Erasmo, tido como herói de batalha nos contextos de reforma e contrarreforma; O mesmo tem marca fortíssima para o surgimento do protestantismo. Erasmo era admirador fiel de Jerônimo. Este foi tido como santo por Erasmo, por morrer virgem, não ingerir carne ou bebidas alcoólicas, dormir no chão, usar trajes cilícios e se mutilar três vezes ao dia. Seu amigo, Quentin Metsys chegou a pintar um retrato de Erasmo que nos remete ao famoso retrato de Jerônimo, por Van Eyck, para representar o quanto Erasmo era devoto á seu herói, sendo retratado na mesma posição (p. 132). Foi esta adoração que o levou a aprender grego, para que pudesse entender de forma direta os escritos de seu ídolo. E ao se deparar com as diferenças que as traduções traziam com o que Jerônimo escrevera de fato, Erasmo se dedicou a retraduzir corrigindo todos os equívocos que os textos traziam.
Porém esta ação de Erasmo o fez ser conhecido como “agressor herético” a Jerônimo (p. 134), pois Erasmo se voltou para um livro tido como livro santo pela igreja e pela sociedade da época, A Vulgata, causando uma crise social. Este livro regia todas as normas e leis da época, bem como os serviços religiosos, representando o poder do Latim na Idade Média.
Levantamentos como o preço da autoridade da igreja e a veracidade da Palavra de Deus nortearam os sentimentos diante da crítica de Erasmo, pois este havia colocado a ordem da sociedade em jogo (p. 135). As pessoas temiam que as alterações da Vulgata ameaçassem a instituição da igreja, assim como ocorreu. “A igreja foi violentamente desmembrada por esse movimento intelectual. ”
Fonte: goo.gl/wAm5ss
As mudanças que Erasmo propôs dividiu a sociedade e um massacre foi iniciado, como o caso de Hermann van Flekwyk que foi morto na fogueira acusado de “mamar nos peitos venenosos de Erasmo” (p.136), e a erudição de Erasmo se tornou caso de vida ou morte. Neste momento o Grego havia se tornado um alicerce de aprendizado e de cultura, uma das maiores conquistas da Renascença. Mas foi no Concílio de Trento, em 1546, que a Vulgata foi declarada como “autentica” e fora proibido a rejeição da mesma, neste momento toda a inflamação sobre a versão de Erasmo foi apagada (p. 137). Nasce neste momento um sentimento de nojo de tudo que fosse de cunho grego, fora orientado até as crianças que se afastassem do grego. Ele se tornou sinônimo de origem de heresias. E Erasmo passou a enfrentar muitos adversários de forma direta.
Após as críticas de Lee a primeira edição da versão de Erasmo, uma cópia do livro de Lee foi mergulhada em fezes e exposta no meio de uma sala de leitura pública. John Meier mostra a Erasmo a real preocupação da igreja quanto a exatidão da letra diante da manutenção da autoridade. Esta discussão entre Erasmo e Meier expressou exatamente o sentimento das discussões entre reformadores e conservadores. Um preocupado com a verdade e a erudição e o outro com tradição e autoridade, respectivamente. Nasce neste momento também um grupo chamado “Os Troianos” que reprimia toda e qualquer expressão de estudo e aprendizado dos clássicos, ridicularizando quem o estivesse praticando, mas foram repudiados por More, em nome do rei Henrique VIII, como “facções estúpidas (p.139).
Logo, em 1559, Elizabeth I e Eduardo VI, que foram instruídos por Ascham, acadêmico de Cambridge muito influenciado por Erasmo e pela causa humanista, em uma rigorosa educação em grego, levaram a Inglaterra ao protestantismo. Porém criticados por Erasmo quanto a tradução da Bíblia para o inglês. Esta critica se deu por uma preocupação exacerbada pela tradução que poderia gerar conflitos de sinônimos e mudaria princípios religiosos como a disputa por “amor” e “caridade” (p.140). Entretanto o uso do inglês foi radical em apoio a Reforma. E por fim T. S. Eliot se preocupa com a importância de se estudar grego e latim para entender as raízes e a sobrevivência da civilização cristã, usando a compreensão dos clássicos para o entendimento da tradição ocidental (p.141).
