Dormindo Com o Inimigo: uma análise acerca dos aspectos sociais e psicológicos na violência doméstica
16 de março de 2022 Josélia Martins Araújo da Silva Santos
Filme
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Sara e Martin aparentemente vivem um casamento harmonioso e cercado de laços afetivos, todavia ela sofre agressões constantes do mesmo, fator esse que levanta o questionamento cada vez mais constante da responsabilidade profissional e social nesse contexto. A princípio percebe-se a relevância de se discutir a violência doméstica no contexto das políticas públicas, frente à necessidade de que façamos uma análise do contexto histórico brasileiro, especialmente no que se refere entre os períodos de 1960 e 1980, dando maiores significados para as políticas sociais, em principal o olhar da Psicologia e a inserção de novos elementos na profissão que são de suma importância para a atualidade.
Assim sendo, faz se necessário traçar historicamente os caminhos da profissão no Brasil, neste sentido de reconstruir os laços, compromissos, tendências e vínculos estabelecidos com as classes sociais que explicam as marcas e desafios que a profissão enfrenta atualmente no que tange às demandas de violência doméstica contra a mulher. Observa-se aqui a data de 8 de março, juntos aos achados históricos:
O dia 8 de março é o resultado de uma série de fatos, lutas e reivindicações das mulheres (principalmente nos EUA e Europa) por melhores condições de trabalho e direitos sociais e políticos, que tiveram início na segunda metade do século XIX e se estenderam até as primeiras décadas do XX (Queiroz, 2000).
Fonte: https://url.gratis/FSInTK
Os serviços ofertados indiscutivelmente são imprescindíveis para que se obtenha êxito no atendimento às vítimas, inclusive pode-se destacar que a Psicologia no Brasil também surgiu a partir da questão social onde a sociedade passa a ser base de estudo, inclusive os seus comportamentos e aspectos cognitivos.
A importância da Psicologia no decorrer do seu contexto histórico, teve o intuito de atender as exigências postas aos profissionais, bem como atender às requisições do Estado, que visavam construir seu suporte teórico e ampliar seus referenciais técnicos, se distanciando da igreja que aparentava ser contra.
A Política Pública de Assistência Social está estabelecida nos direitos sociais da população em situação de risco social segundo definição da Política pública de Assistência Social. De acordo com o artigo primeiro das LOAS, a Assistência Social, direito do cidadão e dever do estado é política de seguridade social não contributiva, que provê os mínimos, realizada por intermédio de um conjunto integrado de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento ás necessidades básicas
Interessante ressaltar que se nota, que é no mesmo período que acontece a maturidade da profissão, onde se tem centros de formação e pós-graduação que amplia o conhecimento dos estudantes e dos profissionais e quando decorre também a organização política da profissão.
FICHA TÉCNICA
Título original: Sleeping with the enemy
Ano produção: 1991
Dirigido por:Joseph Ruben
Gênero: Drama, Suspense
País de Origem:Estados Unidos da América
REFERÊNCIAS
BRASIL. LOAS/1993 Lei orgânica da Assistência Social. Brasília, MPAS/ Secretaria do Estado de Assistência Social, 1999.
Ministério da Saúde. (2002). Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço Secretaria de Políticas de Saúde. Brasília, DF.
QUEIROZ, Fernanda Marques e DINIZ, Maria Ilidia-a, SERVIÇO SOCIAL, LUTAS FEMINISTAS E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER em Temporais: Revista da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em serviço Social (ABPESS) / associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. – Ano 1, n. 1 (jan.jun.2000) – Brasília: ABEPSS, 2000.
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Experiências e práticas vivenciadas por profissionais do Consultório na Rua em Palmas-TO: Entrevista a Assistente Social Maisa Carvalho
É comum estar em um centro urbano, ou até mesmo em pequenas cidades e deparar-se com as pessoas que estão em algum lugar nas ruas de forma precária. Em sua maioria são pessoas que vivem em extrema pobreza, que ficam dias sem comer por falta de alimentos e consequentemente com baixas perspectivas de sobrevivência, vivem dos trabalhos que as ruas oferecem. Os profissionais que lidam com esse cenário enfrentam desafios diários, sendo seu trabalho de extrema necessidade para um caminho que possa levar a uma melhor qualidade de vida para as pessoas em situação de rua.
