva), marca das “teias” de relacionamentos próprias do homem.

Por fim, Arendt diferencia “trabalho e obra” dos aspectos da “ação”. Isso porque, para a pensadora, se os homens forem definidos apenas como “criaturas vivas” (e aqui Arendt deixa transparecer sua influência habraâmica – “criador e criatura”), o trabalho nada mais é do que a reprodução dos padrões cíclicos da natureza, sendo que o constante “labutar” e descansar podem ser perfeitamente comparados ao próprio movimento do dia e da noite, eternamente intercalados. No entanto, a “ação” é o campo libertador do ser, pois é através dela que a alteridade se manifesta e, pelas palavras, o homem se insere no grande grupo de sua própria espécie, em sentido de unicidade. E diferente do “trabalho”, que se dá como condição indispensável para a sobrevivência do corpo, a “ação” não é imposta pela necessidade mas, antes disso, é incondicionada.

Ou seja, para Arendt a “ação” surge desde o nascimento do homem/mulher e se perpetua cada vez que esse “ser” inicia novos processos criativos. Uma visão “libertadora” que retira os homens/mulheres dos extremos da negação do trabalho, por um lado, ou da entrega total a ele, por outro.

Referência:

ARENDT, Hannah. Trabalho, Obra e Ação – Tradução de Adriano Correia – Revisão de Theresa Calvet de Magalhães. Texto disponibilizado em <http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp7/arendt.pdf> ; visualizado em 08/05/2013.

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