REFERÊNCIA:
GOLDHILL, Simon. Amor, Sexo e Tragédia. Ed 1, Editora Jorge Zahar, 2007.
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A Vida de Brian: a incomunicabilidade produzindo a religião e a política
“A Vida de Brian” (1979) do grupo inglês de humor Monty Python é um filme que não só se tornou atemporal como, depois de 38 anos, ganhou novas leituras. Paradoxalmente, com a expansão das novas tecnologias de comunicação como Internet e redes sociais. Por que? Porque o filme explora a incomunicabilidade humana: Religião e a Política como subprodutos da mentira, ilusão e ideologias que sempre tentam justificar algum mal entendido resultante da radical incomunicabilidade da espécie: o fato de que cada um vê o que quer ver e ouve o que quer ouvir.
Brian é confundido com o Messias e passa a ser perseguido não só pelos romanos como também por uma multidão de seguidores que veem nele apenas aquilo querem ver. Pedem de Brian um “sinal” da sua suposta divindade. Não importa o quanto Brian se esforce para tentar desfazer o mal entendido. Involuntariamente criou uma nova religião. E o que é pior: a multidão está ávida por um mártir que morra por ela na cruz…
Certamente Jesus de Nazaré gostaria do filme Vida de Brian (1979) da trupe de humor inglês Monty Python. Afinal, Jesus tinha senso de humor, manifestado em trocadilhos ocasionais na Bíblia como, por exemplo, “É mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino do Céu”. Ao contrário dos seus seguidores: na época do lançamento do filme, muitos representantes de religiões, sejam protestantes ou católicos, acusaram o filme de blasfemo e o grupo inglês de herege.
O filme chegou a ser banido em muitas cidades dos EUA. Apesar disso, A Vida de Brian não zomba da vida de Cristo, mas de um certo “Brian de Nazaré” que nasceu no mesmo dia e num estábulo vizinho ao recém-nascido famoso e aureolado. Aliás, no filme, Cristo aparece apenas duas vezes, sempre de passagem: na cena inicial como o vizinho famoso de Brian e na sequência do Sermão da Montanha. Diante de uma enorme multidão reunida, alguém se queixa: “Não consigo ouvi-lo! O quê ele disse?”. “Parece que ele disse que os gregos herdarão a Terra… e bem aventurados os produtores de queijo…”, alguém responde.
Depois de décadas, esse humilde blogueiro teve a oportunidade de voltar a assistir A Vida de Brian, o segundo longa do grupo depois do Em Busca do Cálice Sagrado (1975). O que me surpreendeu é que, 38 anos depois, o filme comprovou não só ser atemporal como também parece ter se renovado com o tempo ganhando novas leituras dentro do contexto cultural atual. Ao contrário de humoristas da mesma época que acabaram ficando datados como, por exemplo, as paródias de Mel Brooks (O Jovem Frankenstein, SOS Tem Um Louco no Espaço ou História do Mundo Parte 1).
Bem diferente, A Vida de Brian parece ter ganho ainda mais força paradoxalmente devido a posterior expansão das tecnologias de comunicação: TV digital, Internet, redes sociais etc. Apesar de toda banda larga tecnológica, o grande problema humano ainda é a incomunicabilidade. Algo parecido com o “ruído” do “telefone sem fio” da sequência do Sermão da Montanha no filme.