Nesta entrevista para o (En)Cena, a Assistente Social Maisa Carvalho nos traz um conteúdo muito enriquecedor acerca do trabalho com as pessoas em situação de rua e como se dá a atuação profissional nesse contexto. Ela é graduada pela Universidade Federal do Tocantins – UFT (2016), especialista em Gestão de Redes de Atenção à Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ (2018), especialista em Saúde Mental pelo Centro Universitário Luterano de Palmas e Fundação Escola de Saúde Pública, através do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental – ULBRA/FESP (2020), Responsável Técnica do Programa Piloto de Justiça Terapêutica do Tribunal de Justiça do Tocantins, atualmente atua na equipe de saúde Consultório na Rua e é pesquisadora nas temáticas voltadas para Saúde e Direitos Humanos: saúde mental, população em situação de rua e feminização de substâncias psicoativas.
O Consultório na Rua foi instituído em 2011 no qual está agregado à política nacional de atenção básica, seu foco principal está nas pessoas que vivem em situação de rua, sejam elas moradoras ou que vivem do que a mesma pode ofertar, como emprego e necessidades básicas. Há uma equipe específica designada para o cuidado relacionado à saúde dessas pessoas. Nessa entrevista a Assistente Social Maisa Carvalho nos traz um panorama dessas ações realizadas.
Fonte: Arquivo Pessoal
(En)Cena: Como você iniciou na área que você atua hoje, com a população em situação de rua?
Eu sou Assistente Social, conheci o Consultório na Rua em 2019, quando ingressei na residência, no Programa de Saúde Mental. Atualmente, o programa possibilita que o residente passe por 4 pontos da rede de Atenção Psicossocial, sendo os seguintes serviços: CAPS- AD, CAPS II, o NASF e por fim, o Consultório na Rua.
Quando tive esse contato eu não conhecia como funcionava exatamente, mas com a experiência passei a conhecer o fluxo, a equipe e como que funcionava. Passei alguns meses atuando no serviço como residente e depois de concluir a especialização, em 2020, fui contratada para compor a equipe.
(En)Cena: E como se deu esse ingresso na equipe?
Ingressei através do através do programa “Palmas para Todos” que é um programa da Fundação Escola de Saúde Pública juntamente com a prefeitura, onde você recebe uma bolsa para atuar em áreas que atendem as populações mais vulneráveis, e o Consultório na Rua está inserido dentro desse grupo de serviços que atendem as populações mais vulneráveis. Então, hoje eu sou profissional que compõem a equipe não mais como residente, nós recebemos outros residentes nesse serviço.
Fonte: encurtador.com.br/pTY29
(En)Cena: Você atua também como uma mentora dos residentes?
Não, porque precisa de um preceptor para acompanhar os residentes, esse papel é desempenhado pela enfermeira da equipe, que exige acompanhamento mais de perto, supervisão, aulas, enfim… mas todos nós colaboramos tirando dúvidas e compartilhando nossas experiências com os residentes.
Esses profissionais precisam ter uma pessoa para ser o preceptor que são como “mentores” dos residentes, como a preceptora também é coordenadora, as vezes pode estar em reunião ou na SEMUS, daí toda a equipe acaba dando suporte, porque a gente está ali todos os dias, orientando sobre o fluxo do serviço, mostrando quais são as nossas áreas de atuação.
Como a preceptora está de home office, quando os demais residentes entrarem, outro profissional irá assumir essa função, mas não será eu.
O fato da equipe ser multiprofissional, atendendo a modalidade 1, sendo composta por uma enfermeira, uma assistente social, uma técnica de enfermagem e um agente de ação social, ajuda muito nesse processo, se levarmos em consideração a variedade de formações.
(En)Cena: E como de fato é sua participação nesse contexto, dentro da unidade onde você atua?
Em Palmas nós temos além do Consultório na Rua, que atende especificamente na saúde, o CREAS que atende esse público também voltado para demandas assistenciais. Então, o Consultório na Rua é um serviço da Atenção Básica, garantido pela a Política Nacional de Atenção Básica no qual foi instituído em 2011.Mas, aqui em Palmas ele foi implantado em 2016. Nós trabalhamos na rua, tem um carro, ou seja, somos 5 pessoas que a gente roda na cidade de Palmas e nos distritos também, fazemos atendimento à população em situação de rua ou moradores de rua que são diferentes. Há a pessoa que mora na rua, e os que vivem em situação de rua que podem até ter casa, mas que ficam em situação de rua devido a algum transtorno mental, uso de álcool e outras drogas, conflito com a família e assim por diante.
Fonte: encurtador.com.br/dlzIR
Nosso trabalho é levar cada vez mais essas pessoas aos serviços de saúde ou assistência social, porque imagina só, a gente enquanto pessoas “organizadas” entre aspas, bem esclarecidas, as vezes encontra dificuldades de acessar alguns serviços, imagine um morador de rua alcoolizado, com as vestes que não são muito bem vistas socialmente. Então, são pessoas que têm mais dificuldade em acessar ao serviço, elas muitas vezes não são bem recebidas/atendidas, isso é uma realidade, e também por não conhecer dos seus direitos.
A gente pensa que todo mundo conhece o que é um CAPS, o consultório na rua, uma unidade de saúde, comunidade terapêutica, o que é uma clínica de reabilitação, o que é isso ou aquilo. Mas não, nem todo mundo tem esse tipo de acesso e conhecimento, e nosso trabalho é em cima disso, é realmente trabalhar in loco, com esse paciente, com esse usuário. Quando eu falo em usurário, não quer dizer necessariamente um usuário de álcool ou drogas, mas de um usuário do serviço como qualquer outra pessoa que faz uso dos serviços públicos, e nós trabalhamos com o facilitar desse acesso dos pacientes aos serviços. E, um dos serviços que a gente trabalha muito é com os CAPS, o CAPS II que é voltado para o atendimento de pessoas que têm transtorno mental, e o CAPS-AD III que é voltado para a população que faz uso prejudicial de álcool e outras drogas.
No meu serviço como assistente social, claro que a gente tem um trabalho integrado com a equipe, é um trabalho multiprofissional. No entanto, tem também os serviços específicos do serviço social. Trabalho com a viabilização dos usuários aos serviços da assistência, como os do CRAS, CREAS, habitação, alimentação, documentos, entre outros. A gente trabalha muito com o reestabelecimento do vínculo familiar, que é uma coisa muito fragilizada dentre as pessoas que vivem na rua.
Visitas, contato telefônico, essa sensibilização quanto a esse retorno, talvez uma visita que é algo simples. A gente não impõe que a pessoa precise ter o contato familiar. Mas, talvez quem sabe um dia das mães, um final de ano, talvez um fim de semana, um almoço, que a pessoa possa ir lá “fulano está preocupado com você, tá com saudade” você tem que tentar sensibilizar quanto a esse contato com a família, porque às vezes por mais que a gente trabalhe com esse usuário, dê todo o suporte, da rede, do serviço, mas se o sujeito não tem essa rede de apoio familiar o serviço fica muito mais difícil de continuar, porque quando a pessoa sair por exemplo do CAPS, do HGP ela vai retornar para a rua, que às vezes acontece também (HGP), em último caso mas acontece, quando o usuário está desorganizado, quando ele está em surto, quando está colocando em risco a vida dele ou de outras pessoas, a gente aciona o SAMU juntamente com a polícia, que já é um protocolo que o SAMU tem, para a internação no HGP.
Fonte: encurtador.com.br/eoGIZ
Essa internação serve para estabilizar a pessoa, quando ela estiver mais organizada ela volta e continua com a medicação na rua que não seria o ideal, o ideal seria voltar para casa, é por isso que existe esse foco no reestabelecimento do vínculo familiar. Imagine que quem tem a questão do vício que parte não só do desejo de parar, mas de uma doença que precisa de tratamento. Chega um momento que o organismo da pessoa sente falta da droga, como sente da agua por exemplo. Digo isso para exemplificar que não é querer parar, ela precisa ter um ambiente propício para isso, para que ela não volte a fazer esse uso, ou pelo menos que ela diminua, que tenha mais qualidade de vida, ou seja, trabalhamos muito com a redução de danos.