Como não poderia deixar de ser, tudo se passa sob o domínio e arbitrariedades do Império Romano que oprime o povo judeu. O filme acompanha a vida de um zé-ninguém chamado Brian Cohen (Graham Chapman) e a sua mãe Mandy Cohen (Terry Jones): ranzinza, autoritária e materialista, que o trata como fosse ainda uma criança. Toda a narrativa é como se fosse um acúmulo de mal entendidos, ruídos e enganos que vão se amontoando até chegar ao caos final. Já na primeira sequência o filme já dá o tom: os três reis magos entram no estábulo errado e acham que o recém-nascido Brian é o Messias. Sua mãe os trata como fossem bêbados pedófilos até que descobre que querem presenteá-lo com ouro, incenso e mirra. Ela fica com os presentes enquanto os magos rezam para o messias errado.
Claro que depois os reis magos descobrem o engano, empurram a mãe de Brian e retomam a força os presentes, enquanto o pobre bebê é esbofeteado pela mãe frustrada por não aguentar mais ouvir tantos choros, além de ter perdido os valiosos presentes. A Vida de Brian nos mostra como essa série de enganos (produzidos pela incomunicabilidade humana) se espalha não só pela infeliz vida de Brian, mas também se alastra na Política, na Religião e no Poder. É o ápice do senso de humor do grupo Monty Python: non sense, cinismo e humor negro – a capacidade de através do humor abordar temas muito sérios. De como o riso cínico pode desconstruir uma realidade aparentemente sólida e racional.
Após a impagável sequência inicial do engano dos três reis magos, acompanhamos Brian aos 33 anos, preocupado com sexo, em dúvidas se é realmente atraente para as mulheres e complexado pelo seu nariz grande. Chateado de ser ainda um filhinho da mamãe trintão, Brian vê a chance de ser alguém e se livrar da possessão materna: juntar-se à Frente Popular da Judéia, uma célula terrorista que pretende minar a dominação dos romanos sobre o povo judeu. O grupo planeja a ação mais ousada: sequestrar a esposa de Pôncio Pilatos. Mas na ação no subsolo do palácio de Pilatos, dão de frente com outro grupo terrorista que teve a mesma ideia.
Resultado: todos começam a brigar entre si enquanto, incrédulos, os soldados romanos observam esperando todos lutarem até cair para depois levar todo mundo preso. Brian é capturado e levado na presença de um impagável Pôncio Pilatos (Michael Palin) com língua presa (troca constantemente o “r” pelo “l”) e inseguro por perceber que os soldados o ridicularizam pelas costas. Enquanto Pilatos ameaça punir os soldados que o ridicularizam, Brian escapa e pula de uma janela, para cair em um beco onde estão diversos candidatos a “messias” fazendo discursos. Cada um com seus seguidores, todos tolerados pelos soldados romanos.
O Messias involuntário
Brian então finge ser mais um candidato a messias para passar desapercebido pelos romanos. Inventa um discurso qualquer e… pronto! Um pequeno grupo se forma para ouvi-lo. Brian fala de forma desconexa, preocupado com os soldados que o procuram e sai correndo, deixando incompleta uma frase. O pequeno grupo, que vira uma multidão, vai atrás de Brian, pedindo que complete a frase. Todos acreditam em algum desfecho de frase místico ou profético. Pronto!
A contragosto, Brian virou um novo messias, seguido por diferentes grupos que têm uma interpretação diferente para as palavras desconexas que ouviram. Não precisa de muito tempo para sabermos que ironicamente sua vida, que sempre correu paralela a de Jesus Cristo, poderá ter o mesmo desfecho trágico do filho de Deus. O cinismo em relação ao Poder, às burocracias e aos prestadores de serviço (seja dos pedintes aos comerciantes) são temas que perpassam o humor do Monty Python desde os tempos da série de TV Flying Circus (1969-1974) na BBC.
Em A Vida de Brian é ainda mais explícito: o ex-leproso revoltado porque Jesus o curou e ele perdeu seu ganha-pão de pedir esmolas; a Frente de Libertação propositalmente burocrática e inerte para evitar derrotar os romanos e chegar ao Poder porque não saberia o que fazer quando chegasse lá; comerciantes que precisam pechinchar não pela racionalidade econômica, mas por um obrigação moral; os seguidores de Brian que não aceitam os desmentidos do seu “messias”, não porque acreditam que ele seja um profeta mas porque sem ele não teriam outra coisa melhor para fazer; os romanos tão desorganizados que só conseguem dominar a Judéia porque os judeus parecem mais interessados em cuidar das suas vidas e fazer troça dos romanos, e assim por diante.