Trabalhamos também com acesso a documentações, isso já é uma parte bem específica do serviço social, já é uma demanda social. Do ano passado para cá a gente focou muito nisso porque eu percebia, que quando a pessoa ficava mais tranquila, ao tentar com ela o acesso aos serviços não só de saúde, como trabalho, renda, a questão também da habitação, transporte e várias outras coisas, só que geralmente 80% dos moradores de rua eles têm um problema da falta de documentação, e para você acessar qualquer serviço hoje, você só consegue exercer cidadania se você tiver o documento. Sem ele é como se realmente você não fosse ninguém, isso é uma verdade. Então, eu estava tendo muita dificuldade de estar inserindo esses usuários em outros serviços, na rede Intersetorial, devido à falta de documentação. Então, é uma coisa que a gente tem feito muito, que é dado esse acesso, democratizado esse acesso às documentações, especificamente a certidão de nascimento, porque a partir dela que você consegue os demais documentos.
Essas articulações abrem portas. A equipe já conseguiu a inserção de paciente na política de habitação, que foi contemplado, morava na rua e está morando em uma casa. Isso facilita muito a pessoa ter segurança, de estar dormindo em lugar seguro, porque a rua tem um contexto muito hostil, de exposição a muitas coisas, à violência por exemplo. E quando você consegue ajudar essa pessoa a ter acesso a esse tipo de serviço, de benefício, é algo maravilhoso, uma vez que o conjuntos de todos esses fatores contribuem para a saúde e bem estar do usuário. Não é fácil, mas é possível. Há vários casos de êxito de pacientes, depois que eles passaram a morar em uma casa eles conseguiram ter uma evolução muito grande. Quando essa pessoa tem necessidades, às vezes não é especificamente no Consultório na Rua em si, mas a gente orienta, “vamos marcar então para você ir na unidade de saúde”, a gente leva o paciente, agora não estamos transportando tanto devido ao Covid-19, então é mais arriscado, pegar um paciente, colocar no carro onde está toda a equipe, é uma exposição a um risco, tanto para o paciente quanto para a equipe, então a gente só transporta o paciente em último caso.
Quando não tem como levar, a gente marca com a pessoa no local ou órgão para acompanhar o atendimento, pois se a gente só articular tanto com o serviço como o paciente orientando o mesmo a comparecer numa consulta odontológica, uma consulta com o clínico, a chance de ela não ir é grande, porque hoje ela está sóbrio, mas no dia seguinte pode não está ou não se sentir pertencente daquele serviço. Então, a gente tenta pactuar de estar acompanhando mesmo essa pessoa, ou então marcar para ela ir no dia que a gente vai estar na unidade também.
Outra coisa, as vezes o paciente tem dificuldade de comunicação, nós temos paciente que tem problema de audição, onde há dificuldade de comunicação entre medico e ela, necessitando de um acompanhante para facilitar as orientações. A pessoa não consegue ouvir, ela não consegue seguir as orientações justamente porque ela não ouve bem, e como a gente já conhece a gente consegue se comunicar, aumenta o tom de voz, gesticula, então ela consegue entender, esse também é um trabalho que a gente faz, visto que o vínculo familiar é fragilizado e resulta na falta do mesmo nesses procedimentos. Eu já acompanhei paciente em banco por exemplo, o paciente recebe auxílio emergencial, recebe bolsa família, recebe um benefício que ele tem, mas ele não consegue entrar no banco, ele não sabe conversar com o gerente, ele não sabe dizer o que ele quer, ou então ele perdeu a senha, ele não consegue fazer esse tipo de serviço.
A gente às vezes precisa ser as pernas desses pacientes, porque isso também é saúde. Imagine só, essa pessoa tem direito a um benefício e ela não consegue sacar por exemplo, ela não vai conseguir comer bem, talvez não vá conseguir comprar um lençol para dormir na rua que seja, tudo volta para a saúde, por mais que não seja especificamente da saúde, eu poderia negar “não vou fazer isso que não é minha função ficar em banco por exemplo para acompanhar paciente porque isso já extrapola né as nossas competências profissionais”. No entanto, a gente tem muito esse trabalho da humanização mesmo, que faz parte também, tem uma política de humanização, a equipe trabalha muito em cima disso, o que vai estar melhorando a qualidade de vida desse paciente, que vai melhorar nosso trabalho também.
(En) Cena: Em relação às questões que levam as pessoas para essa situação de rua, qual você vê como mais comum em Palmas?
Eu acredito que tanto aqui quanto a nível nacional, o perfil é semelhante. A gente se depara com pessoas com vínculo familiar fragilizado ou interrompido, seja por estilo de vida, desemprego, falta de moradia, pais que não aceitam a sexualidade do filho e o mesmo acaba indo para as ruas, ou a pessoa começou a fazer uso de drogas e teve conflitos, a família não consegue lidar com a situação que também é difícil, ou perdeu um ente querido, o fato em si do uso de álcool e outras drogas, o que leva a pessoa usar outra vez, são vários motivos. Transtornos mentais levam também, acontece da pessoa desorganizar, somado a alguns conflitos familiares. Geralmente esses vínculos é um processo lento, nem sempre conseguimos, requer tempo, orientação, visto que família já está chateada, está magoada e desacreditada. Pode acontecer do sujeito está sob efeito do álcool e/ou outras drogas e agredir as pessoas, verbalmente ou fisicamente, isso causa um desgaste e até mesmo esse rompimento do vínculo. Como disse, é um desfio, a gente vai criando estratégias.
REFERÊNCIA
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 122, de 25 de Janeiro de 2011. Brasília, 2011.
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Preciosa: reflexões sobre o abuso sexual e a educação como instrumento de ressignificação do sofrimento
Carregado de um conteúdo extremamente dramático e pesado emocionalmente, o filme trata explícita e implicitamente sobre diversos temas, como gordofobia, violência intrafamiliar e estupro
Lançado em fevereiro de 2010, sob a direção de Lee Daniels, o filme Precious, “Preciosa”, em português, aborda a vida de Claireece “Preciosa” Jones, uma jovem de 16 anos inserida num contexto familiar extremamente abusivo desde a sua infância. Violentada pelo próprio pai e abusada fisicamente e psicologicamente pela mãe, Preciosa cresce permeada por traumas e questões psicológicas oriundas das situações vivenciadas durante toda a sua vida, incluindo o nascimento de duas crianças, fruto de uma série de abusos sexuais.
Carregado de um conteúdo extremamente dramático e pesado emocionalmente, o filme trata explícita e implicitamente sobre diversos temas, como gordofobia, violência intrafamiliar e estupro, além de questões referentes à psiquê do sujeito, como problemas de autoestima e as consequências psicológicas e comportamentais de abusos de diversas naturezas. Durante o filme, somos convidados a mergulhar a fundo na história da personagem e em sua profundidade psicológica, e, em determinado ponto da trama, somos apresentados a uma nova dinâmica na vida da jovem a partir da educação, aspecto que será discutido ao longo dessa análise juntamente dos outros mencionados anteriormente.
Fonte: https://bit.ly/2DWoLHs
Resumo do Filme
Preciosa mora no bairro do Harlem, em Nova York com sua mãe e sua história se passa no ano de 1987. As primeiras cenas do filme mostram a jovem em seu ambiente escolar, onde não interage com os colegas nem com os professores, além de sofrer provocações por conta de seu peso e aparência. Após uma situação na sala de aula, ela recebe um chamado da diretora, que demonstra preocupação com a jovem por conta da gravidez, por não ser a sua primeira, algo preocupante devido principalmente a sua idade.
Preciosa acaba sendo retirada do ambiente escolar por decisão da diretora, que a visita posteriormente em casa apresentando a oportunidade de estudo em uma escola alternativa, chamada “Cada Um Ensina Um”. Nessa cena, conhecemos a dinâmica familiar problemática de Preciosa, que é humilhada pela mãe pelas coisas mais triviais possíveis. Flashbacks mostram as memórias da personagem do estupro sofrido por ela. É o primeiro contato que temos com o fato de que as duas gestações da jovem foram oriundas dos abusos de seu próprio pai.