O cinismo do helenismo grego
Embora o humor do grupo a princípio trabalhe com estereótipos (o judeu materialista e covarde, um Pilatos gay enrustido etc.), vai muito mais além disso: explora uma forma especial de cinismo que remonta a tradição filosófica do período helenístico da Grécia antiga de Diógenes e Pirro – o cinismo (ou “kynismo” para os gregos da antiguidade) como forma crítica contra as três formas de falsidades que sustentam os poderes e a sociedade: a mentira (a má fé), a ilusão (a falsidade ontológica do mundo) e a ideologia (a ilusão mobilizada para finalidades políticas) – sobre isso clique aqui.
O cinismo do grupo inglês é cético: vê uma espécie de reversão irônica em cada ação humana – a fala de Jesus no Sermão da Montanha vira um “telefone sem fio”; a Frente política de oposição aos romanos vira um fim em si mesmo; tudo que Brian fala é filtrado por aquilo que seus seguidores querem ouvir. Por mais que Brian negue e insista que tudo foi um mal entendido, seus seguidores interpretam como algum tipo de mensagem mística cifrada. Por isso A Vida de Brian vê a Religião, a Política e o Poder de forma cínica – tudo é um conjunto de mal entendidos e incomunicabilidade na qual cada um entende o que quer entender, ouve o que quer ouvir.
Religião e política como racionalizações
Toda a mentira, a ilusão e as ideologias produzidas por elas seriam nada mais que racionalizações para justificar esse mal entendido radical. Assim como na emblemática sequência em que Brian foge desesperado não só dos romanos mas também de uma multidão de seguidores que pedem dele um “sinal” de sua divindade. Na fuga, Brian deixa derrubar uma cabaça (vaso de barro com gargalo estreito e comprido) e uma sandália acaba saindo do seu pé, ficando para trás.
O grupo que pegou a cabaça, ergue o objeto dizendo que é “a cabaça sagrada de Jerusalém” e passam a se autodenominar “cabacenos”. Enquanto outro grupo rival levanta a sandália para o céu e grita que aquilo é o verdadeiro “sinal”. Pronto! Acabou de ser criado o primeiro cisma religioso da história do Cristianismo. E sabemos que mais tarde o Império Romano adotou o Cristianismo como a religião oficial. Será que foi mais uma estratégia maquiavélica de “dividir para reinar” entre tantos outros exemplos que a História nos conta?
FICHA TÉCNICA DO FILME:
A VIDA DE BRIAN
Diretor: Terry Jones
Elenco: Graham Chapman, John Cleese, Terry Jones, Eric Idle, Michael Palin, Terry Gillliam
País: Reino Unido
Ano: 1979
Classificação: Livre
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“Êxodo: deuses e reis” – a saga do povo judeu e a antiga disputa entre os adeptos da imanência e da transcendência
Dirigido por Ridley Scott (de Gladiador), “Êxodo: deuses e reis” está em cartaz nos cinemas, estreou em primeiro lugar nas bilheterias dos Estados Unidos, e destaca a saga do povo hebreu que se libertou depois de 400 anos de escravidão, no Egito Antigo.
O filme é uma adaptação do livro bíblico homônimo, parte das Escrituras Hebraicas que os cristãos chamam de Antigo Testamento (os judeus denominam-na de Torah), onde se narra “a vida do profeta Moisés (Christian Bale), nascido entre os hebreus na época em que o faraó ordenava que todos os homens desta linhagem fossem afogados”. A história (ou estória, para os que não acreditam nos relatos bíblicos), amplamente conhecida no Ocidente, mostra como o profeta foi resgatado e viveu como príncipe, até se dar conta de sua grande missão: libertar o povo judeu da exploração egípcia e conduzi-lo à Canaã, a Terra Prometida (a atual Israel). Como não poderia deixar de ser, o longa tenta reproduzir ao máximo a visão escatológica que permeia a antiga escritura sagrada.