A visita da diretora desperta na jovem, que já era interessada nos estudos, principalmente em matemática, a vontade de se matricular na escola, mas sua mãe, irritada com a visita, a ofende de diversas maneiras, até mesmo colocando em pauta o abuso sexual sofrido pela filha, culpando-a pelo acontecido e alegando que ela havia “roubado seu marido”.
A desaprovação da mãe não impede Preciosa de buscar a escola sugerida pela diretora. Ela visita o local e faz a prova para se inscrever. Em outra cena, pela manhã, Claireece não encontra nada na geladeira. A fome e a indiferença da mãe a levam a roubar uma lanchonete, fugindo logo após para a escola em que havia se matriculado. No local, Preciosa é chamada pela professora para a sala e inicialmente relutante em participar da aula, a jovem acaba cedendo e conhece suas colegas, todas mulheres com histórias de vida diferentes. Chegando em casa, a jovem segue sendo humilhada pela mãe, que recusa a comida preparada por ela e obriga a própria filha a comer. Somos apresentados ao fato de que o peso de Claireece pode ter, inclusive, influência dos abusos da mãe.
Fonte: https://bit.ly/2T5Ijmg
Não bastando o contexto familiar desorganizado e problemático, a mãe de Preciosa, conforme mostrado em flashbacks, ensaia uma vida perfeita para receber a visita da assistência social, de modo a não perder o auxílio financeiro. O teatro organizado por ela é desmontado pela jovem, que, a pedido da mãe, vai à assistência social, mas é clara com a assistente quanto aos problemas em sua casa. Descobrimos também que a filha de Claireece nem mesmo mora em sua casa, sendo criada pela avó, que age passivamente frente aos comportamentos da filha, ou seja, mãe de Preciosa.
Várias cenas são exibidas ao longo do filme retratando a jovem imersa em introspecções e sonhos onde ela se vê feliz com o próprio corpo e aparência. Em uma delas, a imagem que ela vê refletida no espelho é completamente diferente da sua, mostrando uma mulher totalmente encaixada nos padrões de beleza. Entretanto, a baixa autoestima, o histórico de abusos e agressões e a dinâmica familiar desestruturada tornam-se cargas mais leves à medida que a jovem passa a frequentar mais as aulas em sua nova escola.
A empatia da professora com Claireece abre portas para a aprendizagem, e a jovem começa não só a ler melhor como também a produzir textos. No auge de sua gravidez, ela entra em trabalho de parto durante uma aula e é levada ao hospital. A assistência de sua professora e de suas colegas durante todo o processo mostra a força dos laços construídos durante as aulas. Apaixonada por sua criança, mas ainda sem uma estrutura familiar adequada para criá-la, Preciosa se vê em mais um impasse em sua vida. Ela retorna, um tempo depois, a sua casa, levando consigo seu filho recém nascido. A reação de sua mãe é extrema, mais do que nunca. Ela chega ao ponto de jogar a criança no chão e agredir fisicamente a jovem, que foge com o filho nas mãos. Num último ato de loucura, a mulher joga uma televisão nos dois, que conseguem escapar do ataque. Então Blu Rain, sua professora, num dos gestos mais humanos exibidos durante o filme, entra em contato com vários números e encontra um lar, ao menos provisório, para a jovem, na casa de um casal de mulheres, que a acolhem junto da criança.
A dedicação de Preciosa na escola, cada vez mais, começa a lhe trazer frutos. Ela chega a ser premiada por sua história e evolução por meio da educação. Entretanto, pendências de seu passado continuam a permear seu presente, com o agravante de uma notícia certamente perturbadora: a de que o pai da jovem, seu estuprador, havia falecido com o vírus da AIDS. Um exame acaba por revelar que Claireece também é portadora do vírus. Ao desabafar sobre isso em sala de aula, sua professora oferece a ela seu apoio e a jovem rebate dizendo que o amor em sua vida só lhe trouxe coisas ruins. A professora então, em uma das cenas mais belas e simbólicas do filme, desconstrói o conceito de amor trazido por Preciosa, difereciando o sentimento dos abusos sofridos por ela durante toda a sua vida.
Fonte: https://bit.ly/2IrDTSv
Nas cenas finais, numa das últimas visitas à assistência social, Claireece recebe a visita de sua mãe, que confessa na frente da filha e da assistente que era ciente dos abusos sexuais que ocorriam sob o seu teto, além de dizer que esses abusos já aconteciam quando Preciosa ainda era uma criança de três anos. Seu discurso, totalmente carregado de mágoa e rancor, culpabiliza a jovem pelos abusos, como se Claireece fosse a responsável pela separação dos pais. A chocante cena encontra seu desfecho quando a jovem decide fechar a porta do seu passado, levando consigo suas duas crianças e uma série de vivências e sofrimentos resignificados.
Análise
Apesar de se passar nos Estados Unidos, a história de Claireece, uma jovem negra e pobre, representa uma parte da população brasileira ainda à mercê de situações de abusos sexual, da mesma faixa etária da personagem. O contexto familiar de Preciosa não é uma realidade distante: pode estar mais perto do que imaginamos. Uma pesquisa realizada por Dos Santos (2014) apontou que o perfil de crianças que sofrem abusos sexuais é predominantemente feminino. Dados da pesquisa também expressam que, na maioria das vezes, a violência é intrafamiliar e tendo o pai da vítima como o agressor, o que vai de encontro com a história. Considerando o contexto histórico do filme, pouco se falava sobre educação sexual nas escolas. Atualmente, muito se discute em relação a isso, principalmente no uso como ferramenta de trabalho na escola, visto que, no âmbito escolar, há a possibilidade do assunto ser abordado de maneira profissional e lúdica.
Conforme Spaziani e Maia (2015), o processo de educação sexual parte do pressuposto que a criança é um sujeito de direitos, principalmente no que tange à informação. Educar crianças e adolescentes nesse viés seria prevenir doenças, possíveis gravidezes precoces e abusos sexuais. A importância desse processo nas escolas é indiscutível. Trazendo para o contexto do filme, se o momento histórico e o ambiente escolar de Preciosa fossem propícios para a instauração de um debate acerca da educação sexual, sua situação de vulnerabilidade poderia ser investigada e repassada o quanto antes aos dispositivos de assistência social e psicológica. Esse tipo de discussão também é necessária no âmbito familiar, mas não deve ser de exclusividade deste, visto que, infelizmente, ainda em muitas famílias, a desinformação sobre o assunto é enorme, além dos inúmeros casos de abusos dentro do próprio contexto familiar, como no de Claireece.
Entendendo o ser humano como um organismo moldado por suas interações, é fácil compreender que abusos sexuais trazem inúmeras consequências para o desenvolvimento, principalmente em crianças. Tais consequências abrangem aspectos físicos, sociais, psicológicos e sexuais, e podem variar de intensidade de acordo com determinados fatores (FLORENTINO, 2015). O vínculo entre a vítima e o abusador, por exemplo, pode ser um agravante dessas consequências. Outro fator é a diferença de idade entre vítima e agressor. Deve-se considerar outros aspectos, como se houve uso de violência física além da violação sexual durante os abusos. De toda forma, as consequências são inevitáveis – apenas mudam de vítima para vítima e de caso para caso.
Fonte: https://bit.ly/2SMiPuS
No filme, Preciosa é abusada pelo próprio pai. De acordo com Florentino (2015), as consequências psicológicas do abuso intrafamiliar também são diversas e até mais duradouras, isso porque há uma alteração das imagens parentais. Não só a imagem do pai é modificada como também a da mãe. No caso de Claireece, sua relação com a mãe tornou-se ainda mais confusa e problemática, visto que ela era conivente e omissa com a violência e ainda assumia uma postura de culpabilizar a jovem. Para a criança ou adolescente vítima de abuso sexual intrafamiliar, o núcleo familiar deixa de ter uma conotação de segurança e afeto para ser um espaço de relações conflituosas, dor e sentimentos confusos, o que acarreta sérias consequências no desenvolvimento psicológico e social. Entre os prejuízos observados em crianças e jovens vítimas de abuso sexual, como a própria Claireece, está o retraimento social e a dificuldade em estabelecer vínculos e em confiar nas pessoas. (FLORENTINO, 2015). Isso é observado na personagem ao longo do filme, que não possuía relações sociais saudáveis e não se sentia confortável em compartilhar seus pensamentos e sua individualidade com as demais pessoas, como exemplificado na cena em que ela deveria se apresentar para as colegas de sua nova escola.