Em “Êxodo” fica clara a enorme devoção pelo que o povo hebreu/judeu sempre foi (re)conhecido. Demonstra, em linhas gerais, que mesmo sob o jugo da opressão (assim como ocorreu com os escravos africanos no Brasil, quando não lhes era permitido praticar a sua fé durante o processo de colonização do país), eles conseguiram manter-se coesos e esperançosos e, assim, conservaram e perpetuaram suas tradições e religiosidade até nas condições mais adversas. Isso, de fato, parece ocorrer até os dias atuais, em que pese o relativo alívio advindo do reconhecimento da nação judaica, há mais de 60 anos, ainda sob tensão com os vizinhos mulçumanos.
RELIGIOSIDADE E DESTEMOR
“Êxodo: deuses e reis” dá uma pequena demonstração da força deste povo guerreiro, descendente de Jacó e Abraão. Com o longa, tem-se uma breve ideia de o porquê o “gene hebreu” fez surgir algumas das mentes mais brilhantes do mundo, tais como Steven Spielberg, Sigmund Freud, Albert Einstein, Baruch de Spinoza, Karl Marx, Woody Allen, Michael Bloomberg, Franz Kafka, Levi Strauss, Marcel Proust e Stanley Kubrick, só para citar alguns. Além disso, a produção hollywoodiana apresenta, dentre outras coisas, uma discussão tão antiga quanto a própria existência do judaísmo: a permanente tensão entre os adeptos da imanência e da transcendência, no âmbito da metafísica.
Para quem acha que estes assuntos não dizem respeito à saúde mental, ledo engano. Lembremos que na produção da subjetividade, e no processo mesmo de constituição do que se chama de “virada civilizatória”, como bem descreve algumas das teorias do psicanalista Freud (sob o viés da origem das neuroses e/ou traços de personalidade), as atuais visões de mundo (até as aparentemente “neutras” perspectivas seculares) também são fruto do imaginário de fundo religioso, e se dele não dependem completamente, ao menos derivam em alguma medida.
Feito este adendo, voltemos para o “embate” imanência X transcendência. Em “Êxodo”, fica clara a posição das tradições teístas, com a típica marcação dual (entre quem cria e quem é criado) que só pode ser superada a partir da transcendência. Na filosofia, este assunto é aprofundado a partir do desenvolvimento da teleologia e da ontologia e seus desdobramentos altamente racionais para o sentido das “causas finais, causas eficientes e estudo do ser”. O primeiro e um dos maiores expoentes desta investigação é Aristóteles, cujo trabalho também ficou conhecido como teleologismo, o típico uso de uma noção de “orientação para um fim” (no caso dos judeus, o fim de seu povo naturalmente seria a união com D’us [Deus]). A transcendência (transcendence), neste contexto
É a exterioridade e a superioridade absolutas: o outro lugar de todos osaquis (e até de todos os outros lugares), e sua superação. […] Pois ‘o sentido do mundo deve ser encontrado fora do mundo’, escreve Wittgenstein. A transcendência é esse fora ou o supõe. É o Reino ausente, que nos condena ao exílio (COMTE-SPONVILLE, 2011 – pág. 602)
O “Reino ausente” dos judeus, num âmbito absoluto, é a própria condição de comunhão com Deus. Na terra, esta “ausência” é preenchida por Canaã, a “Terra Sagrada” dos profetas ancestrais responsáveis pelo recebimento, compilação e transmissão de um conjunto de preceitos éticos capazes de, se levados a cabo, reaproximar as criaturas do Criador. Além disso, por transcendência se entende uma “superação de todo dado ou de todo limite […]” (idem, pág. 603). A liberdade seria possível, desta forma, pela possibilidade de transpor qualquer situação e, no mais da verdade, até aceitar a contingência e a privação tendo em vista uma dada finalidade (a união com o Sagrado, com “O Eterno”). Com estas breves definições, é possível ter um vislumbre do por que o povo judeu resistiu a todo tipo de perseguição nos últimos três mil anos, e particularmente no século passado, com o abominável holocausto patrocinado pelos nazistas. De fato, parece ser um povo extremamente forte e persistente.
A outra ponta, a imanência, poderia ser representada no filme pelo personagem do faraó Ramsés II, figura aparentemente “autossuficiente”, uma espécie de “rei-deus” (ele até chega a se denominar desta forma, no longa), que “detém um sentido de autoconstituição histórica” (idem, 300) e que, portanto, só acredita no próprio poder ou na dinâmica das condições empíricas que resultarão em experiências estritamente internas. Nesta perspectiva de imanência (há outras), existe uma aproximação com o materialismo e sua “tendência a negar a realidade espiritual autônoma […], uma espécie de naturalismo radical” (idem, pág. 371). Em que pese o fato de Ramsés II cultuar as divindades de seu povo, no filme ele não demonstrava acreditar verdadeiramente em tais divindades.
Ramsés, contudo, também não poderia ser enquadrado no chamado “imanetismo absoluto” que é encontrado em Spinoza, já que Deus, para este filósofo holandês, não é algo a ser alcançado, sequer é algo que está separado (Criador de criatura), uma vez que tudo “está contigo inseparavelmente na natureza de um ser ou de um objeto”, sendo um contrassenso buscar uma complementaridade para o que já detém tudo. O rei egípcio, portanto, absorve a imanência apenas pela forma como acredita possuir poder ilimitado, mas ao mesmo tempo se coloca como aquele que cria, no âmbito do seu reino, e que, portanto, está acima/separado dos demais (um aspecto da transcendência, com outra perspectiva).
DIFERENÇAS MARCANTES
Em alguns de seus escritos (notadamente em sua coluna periódica na revista “Filosofia – Ciência & Vida”), o filósofo Renato Nunes Bittencourt (da UERJ) aponta para o problema da transcendência. Para ele, esta abordagem tira do homem a possibilidade de lidar com o inesperado, já que se baseia em “narrativas universalistas que pressupõem a existência de uma verdade plena”. Bittencourt defende os “valores trágicos da imanência” que foram pregados por Nietzsche, onde “tudo o que há é o que existe no âmbito da experiência possível”. Em oposição a esta visão, há o filósofo Luiz Felipe Pondé, que ao se referir à antropologia ortodoxa, diz que
“o pecado mais temido […] é a auto-pistis (literalmente, ‘fé em si mesmo’), ou ‘suficiência’. Trata-se da ideia do ser humano como um ser suficiente, concebido no contexto exclusivo da ‘natureza natural'” (PONDÉ, 2013 – pág. 21)
Pondé lembra que, para a ortodoxia, o “homem é um ser sobrenatural ao qual a natureza é agregada”. Desta forma, a religião e o sobrenatural são encarados como o espaço do bem, “enquanto o mal encontra-se ligado ao regime de imanência, ao que é deste mundo (‘o inferno é aqui’)”. O demônio, portanto, além de um estado de perturbação mental, seria a crença exclusiva na materialidade.
Estes são, certamente, alguns dos pontos abordados no filme. Eles têm os seus prós e contras. Para os eminentemente imanentes (como algumas correntes budistas), há o benefício de se cultivar uma forte “investigação do self”, através de diligentes processos meditativos. Como não acreditam em nada que seja estritamente “sobrenatural”, tendem a desenvolver processos subjetivos assentados na experiência e na contingência. Um ponto negativo é que, se levado a um extremo, esta visão pode descambar num materialismo frio, egoísta, que não toma em conta a necessidade das outras pessoas e seres. Daí a forte ênfase budista na compaixão e na interdependência, espécie de antídoto para evitar anomalias.