Gottardi (2016) também ressalta algumas consequências no âmbito psicológico. Entre elas, a baixa autoestima, característica também percebida na personagem. A relação da jovem com sua imagem corporal é de desprezo e insatisfação, não só como consequência dos abusos sexuais como também resultado das situações de violência psicológica sofridas por ela durante sua história de vida. Sua mãe, assim como várias pessoas ao seu redor, contribuíram para o desgaste emocional de Claireece, ao ponto de que a adolescente chegou a ver sua imagem alterada no espelho, em uma distorção que a encaixava nos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade.
No filme, a jovem Claireece, inserida num novo contexto escolar, desenvolveu novas habilidades, percepções e ressignificou várias vivências. Conforme Gonçalves (2014), o papel da escola no que se refere à educação de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual é imprescindível. O ambiente escolar é tido como uma extensão da família, e, quando a criança está inserida em um ambiente familiar problemático, é na escola que ela deve ter uma referência de apoio e afeto, muito além da relação professor-aluno de ensinar e aprender. A postura do profissional de educação nesse contexto é essencial para que os impactos dos abusos sejam minimizados, visto que as consequências dessa violência se estendem no contexto escolar, às vezes representadas por dificuldades de aprendizagem e concentração, outras vezes por problemas de socialização e conduta (GONÇALVES, 2014). A professora de Preciosa, Blu Rain, comprometeu-se com a jovem não só em prol de sua educação, mas pensando em trabalhar suas habilidades pessoais de modo a reduzir os danos do abuso. É visível o desenvolvimento da personagem durante o filme, que consegue formar vínculos e ressignificar várias situações de sua vida, inclusive seguir com a criação de seus dois filhos, frutos do abuso, e conviver com o HIV, numa época em que pouco se sabia sobre a doença.
Fonte: https://bit.ly/2Vbg1UW
Muito além de apenas um veículo de entretenimento, o cinema pode ser uma ferramenta despertadora de insights e reflexões. Esse caso se aplica a Preciosa – Uma História de Esperança, um filme carregado de lições e discussões sobre violência, educação e família. Trazendo para o contexto brasileiro, muito se precisa discutir ainda sobre esses temas, de modo que a vida de jovens e crianças vítimas de abuso não seja eternamente definida e marcada pela violência, mas pela esperança de um futuro transformado pela educação.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
PRECIOSA – UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA
Título Original: Precious
Direção: Lee Daniels
Elenco: Gabourey Sidibe, Mariah Carey, Mo’nique, Paula Patton;
País: EUA
Ano: 2010
Gênero: Drama
REFERÊNCIAS:
DOS SANTOS, Creusa Teles. Abuso sexual com criança: uma demanda para o serviço social. 2014. 201f. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2014.
FLORENTINO, Bruno Ricardo Bérgamo. As possíveis consequências do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes. Revista de Psicologia. v. 27, n. 2, p. 139-144, maio-ago. 2015. São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil.
GONÇALVES, Cássia de Oliveira. Implicações do abuso sexual no processo educacional: um olhar para a criança. 2014. 92f. Monografia – Universidade de Brasília, Brasília, Brasil, 2014.
GOTTARDI, Thaíse. Violência sexual infanto-juvenil: causas e consequências. 2016. 71f. Monografia – Centro Universitário UNIVATES, Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil, 2016.
SPAZIANI, Raquel Baptista; MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi. Educação para a sexualidade e prevenção da violência sexual na infância: concepções de professores. Rev. Psicopedagogia, Bauru – SP. pg 61-71, 2015.