A transcendência, como aspecto positivo, é lastro para o idealismo e para as utopias. É uma espécie de geradora de perspectivas ideais. Provavelmente pessoas e nações, no Ocidente, chegaram a altos padrões de desenvolvimento motivadas por sonhos, ideais e possibilidades que “transcendem a simples experiência empírica, previsível e puramente material”. Um ponto negativo, como demarca Bittencourt, é a tendência a negar completamente a vida – no aqui e agora – como realidade última (o que pode levar a um niilismo); há também, lembra Bittencourt, certa incapacidade de grupos de adeptos da transcendência em lidar com os contratempos (já que se orienta à base de preceitos universais, com pouca margem para correção).
RELIGIOSIDADE E SAÚDE PSÍQUICA
De comum entre os espiritualistas absortos tanto pela imanência quanto pela transcendência há os benefícios psicofísicos provocados pela prática religiosa. São vários os estudos recentes que demonstram maior expectativa de vida e menor propensão à depressão, por exemplo, em quem pratica alguma religiosidade. Num deles, desenvolvido pelo Serviço de Medicina Integrativa de um dos maiores hospitais do Brasil, o Albert Einstein (de São Paulo), chegou-se a conclusão de que quem desenvolve a espiritualidade tem “mais chances de se recuperar rapidamente de alguma doença”.
De acordo com matéria da revista Superinteressante publicada há um ano, isso não se trata de “intervenção divina nem feitiçaria. É comportamento. Os entrevistados que são religiosos apresentaram um comprometimento maior com a própria saúde”, e quando submetidos a processos clínicos mais severos, como uma cirurgia ou transplante, estão mais bem preparados tanto organicamente quanto psicologicamente.
Por fim, “Êxodo: deuses e reis” mostra outra faceta importante da religiosidade. Trata-se do desenvolvimento do espírito comunitário. Adeptos da imanência ou da transcendência têm em comum o forte hábito para práticas em grupo. Os rituais e ações coletivas, portanto, são mecanismos que criam unidade (mesmo na multidiversidade de pessoas), que ajudam a desenvolver hábitos colaborativos e, consequentemente, amplia em seus membros um claro sentimento de “pertencimento”.
Em época regida por um individualismo desmedido, trata-se de uma prescrição relativamente acessível para quem está sujeito a uma série de patologias psíquicas. E excluindo-se parte da abordagem milenarista comum a algumas tradições messiânicas, cujo viés está mais para a geração do medo e da subserviência, as religiões estão cada vez mais próximas da ciência (e vice e versa), ao passo que muitos pensadores apontam este como o grande desafio do século 21.
Que este diálogo possa render bons frutos, para o bem da Filosofia e da Psicologia. E para o bem, obviamente, de todos os que procuram dar significados “mais concretos” à vida, diante de um mundo cada vez mais marcado pela profusão de possibilidades e, ao mesmo tempo, por uma instabilidade aterradora.
FICHA TÉCNICA DO FILME
ÊXODO: DEUSES E REIS
Título Original: Exodus: Gods And Kings Direção: Ridley Scott Países/Ano: EUA, Reino Unido, Espanha – 2014 Gênero: Épico, Ação Atores (atrizes) principais: Christian Bale, Joel Edgerton, John Turturro, Sigourney Weaver, María Valverde, dentre outros(as) Roteiro: Adam Cooper, Bill Collage e Steven Zaillian
Trailer:
Referências:
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Petrópolis: Vozes, 2008;
RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. 4. ed. São Paulo, SP: Editora Manole, 2006;
SWINBURNE, Richard. Será que Deus existe?. Lisboa: Gradiva, 1998;
BITTENCOURT, Renato Nunes. Filosofia da Linguagem: Para além da tradição. Revista Filosofia – Ciência & Vida (número 99). São Paulo: Editora Escala, out. 2014;
NADLER, Steven. Um livro forjado no inferno: o tratado escandaloso de Espinosa e o nascimento da era secular; tradução de Alexandre Morales. – São Paulo: Três Estrelas, 2013.
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